sexta-feira, 20 de junho de 2025


Cegueira estratégica do Irã: a guerra e a força moral


Um dos fatores essenciais em uma guerra é a capacidade de compreensão que possuem os comandantes dos lados beligerantes. Acompanhamos o desenrolar da guerra entre Irã e Israel. A eficácia militar em um conflito armado depende, em grande parte, da capacidade dos comandantes em compreender a dimensão estratégica da guerra. No atual confronto entre Irã e Israel, a liderança iraniana tem enquadrado suas ações dentro de um princípio de autodefesa, dividido em duas fases: 1) fase da tentativa de dissuadir Israel e assim impedir novos ataques; 2) fase punitiva pelas perdas de vidas e a destruição no Irã. O princípio geral é o da autodefesa diante da agressão covarde de Israel em meio a negociações diplomáticas sobre o programa nuclear iraniano, concentrando sua compreensão do conflito unicamente em si mesmo. Com as negociações ainda em andamento, houve o ataque por parte de Israel. O princípio da autodefesa foi aplicado como se o ataque israelense fosse um evento desconexo e inusitado. Não há compreensão da escala mais ampla das operações militares de Israel.

A cúpula iraniana parece não entender que Israel executa fases de uma larga operação estratégica, que envolve o genocídio do povo palestino em Gaza, os ataques ininterruptos à população palestina na Cisjordânia, a destruição de grande parte do Líbano, a tentativa de destruição do Iêmen, a destruição da Síria, os ataques aos grupos de resistência à ocupação americana no Iraque. O regime iraniano, em vez de liderar uma resistência unificada, age como um jogador isolado, priorizando sua sobrevivência diplomática em vez da vitória coletiva dos povos da região. Esses movimentos fazem parte de uma única guerra com teatros de operações distintos. A liderança iraniana ajuda os que confrontam as tropas israelenses em seus diversos cenários. Porém, parece não entender o horizonte completo do conflito.

As derrotas táticas foram se acumulando. Em Gaza um genocídio ininterrupto. O massacre sofrido pela direção do Hezbollah no Líbano. A derrubada do governo Assad na Síria e a instalação de um governo oriundo das fileiras do Daesh (auto intitulado Estado Islâmico). Essas ações não são eventos desconexos, mas sim partes de uma estratégia expansiva israelense-americana para reconfigurar o equilíbrio de poder no Oriente Médio.  A liderança iraniana repete, como um mantra, que está apenas "respondendo" a uma agressão israelense. Mas essa narrativa é ingênua. 

Israel não está travando uma guerra apenas contra o Irã – está exterminando palestinos, esfacelando o Líbano, e estrangulando a Síria com ocupações e bloqueios. Enquanto isso, o Irã fracassou em impedir o massacre em Gaza, assistiu à direção do Hezbollah ser dizimada no Líbano, permitiu que a Síria fosse invadida por mercenários do Estado Islâmico (financiados pelos mesmos que armam Israel). As duas únicas vitórias táticas dos aliados dos iranianos foram a sobrevivência do Hamas em Gaza, com toda a brutalidade das tropas israelenses em tudo semelhante às táticas nazistas, e a vitória dos Houthis do Iêmen, ao impedir a passagem de navios no Mar Vermelho, com a expulsão da frota americana. Ainda assim, os comandantes iranianos expressam uma visão de que se trata de um conflito de Israel unicamente com o Irã. Suas vitórias foram conquistadas apesar da falta de uma estratégia iraniana clara, não por causa dela.

Vejamos o grande laboratório das guerras: a experiência histórica. Historicamente há uma semelhança entre a luta entre a Guerra de Secessão americana no século XIX e o atual conflito Irã – Israel . As tropas do Norte dos Estados Unidos só conseguiram derrotar as tropas confederadas sulistas quando adotaram um princípio ético superior: a luta contra a escravidão. Uma força moral indispensável para reverter as derrotas das tropas nortistas que se acumulavam. Da mesma forma que as tropas do Norte dos Estados Unidos na Guerra de Secessão só tiveram a força moral pra vencer quando assumiram a luta pelo fim da escravidão, as forças armadas iranianas precisam assumir o mesmo princípio dos iemenitas houthis: o genocídio contra os palestinos deve parar.

Precisamos assumir a natureza mais ampla do conflito. Não se trata de simples autodefesa pontual nem de defender o seu direito a ter um programa nuclear. Essas são reivindicações particularistas que beiram o isolacionismo, além de uma tentativa de ser finalmente aceito pelo Ocidente. Esse é o caminho da derrota. O Irã não está ganhando decisivamente a guerra contra Israel não por falta de armas ou coragem, mas por uma incapacidade de enxergar o conflito em sua dimensão coletivo-estratégica. Enquanto Teerã insiste em reduzir o embate a simples "autodefesa" após o ataque israelense às suas instalações nucleares, Israel age em múltiplas frentes, executando um projeto genocida coordenado: Gaza esmagada, o Líbano sangrando, a Síria em ruínas, o Iêmen sob bombardeios. O regime iraniano, em vez de liderar uma resistência unificada, age como um jogador isolado, priorizando sua sobrevivência diplomática em vez da vitória dos povos da região.

A vitória iraniana impedirá imensa mortandade das populações civis. Impedirá também a continuidade de um projeto de caos permanente que os Estados Unidos e Israel buscam expandir na região. A paz regional só será alcançada com a derrota das forças israelenses, o que permitiria até a continuidade do Estado de Israel em condições não mais agressivas e genocidas. Se o regime dos aiatolás quisesse vencer, adotaria três medidas decisivas: 1) assumiria a defesa do povo palestino como eixo central de sua retórica – não como "apoio", mas como guerra pela libertação coletiva; 2) exigiria publicamente e de forma inequívoca a retirada israelense de todos os territórios ocupados, incluindo Gaza, Cisjordânia, Sul do Líbano e Colinas de Golã; e 3) romperia de vez com a ilusão de aceitação pelo Ocidente.

Não é suficiente uma retaliação pontual. É preciso construir uma aliança militar e política inexorável, que force Israel a recuar. A vitória não virá com mísseis lançados de forma reativa. Israel deve sair de Gaza e da Cisjordânia. Deve aceitar a constituição de um Estado palestino. Deve sair do sul do Líbano e do sul da Síria. Deve ter desmantelada sua máquina de assassinatos e de terrorismo implementada por seu serviço de inteligência. A vitória iraniana permitiria a efetivação dessa nova realidade. Há uma bandeira moral irrefutável a defender: "Israel é um Estado genocida, e sua máquina de guerra deve ser desmontada". É necessário exercer uma pressão global, explorando a crescente rejeição às políticas israelenses até mesmo no Ocidente. As narrativas de Israel já se esfacelam em face de seus reiterados genocídios.

Não se trata de uma luta em oposição aos judeus, afinal a comunidade judaica iraniana é enorme e a convivência islâmico-judaica foi a regra ao longo de mais de mil e quatrocentos anos. É necessário assumir a força moral de uma luta coletiva contra a destruição das populações do Oeste da Ásia (ou Oriente Médio na visão imperial britânica). É preciso parar o massacre em Gaza e estabelecer as bases iniciais para uma paz duradoura. O Irã carrega o custo da hesitação: enquanto receia em coordenar um movimento de libertação coletiva contra o estado sionista de Israel, este avança com seu projeto de limpeza étnica regional.  Se Teerã não acordar e assumir a liderança política e moral dessa guerra, a região assistirá, em poucas décadas, ao extermínio completo da resistência palestina, à fragmentação do Líbano e à servidão da Síria. A escolha é clara: mudar de estratégia ou ser cúmplice do inimigo.


Fábio Sobral, professor da UFC