domingo, 29 de setembro de 2024

A carta de rompimento de Natália Sedova com a IV Internacional

setembro 29, 2024


DailyRadical History on X: "Jan 23 1962 – Death of Natalia Sedova. An  lifelong revolutionary, forced into exile by Stalin alongside Trotsky,  maintained her revolutionary internationalism until her death  https://t.co/KcyWXC3H7s https://t.co/Z64xL2EF2Q" /

Natalia Sedova Trotsky (1882-1962)


Eudes Baiman, professor da UECE


É uma peça curiosa, tendo em vista que Natália adere às posições contra as quais Trotsky travou seu último combate de monta. Com efeito, de fins de 1939 até sua morte, em agosto de 1940, Trotsky desenvolveu uma luta ríspida com a fração Max Schatman/James Burnham no SWP norte-americano justamente em torno do problema da natureza da URSS. 


Depois da guerra, grosso modo, Natalia Sedova se alinhou justamente às posições de Schatman/Burnham, que não mais existia como grupo de esquerda, pois seus líderes derivaram nos anos 40 para a direita e para o anticomunismo.


Contudo, na base da negação da URSS, e dos Estados surgidos da derrota da ocupação nazista no Leste da Europa, como estados operários, quer dizer, baseados na expropriação do capital, ainda que degenerados por regimes stalinistas, ela manteve relações com antigos militantes que haviam rompido com Trotsky ainda antes da guerra, e brevemente com o agrupamento intitulado Fomento Obrero Revolucionário, de Grandizo Munis, que saiu da IV Internacional em 1948.


De passagem, Natasha tinha algumas intuições certeiras, como a crítica à visão de dirigentes da Internacional acerca do Marechal Tito e de seu regime na Iuguslávia, que tomaria depois uma imensa dimensão e levaria à dissolução  da IV como organização entre 1951 e 1953.Não deixa de chamar a atenção que perto de sua morte, depois da suposta "desestalinização" proclamada no XX° Congresso do PC da URSS, em 1956, Natália tenha pedido a reabilitação de Trotsky aos chefes do regime stalinista, uma atitude com que dificilmente Lev Davidovitch teria acordo.


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Camaradas:

Sabem muito bem que não estou de acordo com vocês durante os últimos cinco ou seis anos, desde o final da guerra e até mesmo antes. A posição assumida por vocês sobre os importantes acontecimentos dos últimos tempos, me demonstra que, em vez de corrigirem os seus anteriores erros, persistem neles e os aprofundam. No caminho que assumiram, chegou-se ao ponto em que já não me é possível permanecer calada ou a me limitar a protestos privados. Agora devo exprimir as minhas opiniões publicamente. 

O passo que me sinto forçada a dar, é-me difícil e doloroso, e só posso deplorar sinceramente por isso. Mas não há outro modo. Depois de muitas meditações e dúvidas sobre um problema que me afligiu profundamente, dei na conclusão de que não há outra maneira senão dizer-lhes francamente que as nossas discordâncias tornam impossível a minha permanência nas suas fileiras.

As razões para esta minha postura final são conhecidas pola maioria de vocês. Eu brevemente as repito unicamente para aqueles que não estão familiarizados com as mesmas, referindo apenas as nossas diferenças fundamentais e não as que estimo sobre questões de política cotidiana que estão relacionadas a elas ou que delas derivam. 

Obcecados por velhas e ultrapassadas fórmulas, continuam considerando o Estado stalinista como um Estado operário. Eu não posso e não acompanharei vocês nisto. Depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, L. D. Trotsky  repetia praticamente todos os anos, que o regime se deslocava para a direita, sob as condições de uma revolução mundial delongada e a conquista de todas as posições políticas pola burocracia na Rússia. Repetidas vezes sublinhou como a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia a uma deterioração das posições econômicas, políticas e sociais da classe operária, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse, a revolução esgotar-se-á e a restauração do capitalismo será atingida. Infelizmente, isso foi o que aconteceu, mesmo se em formas novas e inesperadas. Não há nenhum país no mundo onde as autênticas ideias e os autênticos defensores do socialismo sejam perseguidos tão barbaramente [como na Rússia]. Deveria ficar claro para todo o mundo que a revolução foi completamente arruinada polo stalinismo. Todavia, vocês continuam dizendo ainda que sob este regime inominável, a Rússia é um Estado operário ou com algo de socialismo. Acho isto como um ataque ao socialismo. O stalinismo e o Estado stalinista não tem parecido  nada com um Estado operário e com o socialismo. Eles são os mais perigosos inimigos do socialismo e da classe operária.

Agora tomam de conta vocês que os Estados da Europa Oriental, sobre os quais o stalinismo instituiu o seu domínio durante e após a guerra, são igualmente Estados operários. Isto é equivalente a dizer que o stalinismo cumpriu um papel socialista revolucionário. Eu não posso e não quero segui-los nisto. 

Após a guerra e antes mesmo do seu término, houve um movimento revolucionário das massas nestes países. Mas não foram estas massas que conquistaram o poder e não foram Estados operários que foram fundados pelas suas lutas. Foi a contrarrevolução stalinista que conquistou o poder, reduzindo estes países a uma condição de escravos do Kremlin, esganando as massas trabalhadoras, as suas lutas e as suas aspirações revolucionárias. Ao considerar que a burocracia stalinista estabeleceu Estados operários nesses países, atribuem-lhe um papel progressivo e até mesmo revolucionário. Ao propagarem esta monstruosa falsidade à vanguarda dos trabalhadores vocês negam à IV Internacional toda a razão básica para a sua existência, enquanto um partido mundial da revolução socialista. No passado, sempre estimamos o stalinismo como uma força contrarrevolucionária no sentido pleno do termo. Vocês já não o consideram assim. Mas eu continuo apreciando-o como tal. 

Em 1932 e 1933, para desculpar a capitulação desavergonhada ao hitlerismo, os stalinistas manifestaram que importaria pouco se os fascistas chegassem ao poder, porque o socialismo haveria vir depois e viria através do domínio do fascismo. Só desumanos brutos sem pingo de pensamento ou espírito socialistas poderiam arguir deste modo. Apesar de prosseguirem defendendo os objetivos revolucionários, vocês sustentam agora que a reação stalinista despótica que triunfou na Europa Oriental é um dos caminhos polos quais o socialismo eventualmente virá. Esta visão marca uma fenda irremediável com as convicções mais profundas sempre assumidas polo nosso movimento, convicções que continuo a compartilhar. 

É impossível harmonizar com vocês na questão do regime de Tito na Iugoslávia. Toda a simpatia e apoio de revolucionários, e até mesmo de todos os democratas, deveria voltar-se para o povo iugoslavo na sua resistência determinada diante dos esforços de Moscou para reduzir o povo e o país à escravatura. Deveríamos tirar proveito de cada concessão que o regime iugoslavo vê-se agora obrigado a fazer ao povo. Mas toda a sua imprensa está consagrada agora a uma idealização indesculpável da burocracia titoísta, para a qual não existe nenhuma base nas tradições e princípios de nosso movimento. 

Essa burocracia é só uma réplica, sob uma nova forma, da velha burocracia stalinista. Ela foi treinada nas ideias, políticas e na moral da GPU. O seu regime, em nenhum aspecto fundamental, não difere do regime de Stalin. É absurdo acreditar ou ensinar que a direcção revolucionária do povo iugoslavo irromperá desta burocracia ou de qualquer outra forma que não seja no curso da contenda contra a burocracia.

Trotsky, em resposta a uma pergunta desleal dirigida a ele por Stalin em 1927 no Bureau Político, expôs a sua visão da seguinte maneira: Pela pátria socialista, sim! Pelo regime stalinista, não! Isso foi em 1927! Agora, vinte e três anos depois, Stalin não deixou nada da pátria socialista. Foi substituída pola escravização e degradação do povo pola autocracia estalinista. Este é o Estado que vocês propõem defender na guerra, que já estão mantendo vocês na Coréia. O mais intolerável de tudo é a posição que têm perfilhado sobre a guerra. A terceira guerra mundial que ameaça a humanidade confronta o movimento revolucionário com os problemas mais difíceis, as situações mais complexas, as decisões mais sérias, onde a nossa posição só pode ser tomada após discussões feitas da maneira mais séria e livre possível. Mas diante de todos os acontecimentos dos últimos anos, continuam hipotecando todo o movimento na defesa do Estado stalinista. Agora vocês estão apoiando até os exércitos do stalinismo na guerra que está sendo aturada polo povo coreano. Eu não posso e não quero segui-los nisto. 

Sei muito bem com quanta frequência repetem que estão a censurar o stalinismo e que o estão combatendo. Mas o fato é que a sua crítica e a sua luita perderam o seu valor e não podem trazer resultado nenhum, porque estão determinados à posição de defesa do Estado stalinista e subordinados ela. Quem quer que defenda esse regime de bárbara opressão renuncia, independente das razões, aos princípios do socialismo e do internacionalismo.

Na mensagem que me foi enviada pola recente convenção do SWP(2*), escreveu-se que as ideias de Trotsky continuam sendo o seu roteiro. Devo dizer-lhes que li estas palavras com amargura. Como podem reparar pelo que acima escrevi, não vejo as ideias dele na sua política. Sou confiante nessas ideias. Permaneço persuadida de que a única saída para a presente situação é a revolução socialista, a auto-emancipação do proletariado mundial. 

México, DF 9 de maio de 1951 

Notas:

(1*) Na fonte citada aparecem apenas trechos deste documento. Agradeço ao camarada Jaime Sinde Masa a procura e cessão de uma fotocópia do texto íntegro em espanhol. 

(2*) Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores).

Fonte:https://www.marxists.org/portugues/sedova/1951/05/09.html

sábado, 28 de setembro de 2024

Pedagogia das ciências: o caso da hesitação pedagógica na ciência

setembro 28, 2024

Foto:thinkmovemake.com 


Carlos Bonfim, Professor Adjunto de Pedagogia da UECE.

 

A educação em ciência põe em movimento e justifica a Pedagogia das ciências. Partindo desse campo abordamos aqui o papel da hesitação pedagógica na atividade científica.

 

Costumamos distinguir a ciência enquanto atividade que produz conhecimentos exatos sobre as coisas, e que por isso o pesquisador jamais deve hesitar em suas afirmações: precisa demonstrar que tem certeza, pois fundamentado em evidências.

 

Mas a possibilidade da ‘certeza inquestionável’ em ciências só existe se o pesquisador tiver ‘todos os dados do problema’ disponíveis e analisados em todos os detalhes e dimensões.Caso não se tenha todos os dados, isso indica que não há certeza indubitável, apenas previsão de probabilidades, expressa em uma teoria científica (dizemos ‘teoria cientifica’ porque há ‘teorias’ da conspiração, ‘teorias’ do senso comum’, ‘teorias’ sem ser fundamentadas em evidências etc.). Assim, as “teorias científicas referem-se a possibilidades, e não a fatos”, dizia Werner Heisenberg (1996, p. 98). 


Teoria não é um fato, é descrição de uma impressão (em forma de argumento ou de equação) ‘acerca de um possível fato’. Numa palavra: teorias científicas designam propostas que talvez funcionem (apresente boa aproximação com o real) ou não. 

 

Se uma teoria funciona bem segundo uma perspectiva, podemos confiar, mas nunca nos convencermos de que seja a verdade absoluta. E se no fundo estamos convencidos, mesmo assim a hesitação pedagógica é a prudência recomendada, pois a realidade é sempre surpreendente e mais dinâmica que qualquer teoria.Portanto, o critério de afirmação de uma teoria não é a “verdade” (correspondência fiel com o provável objeto real), e, sim, a probabilidade, o caráter de proposta possível ou provável. A esse respeito, no artigo de Einstein de 1905, que demonstra que a luz é feita de partículas (fato a lhe render o prêmio Nobel em Física), há a frase “parece-me”, a qual representa bem a hesitação pedagógica:


“De fato, parece-me (Es scheint mir) que as observações da radiação de corpo negro, fotoluminescência, produção de raios catódicos por luz ultravioleta e outros fenômenos associados à emissão ou transformação da luz, podem ser mais facilmente entendidos se admitirmos que a luz é distribuída de forma descontínua no espaço...pois consiste em número finito de quanta [grãos, partículas] de energia.” (Einstein, 2005, p. 202).

 

Não sem sentido, cientistas de peso na história das ciências (Newton, Planck, Einstein, Dirac, Darwin, Vigotski...), em suas teorias em vez de proferirem “asseguro com certeza”, usavam expressões de hesitação pedagógica do tipo ‘parece-me que’, ‘penso que’, ‘suponho que’, ‘consideramos’, ‘em estreito acordo com as observações’, ‘é consistente a hipótese’, ‘em primeira aproximação’ etc. Ante a instabilidade do mundo real e o contínuo avanço das pesquisas, o bom pesquisador parece ser aquele que “tem consciência dos passos importantes que está realizando e sempre hesita...” (Rovelli, 2017, p. 113). 

Quando os resultados de uma pesquisa científica passam nos testes, o experimentador dá o laudo: “É, a teoria parece que funciona mesmo”. 


Referências: 


HEISENBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.


EINSTEIN, Albert. Sobre um ponto de vista heurístico a respeito da produção e transformação da luz. In: EINSTEIN, Albert. O ano miraculoso de Einstein: cinco artigos que mudaram a face da física. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. p. 201-222. 


ROVELLI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

setembro 20, 2024


Eudes Baiman, professor da UECE


Eu acho comovente a tentativa de acadêmicos de jogar a obra de Marx no lixo, mas sem ter a coragem digna de afirmar seu rompimento com Marx, o que é um direito legitimo e, dependendo da qualidade do intelectual, mais útil às lutas sociais do que o ódio envergonhado ao Velho.


Um exemplo deste ódio envergonhado é o professor da Faculdade de Economia da Universidade Central da Venezuela, Edgardo Lander.


Por dever de ofício, gastei algumas horas de meu bem atualmente mais precioso (o tempo) com quase 40 páginas deste autor, o artigo "Marxismo, Colonialismo e Eurocentrismo", publicado em português numa coletânea da Expressão Popular, "A Teoria Marxista Hoje". Como este texto foi parar num compêndio de artigos sobre teoria marxista é um mistério. 


Apesar de, ao fim e ao cabo, dar a entender de que busca salvar a teoria marxista para as lutas sociais contemporâneas, algo como achar no racismo, colonialismo e eurocentrismo de Marx um núcleo saudável, o texto todo é um ataque em regra a Marx e a sua obra.


Sem problemas. A obra de Marx, pela sua própria natureza, reconhece do início ao fim sua condição de fruto de uma época histórica, e, assim, não é de forma alguma inatacável e isento de crítica e refutações. Muito pelo contrário.


Contudo, no afã de caracterizar Marx como incapaz de fazer a crítica realmente radical do capitalismo (sua obra resultando de fato numa narrativa alternativa "sentada" nos mesmos fundamentos da Europa ou do "ocidente" burguês), o autor realiza um amplo trabalho de falsificações, referências impertinentes à obra do autor alemão, confusão voluntária ou involuntária entre as posições de Marx e as deformações stalinistas, e a atribuição a ele de ideias deduzidas "livremente" por Lander de uma suposta leitura do autor. Digo suposta porque Lander é incapaz, ao longo de quase 40 páginas, de fazer sequer  uma citação direta de qualquer obra de Marx, obrigando o leitor a acreditar na própria interpretação do professor venezuelano.


Para ilustrar suas críticas a Marx, no máximo, usa passagens de uma única obra de Lenin, "Marxismo e Empiriocriticismo". Uma abordagem aliás muito de passagem e sem aprofundamento.


Ao fim, o que fica no espírito do leitor de Lander é que Marx, e ademais o que o autor venezuelano identifica com o "marxismo", são apenas a extrema-esquerda das narrações europeizantes, colonialistas e racistas hegemônicas nas abordagens do conhecimento, especialmente sobre a América Latina. Mais do que isso, o texto reproduz certas críticas terceiro-mundistas ou, como se diz agora, sulglobalistas, bastante estereotipadas a Marx e ao marxismo, especialmente, horror dos horrores, à ideia da revolução de natureza social proletária. 


Não sei se Ingenieros, Mariátegui, Ponce, Pedrosa e outros intelectuais marxistas latino-americanos se deram ao trabalho de se revirar em suas tumbas.


Não sou de "desrecomendar" obras pois acredito que todos devem ler os textos por si mesmos, mas tenho dúvidas se, neste caso, o tempo não pudesse ser usado melhor.

domingo, 15 de setembro de 2024

setembro 15, 2024


Eudes Baiman, professor da UECE


Em 14 de Setembro de 1867, foi publicado na Alemanha o Livro I de "O Capital", obra mais importante de Karl Marx, síntese de sua produção teórica e militante.

 

Traduzido para todas as línguas mais faladas no mundo, "O Capital" segue sendo a mais considerável análise da sociedade capitalista, amplamente validada pelos acontecimentos mundiais. 


Os seus 3 livros ( I - O processo de produção de capital de 1867, II - O processo de circulação do capital de 1885, III - O processo global da produção capitalista de 1894), comumente publicados em 6 volumes, abordam temas como a 'mais-valia', a mercadoria, o 'capital constante', o 'capital variável', os salários, a acumulação primitiva de capital e muitos outros, além de fazerem uma critica do modo de produção capitalista, incluindo também uma crítica sobre a teoria do valor-trabalho de Adam Smith e de outros assuntos dos economistas clássicos. 


Mas provavelmente o tema que atravessa toda a obra seja a da supressão do ser humano no processo combinado de produção e circulação de mercadorias e de valorização capital.


Marx só viu em vida a edição do Livro I de "O Capital". Os livros II e III foram editados respectivamente por Friedrich Engels, que participou ativamente da pesquisa e preparação da obra, e Karl Kautsky, dirigente da social-democracia internacional e testamenteiro da obra de Marx publicou o Livro IV, conhecido como Teorias da Mais-valia.


Ninguém conscientemente empenhado na transformação social pode contormar O Capital.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

"Dia dos Pais", Feuerbach e machismo: reflexão sobre criador e criatura

agosto 21, 2024

Der deutsche Philosoph Ludwig Feuerbach (1804-1872)

(Imagem / Danita Delimont)



Frederico costa, professor da UECE e coordenador do IMO


 

Na preleção do "Dia dos Pais", ouvi a seguinte afirmação do pastor: "Deus nos ama tanto que deu seu título de pai aos homens". Noutras palavras, o criador, que sempre existiu, sempre foi pai. E, ao criar a humanidade deu esse título a uma parcela de suas criaturas: os homens, indicados como "cabeças da família".


Partindo dessa afirmação machista, farei uma breve análise filosófica sobre a natureza humana do fenômeno religioso. 



Para isso, utilizarei o filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), filho de missionários cristãos, que realizou uma crítica radical da religião. O cerne de sua crítica, bem atual, foi desenvolvida no livro A essência do cristianismo, sobretudo no seu capítulo I, A essência do homem. O que vale para todas as estruturas religiosas, sejam monoteístas ou politeístas.


Eis o que nos diz Feuerbach.


Deus não existe em si nem por si mesmo, ou seja, como sujeito. Pois, de fato, Deus é um objeto que, em essência, é um predicado humano.  Os seres humanos se objetivam nesse objeto o qual, é ele mesmo: essência humana objetivada. No entanto, os seres humanos, em seu cotidiano, não possuem a consciência de que o objeto da religião - Deus - é um produto seu. E mais, os seres humanos não se reconhecem nele. Portanto, essa relação sujeito (seres humanos) e objeto (Deus) assume uma forma de alienação: a alienação religiosa. Nesse sentido, Feuerbach encontra em Deus a consciência de si mesmo dos seres humanos. 


A alienação religiosa, em última instância, traz consequências negativas para os seres humanos. Além de ser algo estranho, Deus não é reconhecido como um produto humano. E mais, os seres humanos se empobrecem diante de sua criatura (Deus), que se enriquece com as perfeições projetadas nele.


Na alienação religiosa, que ocorre na consciência, se cumpre a característica de toda alienação: 1) o sujeito ativo cria o objeto; 2) o objeto é um produto seu, porém, o sujeito ativo não se reconhece nele, o objeto é algo estranho; 3) o objeto obtém um poder que, por si, não tem e se volta contra o sujeito, dominando-o, convertendo-o em um predicado seu.


Logo, no discurso religioso há um cancelamento do sujeito humano real. Por exemplo, não é o deus cristão que é pai, e que repassa esse atributo aos homens. O que há, na realidade, é a projeção da família patriarcal numa construção teológica. Deus se torna machista, porque há relações machistas. O que o pastor fez, em sua pregação, foi inverter essa realidade, justificando por meio de uma construção humana metafísica ("Deus Pai"), a miséria da opressão cotidiana das mulheres.


Triste.