segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Marx é mais atual do que nunca

dezembro 25, 2023


     No ocaso de 2023, não há como negar a profunda crise que atinge o mundo. As contradições surgem e crescem diariamente. Guerras, desemprego, genocídio, repressão, crimes ambientais, mas também, resistência e mobilizações populares. Desespero, frustrações coletivas, alienação combinam-se com esperanças e projetos de mudança. Em proporção assustadora, a situação atual exige mudanças profundas. 
     A barbárie avança sobre as mais diversas formas para manter privilégios e estruturas de dominação. A guerra por procuração dos EUA/OTAN/Ucrânia contra a Rússia, o genocídio do Estado colonial de Israel contra o povo palestino e os recentes ataques do governo fascista de Javier Milei contra a classe trabalhadora argentina indicam uma tendência do capital financeiro internacional (sistema imperialista) para superar a profunda crise capitalista. Isso mostra uma ruptura radical com todo um período histórico, que estava estabelecido desde 1945, e, também, uma ofensiva internacional sem precedentes contra direitos trabalhistas, conquistas democráticas, soberania das nações oprimidas e autodeterminação dos povos. 
      A tarefa urgente de nosso tempo é a defesa da existência das organizações de classe dos explorados e oprimidos, em qualquer lugar no mundo. Tal exigência é inseparável da luta ideológica contra inúmeras formas de consciência que são cúmplices na manutenção da exploração capitalista existente. Nesse sentido, não é possível deixar de afirmar a importância do marxismo para a luta emancipatória e socialista. 
                                                                           *** 

      As classes dominantes e seus intelectuais não medem esforços para produzir erros de interpretação e deturpações das formas de consciência e teorias produzidas pelos explorados e oprimidos. Que melhor exemplo do que o movimento nascido em torno de Jesus de Nazaré que, de expressão de resistência, foi transmutado em ideologia oficial do Império Romano. Imagine o que ocorre com um pensamento radicalmente anticapitalista. 
     Referências a Marx e ao marxismo são constantes na mídia e nas redes sociais. Políticos, jornalistas, cientistas sociais, religiosos, filósofos e palpiteiros de plantão sempre têm algo a dizer sobre os problemas e contradições do marxismo, no entanto, na grande maioria dos casos, parece que não se leu uma linha escrita, pelo menos por Marx, ou se satisfazem com o mínimo de conhecimento sobre a obra de um dos mortos mais perigosos do mundo para o mundo capitalista. 

                                                                            ***

    Diferentemente dos pensadores de seu tempo, que buscavam apenas entender o mundo, Marx conformou-se como um homem de ação. Aos vinte e sete anos, afirmou: “Os filósofos não têm feito mais do que interpretar o mundo de diversas maneiras, o que importa é transformá-lo”. Isso demarcou a natureza de seus escritos como meios de ação para a luta revolucionária dos trabalhadores contra o capitalismo e a dominação burguesa. Nessa perspectiva, o conhecimento científico da realidade não acabava em si mesmo, mas estava a serviço da radical mudança da sociedade. Nas condições históricas da sociedade moderna, o conhecimento deve ser um instrumento das forças de emancipação social em luta contra as estruturas exploradoras e opressivas. 
     A vida de Marx, nos âmbitos público e privado, intelectual e político, torna-se incompreensível fora do contexto do movimento operário e das contradições do capitalismo. Marx iniciou a resposta mais radical à sociedade burguesa, indicando sua historicidade, lógica de funcionamento e possiblidades de superação. 
    Marx não descobriu a luta de classes. Antes dele, historiadores como Thierry, Guizot e Mignet já tinham estudado os conflitos entre burguesia e nobreza. Marx, no entanto, acrescentou que essa luta prosseguia, agora entre trabalhadores assalariados e seus patrões capitalistas. 
  Entendendo isso, participou, desde a juventude até o fim de sua vida, na organização e desenvolvimento de projetos revolucionários e classistas, chegando a ser o dirigente mais importante da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), entre 1864 e 1872. 
      Dirigiu o principal periódico da Alemanha durante a Revolução de 1848; durante a Comuna de Paris de 1871, mobilizou as forças da AIT em solidariedade incondicional aos "comunards". 
    Como atualmente o mundo passa por uma onda de guerras fomentadas pelo capital financeiro, é importante lembrar que Marx, em parceria com Engels, sempre buscou compreender os conflitos militares de seu tempo para elaborar uma estratégia de intervenção do proletariado em relação a eles. Exemplo disso são seus escritos sobre a Guerra da Criméia (1853-1856), a Guerra da Itália (1859), a Guerra Civil dos Estados Unidos (1861—1865), a intervenção francesa no México (1862-1867), o conflito franco-alemão (1870-1871) e a Guerra Russo-Turca (1877-1878). Noutras palavras, Marx tomava posição no sentido de construir situações progressivas para a luta de classes do proletariado; nunca ficou em cima do muro. 
    O que não deve ser esquecido é que as obras de Marx, inclusive "O capital", estão organicamente vinculadas, tanto teoricamente como na prática social, às crises, às guerras e às revoluções das quais acompanhou ou participou a partir da perspectiva do proletariado. De fato, por seu caráter histórico, a obra de Marx será sempre inacabada. Daí seu constante enriquecimento pela luta dos explorados e pelos intelectuais orgânicos ligados ao movimento operário. A atualidade da obra de Marx, não é nada mais do que a atualidade da revolução socialista, pois o capitalismo revela-se, cada vez mais, incapaz de desenvolver as capacidades humanas. 

2024 será um ano de muitas lutas. Venceremos!

Frederico Costa
Professor da Universidade Estadual do Ceará- UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

A identidade de Gênero e o Salário Mínimo

julho 13, 2023


Não foi a Damares e a extrema-direita que inventaram a “Ideologia” ou a “Teoria da Identidade de Gênero” para açular sobretudo o povo evangélico contra a esquerda. Elas apenas surfaram a onda em forma safada. A “Teoria da Identidade de Gênero”, criada em torno dos anos 1975, logicamente nos USA, teve como precursor o psicólogo John Money [1921-2006]. Ela difundiu-se como poderoso subproduto ideológico da maré liberal que varreu o mundo nas últimas três décadas, com o enorme enfraquecimento do mundo do trabalho.

Devido ao seu poder desorganizador do movimento social, a “Teoria da Identidade de Gênero” foi fortemente apoiada pelo imperialismo. Quando da aposta das administrações Bill Clinton [1993-2001] na globalização e na internacionalização do capital, com o consequente abandono do trabalhador manufatureiro estadunidense como base eleitoral privilegiada, o identitarismo e a “Teoria da Identidade de Gênero” transformaram-se em referências maiores do Partido Democrata.


Construto político-ideológico nascido e voltado para as classes médias liberais, o identitarismo (de raça, de gênero, de nacionalidade, etc.) contribuiu para o naufrágio da candidatura Hillary Clinton, em 2016, devido à migração eleitoral de importantes facções dos trabalhadores brancos e negros em direção a Donald Trump. O identitarismo retornou vitaminado com a vitória de J. Biden, em 2021. No Brasil, o lulo-petismo tem também procurado, sobretudo com o identitarismo negro, reconstruir uma nova base eleitoral, após o rompimento dos laços referenciais com o mundo do trabalho, devido a sua orientação social-liberal.

Reprodução da espécie

Biologicamente, a espécie humana divide-se em dois sexos, o feminino e o masculino, determinados pela incidência celular, nas mulheres, do cromossoma XX, e, nos homens, do XY. Esse é, desnecessário dizer, um padrão fortemente dominante, com diversos desvios estatisticamente marginais - hermafroditismo, etc. Entretanto, a orientação sexual não é definitivamente decorrência necessária da sexualidade biológica, não se constituindo, qualquer desvio desta última, doença ou perversão moral, como já foi e é ainda proposto.


Homens e mulheres podem ser atraídos pelo mesmo sexo (homossexualidade); pelos dois sexos (bissexualidade); por nenhum dos sexos (assexualidade); por crianças (pedofilia); por animais (bestialismo); por objetos inanimados, etc. Ainda que a atração heterossexual seja a tendencialmente dominante. As circunstâncias determinam circunstancialmente ou não a atração sexual.


Da interação sexual entre o homem e a mulher dependeu o desenvolvimento da humanidade. Nas últimas décadas, tem avançado, ainda que não em forma geral, com dificuldade e com eventuais recuos, o reconhecimento do direito democrático dos indivíduos de exercerem seus impulsos sexuais, forem quais forem, nos limites impostos pelo respeito aos seres e objetos de seus desejos. Um pedófilo não deve ser discriminado por sua orientação, tendo o direito, comumente negado, de satisfazer sua inclinação sexual de múltiplas formas, desde que não seja com as crianças - literatura, bonecos infláveis, etc. [RT, 17/01/2016.]


Tabula rasa

A “Teoria da Identidade de Gênero”, de viés irracionalista, impugnou esse consenso científico. Simplificando, ela propõe o desconhecimento da dualidade sexual biológica masculina e feminina, substituindo-a por uma identidade original de “gênero”. Para além dos órgãos sexuais, todos os seres humanos, ao nascerem, seriam fundamentalmente idênticos. A diferenciação em homens/masculinos e mulheres/femininos seria devido às influências culturais. O sexo seria uma determinação cultural e não biológica.


Os recém-nascidos seriam uma espécie de tabula rasa. Porém, devido à tradição cultural, a criança nascida com um pênis teria sido historicamente criada como homem, um ser do sexo masculino. E a criança nascida com uma vagina teria sido criada como mulher, um ser do sexo feminino. Portanto, crianças nascidas com um pênis ou com uma vagina teriam sua sexualidade determinada essencialmente pela educação. O gênero da criança se deveria dominantemente à cultura.


Essa concepção tem permitido, em alguns países e regiões, que os pais, que veem uma dissociação entre o sexo e o gênero de um seu filho ou filha, possam legalmente intervir com medidas educacionais, psicológicas, médicas, cirúrgicas, etc. para dissociá-los de seus marcadores biológicos de sexualidade, pênis ou vagina, ainda na infância e na pré-puberdade. Intervenções médicas e outras que têm resultado, há décadas, em graves sequelas, ressentidas pelas crianças, pré-adolescentes e adolescentes quando adultos.

O suicídio de David Reimer


David Reimer (1965-2004) foi o primeiro e mais célebre caso de redesignação sexual. Devido a um acidente com seu pênis, quando de circuncisão, foi criado como menina desde bebê, tendo seus testículos extirpados e recebendo tratamento hormonal, procedimentos médicos sugeridos pelo citado John Money, que supervisionou a experiência por longos anos. Em torno dos nove anos, Reiner passou a assumir-se como homem, sofrendo tentativas reparadoras cirúrgicas e hormonais de sua masculinidade, com penosas sequelas físicas e psíquicas. Aos 38 anos, David Reimer se suicidou, tendo deixado um relato publicado anteriormente sobre suas adversidades com a intensão de pôr um fim a tais procedimentos, antes da idade adulta. No que, como vemos, fracassou.


A “Teoria da Identidade de Gênero” defende, como vimos, que genitores que veem ou sintam uma filha no corpo de um filho, ou vice-versa, possam e devam implementar, em geral em forma irreversível, ablações de órgãos sexuais, tratamentos hormonais, interrupções da puberdade, etc. Em palavras simples, redirecionar, com recursos médicos, psíquicos e cirúrgicos, a orientação sexual da criança, antes mesmo que ala chegue à puberdade. Ou seja, antes que atinja o amadurecimento sexual e a maioridade que lhe permitam decidir sobre seu corpo. Os programas e iniciativas de redesignação sexual precoce são logicamente apoiados pelo complexo hospitalar-farmacêutico.


Essas intervenções intempestivas são defendidas eventualmente por pais, adultos e autoridades públicas como necessárias à saúde físico-psíquica de crianças sem capacidade efetiva de decidir sobre elas. Estranhamente, as comunidades ocidentais favoráveis à “Teoria da Identidade de Gênero”, que defendem, com um ardor talibã, o direito dos pais à mutilação dos filhos, são em geral os mais fervorosos críticos da ablação não apenas do clitóris que ainda hoje sofrem centenas de milhares de meninas através do mundo.

Imperialismo revolucionário

J. Biden tem-se pronunciado em forma dura contra os governadores conservadores ianques que estão proibindo intervenções na sexualidade de crianças e de adolescentes antes da maioridade, devido ao caráter irreversível e às graves sequelas desses tratamentos. Proibições acompanhadas, comumente, de medidas homofóbicas e retrógradas. Mas não devem reclamar, os que deixam a bola picar na pequena área! Nos anos 1990, antes da virada identitária do Partido Democrata, o senador J. Biden votou contra o casamento homossexual. [MARIE CLAIRE, 2022.]


A multiplicação incessante dos gêneros atualmente propostos exigiria a literal liquidação do binarismo biológico sexual homem-mulher. Os indivíduos seriam livres, portanto, para exigirem, além do direito inarredável de praticarem livremente suas orientações sexuais, o reconhecimento legal como seres em tudo idênticos ao gênero-sexo aos quais se identificam. Não se trata, portanto, do simples e indiscutível direito de registro nos documentos de identidade para superação de constrangimentos. Um travesti não apenas obteria registro de identidade com um nome de mulher, se transformaria em uma mulher.

Um homem que, em um determinando momento, decida definir-se como mulher, deveria ser tratado legalmente como tal pelo Estado, assumindo como única diferenciação, não necessariamente explicitada, ser mulher transgênero, ou trans. Portanto, teríamos, no mínimo, dois gêneros de mulheres, a transgênero ou trans e a cisgênero ou cis. Na última classificação estariam as mulheres ajustadas psicológica e sexualmente às suas determinações biológicas, superlativamente dominantes. O mesmo ocorrendo com os homens, agora divididos em trans e cis.


Essa construção ideológica de identidades abandona o porto seguro das reivindicações pelos direitos de expressão e defesa de todas as orientações sexuais, para navegar os mares do absurdo. Adotada em regiões do mundo liberal-imperialista, suas propostas naufragaram e naufragam inevitavelmente contra os escolhos do mundo real. E, sobretudo, ela permite que a direita e a extrema-direita aproveitem-se dela para reforçarem a agitação conservadora e a intolerância entre a grande população para com as comunidades e práticas sexuais ditas não ortodoxas.

Doce prisão

O mundo real ocupou-se de revelar os absurdos dessas propostas. Desde 2021, em Nova Jersey, nos USA, permite-se que homens, que se definam como mulheres, cumpram pena em presídios femininos, de convivialidade e regimes menos duros em relação aos masculinos. Demi Minor, homem que se definiu mulher trans, condenado à prisão perpétua por assassinato, exigiu e obteve o direito de ser encarcerado em cela com duas outras detentas, que engravidou em relações consensuais. O que ensejou o fim de tal prática. [GAZETA DO POVO, 2023.]


Tem-se registrado frequentes atos de violência contra prisioneiras, de transexuais aprisionados em prisões femininas, com destaque para os estupros. [CATRACA, 2018.] No Brasil, presos condenados por violação se declaram habitualmente homossexuais para terem direito ao espaço protegido garantido aos gays. Poderão optar por presídios femininos, caso aquele direito seja reconhecido no Brasil, como se tem reivindicado. [DORNELLES, 2020.]


Com atletas homens se auto-definindo como mulheres trans, avança a proibição de federações desportivas de que eles participem de competições femininas - natação, ciclismo, vôlei, basquete, atletismo, levantamento de peso etc. Decisão apoiada em suas vantagens relativas quanto às atletas mulheres. É a realidade biológica objetiva se impondo sobre os devaneios político-ideológicos. [CNNBRASIL, 2023.] J. Biden tem se pronunciado contra essa discriminação.


Nas competições mistas, as mulheres são tendencialmente prejudicadas devido à desigual conformação, em diversos aspectos da fisiologia feminina em relação à masculina, - altura, força, velocidade, etc. A diferença entre o maior valor feminino e masculino no levantamento do peso supera os cem quilos. Lideranças feministas têm denunciado a autodefinição de homens como mulheres como outra intervenção-invasão masculina no espaço feminino, pondo mulheres em situação de inferioridade, de insegurança, diluindo reivindicações históricas específicas às mulheres - maternidade, amamentação, etc. [DORNELLES, 2020.]

Em defesa da família

Os desdobramentos discursivos da “Teoria da Identidade de Gênero” têm alcançado pináculos do absurdo, como a proposta de que homens também podem ser mães! Proposta assustadora! Que me desculpe meu pai! Eu não o trocaria, jamais, pela minha querida mamãe! E não creio que meu filho aceite igual troca! Mas ninguém se assusta, já que não há esse perigo. Essa proposta da “Teoria da Identidade de Gênero” tenta apenas disfarçar em forma malandra o fato de que “homens transgêneros” são mulheres biologicamente em tudo iguais às demais, caso mantenham o sistema reprodutor. [FLEURITY, s.d.]


Essas formulações esdrúxulas permitem, como proposto, que a extrema-direita galvanize e, mesmo, aterrorize, sobretudo a população social e culturalmente mais atrasada. Em geral, a direita conservadora propõe como objetivo, dos governos que apontam de esquerda, a aplicação forçada e geral da “Ideologia de Gênero”. Em outras palavras, de pretenderem impor a manipulação arbitrária da sexualidade dos recém-nascidos e crianças pequenas, entre outras ações diabólicas. Trataria-se, assim, de um ataque à “família”. E vai argumentar contra essa doutrinação conservadora, no contexto da difusão das sandices revolucionárias da “Teoria da Identidade de Gênero”, que conhece o apoio da grande mídia.


E, não raro, servindo-se da denúncia da “Ideologia do Gênero”, setores políticos e religiosos de extrema-direita conquistam o consenso contra direitos do exercício e da expressão plena, sem restrições, das múltiplas orientações sexuais. Atacam o direito de casamento, de adoção, de expressão artística, etc. das comunidades homossexuais. Assim, a vanguarda da revolução da identidade de gênero contribui fortemente, no seu autismo individualista, ao recuou de avanços de direitos civis duramente obtidos.


Apoiados no compreensível e sadio medo de pais, avós, etc., hétero e homossexuais, de que seus filhos e netos pequenos e pré-púberes recebam como educação sexual os desvarios da “Teoria da Identidade de Gênero” [homens parindo e menstruando; filhos apenas de mães; escolha aleatória da orientação sexual, etc.], políticos reacionários conseguem barrar a necessária educação sexual nas escolas públicas. Na Florida, acaba de ser proibida a educação sexual e a divulgação da “identidade de gênero” nas escolas públicas, à exceção da informação sobre a reprodução. [G1, 19/04/2023.]

Idealismo e Materialismo


As origens da “Teoria da Identidade de Gênero” são múltiplas e complexas, salvo engano, carecendo de uma crítica marxista estrutural. Epistemologicamente, ela se insere no conflito histórico entre o idealismo e o materialismo, com a defesa de um mundo determinado subjetivamente, autônomo à materialidade dos fenômenos objetivos. Um mundo onde a vontade e a decisão individuais constroem uma materialidade fantasmagórica. Nele, eu sou o que pretendo ser. Ponto final. Amigo medievalista [gay] tem-se perguntado se, na “Teoria da Identidade de Gênero”, não teria a “influência do platonismo e do cristianismo nesse desrespeito” a um corpo “que teria de se ajustar à ideia?”


A “Teoria da Identidade de Gênero” materializou-se nas entranhas de facções liberais pequeno-burguesas centradas em suas sofrências, universalizadas e projetadas por sobre e para além das necessidades de todos que lhes são estranhos. Nessa dissolução do mundo e de suas contradições sociais objetivas, minha subjetividade se materializa como o epicentro do mundo, como o alfa e o ômega da minha história, que nasce e se encerra em mim.


Elevo-me a metro do mundo, senhor da fala, transformando-me em um estranho Prometeu que se aquece eternamente no fogo que produz, despreocupado com a humanidade que deveria iluminar. Constituo-me como profeta e libertador do meu próprio umbigo divinizado. Associo-me apenas a uma infinidade de outras individualidades auto-centradas, que me espelha e se espelha em mim.


A “Teoria da Identidade de Gênero” vive obcecada pelo protagonismo que abomina associação ou identificação que arranhe o meu empoderamento singular. Desemboca, portanto, na impossibilidade constrangedora de assinalar, mesmo que seja apenas com uma letra, os infindáveis gêneros singulares que emergem incessantes em suas especulações fantasiosas, elevados ao status de natureza humana. Negando-se a usar o alfabeto mandarim, agrega um + onde deveria colocar um ∞. Atualmente, os gêneros catalogados já superam os sessenta! Todos com seu programa próprio, singular e irredutível. [ABCNews, 13.02.2014.] A unidade do mundo social é dissolvida pela singularidade infinita.

Função Político-Social

A função político-ideológica conservadora da “Teoria da Identidade de Gênero” se registra quando suas reivindicações fantasmagóricas, próprias às classes médias liberais, ocupam o centro da atividade militante de esquerda e de organizações se reivindicando do marxismo. Consolidam-se, assim, o programa e as reivindicações de segmentos sociais voltados sobre si, que ignoram e desprezam às necessidades materiais das classes trabalhadoras, assalariadas, marginalizadas, etc., que não as atingem.


Insuficiências econômicas e sociais dramáticas que comprometem patologicamente todos os aspectos da existência humana - físicos, subjetivos, psíquicos, afetivos, sexuais, etc. Classes sociais exploradas das quais dependem a emancipação social e a superação tendencial de todas as opressões, sem exceções.


Facções das classes médias que vivem suas opressões, em geral sem contradições maiores, caso bem situadas socialmente. Através do mundo dito desenvolvido, temos banqueiros, generais, juízes, primeiro-ministros, governadores, senadores, prefeitos, sindicalistas, etc. homossexuais masculinos e femininos. Nesse universo, a homossexualidade se constitui como um nicho mercadológico do capital. [TRAVEL365, 2023.] E a pecha social que eventualmente conhecem constitui opressão não classista, a anos-luzes da classista, sofrida pelos trabalhadores, assalariados, marginalizados de todos os gêneros, opressão da qual o capital depende estruturalmente, não podendo viver sem ela. A análise científica exige a definição da interdependências e hierarquização dos fenômenos sociais.


A “Teoria da Identidade de Gênero”, parte do câncer identitário, realiza um enorme estrago político e social. Não apenas no Brasil, galvaniza sobretudo jovens das classes médias, com destaque para os universitários, com importante peso relativo nas organizações de esquerda. Em geral, essas organizações, com limitados vínculos com as classes trabalhadoras, abandonam o difícil objetivo de organizar-se por local de trabalho, junto aos oprimidos. Constroem, ao contrário, com sucesso, coletivos “negros”, “feministas”, etc., formados sobretudo por estudantes. Coletivos que definem suas próprias políticas e reivindicações, sob o pretexto da autonomia sectorial. Uma reorientação que permite realizar, com o voto das classes médias, o sonho dourado do eleitoralismo atualmente vicejante na esquerda marxista brasileira: eleger parlamentares pagos regiamente pelo Estado.

Revolucionários que o capital gosta

Uma frente estudantil de organização política que, ao menos, até há pouco, se assumia como marxista-revolucionária, propõe, para o 59 Congresso da Une, uma campanha nacional que defenda a “centralidade” da reivindicação de “cotas” universitárias para a “população trans”. Ou seja, privilégios no ingresso na universidade pública aos bissexuais, assexuais, homossexuais e todos os demais LGBTQIAPN+. O que torna semi-leprosos os jovens do sexo masculino e feminino ditos cis! Aquela frente estudantil propõe todo o pacote da “Teoria da Identidade de Gênero”. Com destaque para a irresponsável defesa de liberalização dos “procedimentos médicos para a transição de gênero” para “crianças” e a “participação” de homens que se definam como mulheres [“mulheres trans”] “nas competições esportivas” femininas. Imaginemos um Maguila trans em uma competição de boxe feminino! [Afronte, 2023/07/10.]


Essa adesão à pauta neoliberal “cotista” cobre com um verniz progressista o abandono miserável da luta histórica pela universidade pública, gratuita e de qualidade para todos, sem exceções. Reivindicação democrática que tem como corolário a estatização de todo o ensino superior privado. Programa de concretização possível, ainda mais em um país riquíssimo como o Brasil. Entretanto, tal proposta exigiria o deslocamento de ingentes recursos públicos para a satisfação da efetiva democratização no ensino. Recursos utilizados pelos governos atuais e anteriores para satisfazer e alavancar os grandes, médios e pequenos interesses privados. As cotas, ao contrário, distribui recursos já alocados para a universidade pública, em incessante regressão diante do ensino privado, sobretudo controlado pelo capital internacional.


Permitam-me agregar a essas ponderações as recordações e perplexidade de quem já foi, no passado distante, militante universitário que se pretendia marxista-revolucionário. Em 16 de junho de 1969, fui preso, em operação noturna, com a companheira Sandra Machado, já falecida, pela Brigada Militar, que nos parou disparando, felizmente para o alto, três tiros. Nosso crime: estarmos pixando com sprays, a modernidade da época, nos muros da entrada traseira da PUC-RS, além do “fora Rockefeller”, reivindicação então conjuntural, a exigência da “estatização da PUC”. Ela era parte da defesa do ensino público universal das organizações revolucionárias estudantis e da própria UNE. Passei dez dias preso, sofremos processo na Justiça Militar, que pediu condenação de dois anos de cárcere para mim e para Sandra. Não houve exagero na repressão. A luta pela universidade para todos era proposta da esquerda temida pela ditadura militar, já que capaz de mobilizar centenas de milhares de jovens. Fica por conta do atual “admirável mundo novo”, que literalmente nos assombra, ver militantes que se reivindicam da revolução defendendo pauta do grande capital e do imperialismo, que agradecem comovidos, em associação com o atual governo Lula-Alckmin, tais reivindicações.

E a ciranda segue

A centralidade do mundo do trabalho e suas reivindicações gerais e específicas são enviadas às calendas. Salta-se por sobre a necessária luta contra o caráter classista, patriarcal, sexista, etc. da linguagem. Uma luta que expressa tendências profundas da luta de classes, latentes nos padrões populares da fala. Questões que a linguista Florence Carboni e eu abordamos, há anos, no livro A Linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. [CARBONI, MAESTRI, 2003.] Avança-se, ao contrário, como pauta da linguagem de “gênero” a proposta de modificações arbitrárias e artificiais da língua, estranhas e opostas à imensa maioria da população. Como a defesa do uso, para uma linguagem mais inclusiva, em lugar dos pronomes “ele” e “eles”, os novos pronomes neutros “elu” e “ile”, entre tantos outros.


Tudo isso enquanto, em respeito ao mundo evangélico, não se enceta luta dura em defesa das multidões de mulheres pobres estropiadas, feridas e mortas devido à criminalização e não inclusão do aborto nas prestações dos SUS. As reivindicações da “Teoria da Identidade de Gênero” avançam de vento em popa, sem qualquer mobilização efetiva pela libertação imediata e incondicional das multidões de mulheres presas por venderem uma trouxa de maconha para sobreviverem à miséria. Libertação de uma população prisional inofensiva que aterroriza as classes médias, que entretanto compra e fuma seus baseadinhos. O que é, diga-se de passagem, um direito de todos.


Para não falarmos no verdadeiro genocídio silencioso de travestis pobres que se pratica impunemente no Brasil, sem qualquer mobilização real das ditas esquerdas. Sem esquecer, finalmente, da escravidão assalariada a que, no presente governo, como nos anteriores, é submetida uma imensa parcela das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, de todos os gêneros imagináveis, pela decretação arbitrária do salário mínimo em 1.320 reais, uma pequena parcela do seu real valor. Uma outra mega carícia ao mundo do capital, pequeno, médio, grande.

Agradecemos à gentil leitura e comentários da linguista Florence Carboni, do historiador P.P. e do médico G.D.


Mário Maestri

75 anos, historiador, é autor, entre outros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019. 2 edição. Porto Alegre: FCM Cultura, 2019.

Bibliografia citada

ABCNews, 13.02.2014. Aqui está uma lista de 58 opções de gênero para usuários do Facebook. https://abcnews.go.com/blogs/ headlines/2014/02/heres-a-list-of-58-gender-options-for-facebook-users

AFRONTE. Sonhar exige luta: Afronte! vai ao 59º Conune lutar pelas cotas trans nas universidades. https://esquerdaonline.com.br/2023/07/10/sonhar-exige-luta-afronte-vai-ao-59o-conune-lutar-pelas-cotas-trans-nas-universidades/

CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

CATRACA LIVRE, 2018. Estupradora trans é acusada de abusar de mulheres na prisão. https://catracalivre.com.br/cidadania/estupradora-trans-e- acusada-de-abusar-de-mulheres-na-prisao/

CNNBRASIL, 07/04/2023, Federação de Atletismo proíbe mulheres transgênero em competições femininas. https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/federacao-de-atletismo-proibe-mulheres-transgenero-em-competicoes-femininas/

DORNELLES, Tatiana Almeida de Andrade. O Supremo Tribunal Federal e os transgêneros em presídios femininos: análise crítica da ADPF 527. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 19, n. 55, jan./dez. 2020. [Disponível na internet.]

FLEURITY, sd. É possível um homem engravidar? Conheça como é a gravidez de um homem trans. https://loja.fleurity.com.br/blogs/blog/conheca-como-e-a-gravidez-de-um-homem-trans.

GAZETA DO POVO, 2023. Prisioneira trans engravida colegas e é transferida nos EUA. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/breves/prisioneira-trans-engravida-colegas-e-e-transferida-nos-eua/

G1, 19/04/2023. Flórida bane educação sexual em escolas do estado https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/19/florida-bane-educacao-sexual-em-escolas-do-estado.ghtml

MARIE CLAIRE, 31.03.2022. Biden afirma que pessoas trans são 'feitas à imagem de Deus’. https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/03/biden-afirma-que-pessoas-trans-sao-feitas-imagem-de-deus.html]

RT, 17/01/2016. Chocante: empresa cria bonecas de meninas infláveis "para evitar crimes de pedófilos”. https://noticias.r7.com/internacional/fotos/chocante-empresa-cria-bonecas-de-meninas-inflaveis-para-evitar-crimes-de-pedofilos-18012016

TRAVEL365, Turismo LGBT: Top 5 Paesi più Gay-Friendly del Mondo. https://www.travel365.it/turismo-lgbt-paesi-piu-gay-friendly-del-mondo.htm

sábado, 3 de junho de 2023

Resenha crítica do Quarto de Despejo

junho 03, 2023


    O Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus teve o lançamento de sua primeira edição no ano de 1960. Essa referida obra tem por gênero textual prevalente o gênero narrativo, em qual Carolina utiliza-se do seu cotidiano em forma de diário pessoal. Além disso, no respectivo livro a linguagem prevalente é a coloquial, no qual Carolina Maria de Jesus escreve tal qual fala, e isso foi mantido na obra, para que ela não perdesse sua essência e se apropriando da licença poética.

    Carolina Maria de Jesus nasceu no estado de Minas Gerais, e acabou se mudando para a cidade de São Paulo em 1947, período em que o processo de favelização estava em um crescimento desordenado. Como resultado de sua escrita, que tinha e tem o poder de aproximação com o público, Carolina foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil, e uma das mais lidas nesse país. A autora trouxe fortemente em seu livro a favela como um todo, e todas as especificidades e singularidades que permeavam o meio em que vivia. Carolina, morou com os três filhos durante a sua vida em uma das metrópoles mais industrializadas e com desigualdade do Brasil, em São Paulo na favela de Canindé, relatada por ela ao longo de sua escrita destacando a sua miserabilidade e sua marginalização.

   A estrutura do livro, como já mencionado aqui, deu-se por uma estrutura de tipo textual de Diário, o qual foi dividido por dias do mês, cada dia tinha sua característica própria, nunca trazendo informações repetitivas, a não ser pelo fato dela se referir da sua ocupação como catadora de papéis. Todo esse estilo presente no decorrer da obra traz uma singularidade pouco vista em outras obras renomadas da nossa literatura. Ademais, essa questão talvez seja uma das que mais me chamaram atenção durante toda a leitura, senti uma aproximação durante várias linhas com a Carolina, por conta da sua escrita mantida verdadeiramente como ela era, informal e coloquial, porém esplendorosa. Essa proximidade faz com que estejamos cada vez mais imersos no mundo dela, muitas vezes nos perdendo do nosso.

    Quarto de Despejo, também chamado por muitas vezes de: “Diário de uma Favelada”, tornou-se ao longo dos anos uma obra atemporal, na qual resguarda em seu seio expressões da questão social brasileira, ainda mais escancarada durante a Pandemia da Covid- 19. Além, da fome, que é por muitos a questão mais destacada durante a obra, Carolina relata várias situações cotidianas, do que acontece dentro e fora da favela. Porém, de formas tão convergentes e divergentes ao mesmo tempo. Talvez, por causa disso seu exemplar tenha sido considerado atemporal e sua leitura necessária para que se entenda as mudanças das expressões sociais, políticas, econômicas, raciais, culturais vigentes hodiernamente.

  Por conseguinte, as discussões trazidas por ela durante todo o desenvolvimento de sua escrita são, entre tantas outras: questões raciais e de gênero, violência contra a mulher, a fome, as desigualdades, as falhas do sistema capitalista, a política fraudulenta do Brasil, o consumo excessivo de álcool, a branquitude e sua hegemonia, como também a questão da favelização desmedida na grande metrópole São Paulina e o desemprego. Evidencia-se ao desenrolar da leitura, que a expressão social da fome, embora seja uma das mais citadas após o encontro e estudo desse livro, ela não é a única expressão presente nas entrelinhas da redação de Carolina Maria de Jesus. Outros assuntos trazidos por ela, são de extrema relevância, concomitante à fome. Aliás, um dos pontos pertinentes expostos é a politicagem, na qual ela se refere durante muitas vezes que os “tais políticos” só lembram do povo da favela em época de eleição, e as promessas são sempre as mesmas, após o período eleitoral todas as promessas se evaporam, se esvaindo com o mandato do(a) candidato(a).

    Outra discussão recepcionada por Carolina, trata-se da violência contra a mulher e a sua naturalização. Ela discorre sobre muitos atos de violências, inclusive a violência contra a mulher intrafamiliar e extrafamiliar. A exposição desses fatos é narrada por ela de maneira descritiva, tanto do ambiente, como na ação e omissão das pessoas que habitam ali naquele entorno da favela. A naturalização da violência de gênero contra a mulher é notória nos diálogos presentes na obra, quando ela insere a fala de algum morador ou moradora, trazendo justificativas tidas como consideráveis para a explicação daquela determinada conduta. Além dessas duas já citadas, pode-se trazer as desigualdades generalizadas e tão aparentes do desemprego, da fome e da marginalização, que estão presentes concomitantemente na obra e na contemporaneidade.

    Referindo-se a um dos pontos discutidos no exemplar, quando ela trata da fome, infere-se que é um ponto central trazido por Carolina. É algo que além de atingi-la fisicamente lhe atingia também moralmente e psicologicamente. Em muitos trechos do escrito, ela relatava a fome como uma das expressões sociais mais agressivas e desumanas. A necessidade de se apropriar do que tinha no lixo para se alimentar e alimentar seus filhos quando não conseguia catar materiais recicláveis necessários para seu sustento e dos seus, buscando algo menos fétido e apodrecido para que de alguma forma enganasse a fome. Em um desses trechos que têm a fome como personagem principal, pode-se citar:

Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. (...) A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. (...) Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! (p.56)

   A fome tem “cor amarela”, Carolina diz isso: "Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito". Amarela da cor da bile que se vomita quando o estômago está vazio, amarela como o seu mundo embaçado pela tontura. Só sabe o desespero da fome, quem passa. Essa discussão é trazida pontualmente e expressivamente por Carolina, do começo ao fim de sua obra, apesar de ser uma das expressões da questão social mais mencionada, ela não era única, mas era a que mais doía, nela, e possivelmente no leitor também.

   Em síntese, o Quarto de Despejo é uma das obras excepcionalmente necessárias para a concepção e construção de uma criticidade referente a todas as desigualdades presentes em nossa sociedade, que perduram por décadas. O paralelo da década de 60 em qual a obra foi escrita com a contemporaneidade assusta e ao mesmo tempo instiga questionamentos e discussões pertinentes desse sistema capitalista vigente, e de todas as expressões que advêm dele. Tornando por si só, a naturalização de todas as desigualdades, sejam elas sociais, culturais, políticas, econômicas, raciais e de gênero. Carolina, evidencia com uma linguagem acessível e direta o que se passa dentro e fora da favela, fazendo com que se pense em situações de subalternidades. Há um fato narrado com grande repercussão que ela retrata que se o problema não é seu, e não é você que o sente ou o vê, ele não te atinge, ele não te toca e você fica indiferente a ele.

  Dessa maneira, ela expressa com maestria o que é a fome e a marginalização das favelas, porque ela sabe como ninguém as dores e as chagas que isso acarreta para as vidas dos favelados, pois ela, assim como tantos outros faz parte desse mundo, chamado favela.

Referências
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 2004.

Thaís Queiroz Castro

Lições de Espanha: o último aviso

junho 03, 2023


LIÇÕES DE ESPANHA: O ÚLTIMO AVISO

Leon Trotsky

NOTA

Há 86 anos, no começo de maio de 1937, a Revolução Espanhola que se desenvolvia desde 1931, vivia um de seus episódios mais dramáticos, que marca o ponto de virada do ascenso revolucionário para a situação contrarrevolucionária que se concluiria com vitória das falanges franquistas na guerra civil, em inícios de 1939. A derrota do proletariado espanhol derrubava a última barreira que a classe operária havia erguido no caminho do desencadeamento da 2ª Grande Guerra Mundial.

Em pleno processo revolucionário, em 1936, a Espanha foi atravessada pela contrarrevolução franquistas, o que deflagrou a guerra civil entre o governo da República, a esta altura nas mãos da Frente Popular, e os revoltosos fascistas, apoiados pela Alemanha e pela Itália. Em julho deste ano, estala a rebelião franquista no Marrocos ocupado (a Espanha mantinha um protetorado no Marrocos desde 1912, numa divisão da ocupação colonial com a França), que depois se estendeu por todo território do Estado Espanhol. A abertura da guerra civil e, depois disso, a entrada em cena da ajuda soviética ao governo republicano, levaram a Frente Popular a uma ofensiva contra os processos de expropriação de fábricas e terras que se desenrolavam há vários meses. A colaboração da CNT/FAI, organizações mantidas pelo poderoso movimento anarquista espanhol, e do Partido Operário de Unidade Marxista (POUM), dirigido pelo antigo militante trotskista Andrés Nin, em nome da unidade contra Franco, desarmou literalmente os trabalhadores. No fim do ano, frente ao progresso dos fascistas no front, uma distribuição controlada de armas aos combatentes proletários foi realizada, o que, de toda forma, reforçou as expropriações e ocupações de fábricas e terras.

Em maio de 1937, a República se achava em meio à reconstrução dos instrumentos estatais de dominação da burguesia, estilhaçados pela revolução (o Exército regular foi reestabelecido, a odiada guarda civil foi reorganizada), à custa da desmobilização brutal das milícias operárias e camponesas, levada a cabo pela Frente Popular com a direta influência de Stálin, que condicionava toda ajuda militar contra Franco ao esmagamento da revolução, à proteção da propriedade privada e à dissolução das organizações operárias que não estivessem sob controle soviético.

Nesse quadro, o governo decide desocupar os prédios públicos da “capital da revolução espanhola”, Barcelona, sob o controle dos sindicatos havia meses, em especial da CNT. A desocupação da Central Telefônica simbolizará este enfrentamento dos trabalhadores em luta contra a tentativa de disciplinamento do governo da Frente Popular. Um levantamento popular se segue, mas depois de dois dias, 9 e 10 de maio de 1937, é obrigado a ceder diante do aparato militar do Estado e em função da deserção sem luta de suas direções, os anarquistas e o POUM, que se opõem ao levantamento. O POUM e seu principal dirigente, Andrés Nin, foram as primeiras vítimas dessa política, com o partido sendo posto na ilegalidade, seus líderes presos e Nin assassinado.

O episódio que agora completa 86 anos abriu a via para a hegemonia da coligação entre o pífio segmento burguês que se manteve republicano, o reformismo espanhol e o stalinismo que desarmou e esmagou as milícias populares e conduziu a guerra segundo os interesses diplomáticos de Stálin, levando à tragédia de janeiro de 1939, quando Barcelona caiu e se decretou a vitória de Franco.

Para lembrar esta jornada heroica e trágica do proletariado espanhol, trazemos o texto de Trotsky Lições da Espanha: o último aviso, publicado em 17 de dezembro de 1937, onde o fundador da 4ª Internacional analisa o significado da jornada de 9 e 10 de maio de 1937, faz um balanço do papel das forças políticas naquela situação e indica o lugar decisivo do episódio no desenlace da guerra civil.

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LIÇÕES DE ESPANHA: O ÚLTIMO AVISO

Todos os estados-maiores estão estudando de perto as operações militares na Etiópia, na Espanha, no Extremo Oriente, como preparação para a grande guerra futura. As batalhas do proletariado espanhol, os relâmpagos da futura revolução mundial, devem ser estudadas com não menos atenção pelos estados-maiores revolucionários. Sob essa condição, e somente sob essa condição, os próximos eventos não nos tomarão de surpresa.

Três ideologias lutaram – com forças desiguais – no chamado campo republicano, a saber, o menchevismo, o bolchevismo e o anarquismo. No que diz respeito aos partidos republicanos burgueses, careciam de ideias ou de importância política independentes e só podiam se manter subindo nas costas dos reformistas e dos anarquistas. Além disso, não é exagero dizer que os líderes do anarcossindicalismo espanhol fizeram de tudo para repudiar sua doutrina e praticamente reduzir seu significado a zero. Na verdade, duas doutrinas lutaram no chamado campo republicano: o menchevismo e o bolchevismo.

De acordo com os socialistas e stalinistas, isto é, os mencheviques de primeira e segunda fornadas, a revolução espanhola foi chamada para resolver apenas suas tarefas “democráticas”, para as quais era indispensável construir uma frente única com a burguesia “democrática”. Desse ponto de vista, todas e quaisquer tentativas do proletariado de ir além dos limites da democracia burguesa não eram apenas prematuras, mas também fatais. Além disso, na agenda não estava a revolução, mas a luta contra Franco.

O fascismo, no entanto, não é uma reação feudal, mas burguesa. Uma luta bem-sucedida contra a reação burguesa só pode ser travada com as forças e os métodos da revolução proletária. O menchevismo, ele próprio um ramo do pensamento burguês, não tem e não pode ter nenhuma ideia desses fatos.

O ponto de vista bolchevique, expresso com clareza apenas pela jovem seção da 4ª Internacional, toma como princípio a teoria da revolução permanente, a saber, que mesmo os problemas puramente democráticos, como a liquidação da propriedade semifeudal, não podem ser resolvidos sem a conquista do poder pelo proletariado; mas isso, por sua vez, coloca a revolução socialista na agenda. Além disso, durante os primeiros estágios da revolução, os próprios trabalhadores espanhóis colocaram na prática não só os problemas democráticos, mas também os problemas puramente socialistas. A exigência de não transgredir os limites da democracia burguesa significa, na prática, não uma defesa da revolução democrática, mas um repúdio a ela. Só através de uma reviravolta nas relações agrárias, os camponeses, a grande massa da população, foram transformados em um poderoso baluarte contra o fascismo. Mas os proprietários de terras estão intimamente ligados à burguesia comercial, industrial e bancária, e à intelectualidade burguesa que depende deles. O partido do proletariado enfrentou, portanto, a escolha entre ir com as massas camponesas ou com a burguesia liberal. Só poderia haver uma razão para incluir o campesinato e a burguesia liberal na mesma coalizão ao mesmo tempo: ajudar a burguesia a enganar os camponeses e, assim, isolar os trabalhadores. A revolução agrária poderia ter sido realizada apenas contra a burguesia e, portanto, somente através das massas da ditadura do proletariado. Não existe um terceiro regime intermediário.

Do ponto de vista da teoria, a coisa mais surpreendente sobre a política espanhola de Stalin é o total desprezo pelo ABC do leninismo. Após um atraso de várias décadas – e que décadas! – a Internacional Comunista reabilitou completamente a doutrina do menchevismo. Mais do que isso, a Internacional Comunista conseguiu tornar essa doutrina mais “consistente” e, por esse motivo, mais absurda. Na Rússia czarista, no limiar de 1905, a fórmula da “revolução puramente democrática” tinha a seu favor, em qualquer caso, incomensuravelmente mais argumentos do que em 1937 na Espanha. Não é de surpreender que na Espanha moderna “a política trabalhista liberal” do menchevismo tenha se convertido na política reacionária anti-trabalhistas do stalinismo. Ao mesmo tempo, a doutrina dos mencheviques, essa caricatura do marxismo, foi convertida em uma caricatura de si mesma.

“TEORIA” DA FRENTE POPULAR

Seria ingênuo, no entanto, pensar que a política da Internacional Comunista na Espanha decorre de um “erro” teórico. O stalinismo não é guiado pela teoria marxista, ou mesmo por qualquer teoria, mas pelos interesses empíricos da burocracia soviética. Em seus círculos íntimos, os cínicos soviéticos zombam da “filosofia” de Dimitrov da Frente Popular. Mas eles têm à sua disposição para enganar as massas grandes quadros de propagadores desta fórmula sagrada, sinceros e trapaceiros, simplórios e charlatães. Louis Fischer, com sua ignorância e presunção, com seu racionalismo provinciano e surdez congênita à revolução, é o representante mais repulsivo dessa irmandade pouco atraente. “A união das forças progressistas!” “O triunfo da ideia da frente popular!” “O ataque dos trotskistas à unidade das fileiras antifascistas!” …. Quem acreditará que o Manifesto Comunista foi escrito há noventa anos?

Essencialmente, os teóricos da Frente Popular não vão além da primeira regra da aritmética, ou seja: “comunistas” mais socialistas, mais anarquistas e mais liberais somam um total que é maior que seus respectivos números isolados. Essa é toda a sua sabedoria. No entanto, a aritmética sozinha não é suficiente aqui. Necessita-se também pelo menos da mecânica. A lei do paralelogramo de forças se aplica também à política. Nesse paralelogramo, sabemos que a resultante é mais curta, quanto mais as forças componentes divergem entre si. Quando aliados políticos tendem a seguir direções opostas, a resultante mostra-se igual a zero.

Um bloco de grupos políticos divergentes da classe trabalhadora é, às vezes, completamente indispensável para a solução de problemas práticos comuns. Em certas circunstâncias históricas, esse bloco é capaz de atrair as massas pequeno-burguesas oprimidas, cujos interesses se aproximam dos interesses do proletariado. A força conjunta de um bloco desse tipo pode ser muito mais forte que a soma das forças de cada uma de suas partes componentes. Pelo contrário, a aliança política entre o proletariado e a burguesia, cujos interesses sobre questões básicas na época atual divergem em um ângulo de 180 graus, como regra geral, é capaz apenas de paralisar a força revolucionária do proletariado.

A guerra civil, na qual a força da coerção pura dificilmente é eficaz, exige de seus participantes o espírito de suprema auto abnegação. Os trabalhadores e camponeses só podem garantir a vitória se lutarem por sua própria emancipação. Sob essas condições, subordinar o proletariado à liderança da burguesia significa garantir antecipadamente a derrota na guerra civil.

Essas verdades não são de forma alguma o produto de uma análise teórica. Pelo contrário, representam a conclusão irrefutável de toda a experiência da história, começando pelo menos em 1848. A história moderna da sociedade burguesa está repleta de todos os tipos de frentes populares, ou seja, das mais diversas combinações políticas para enganar os trabalhadores. A experiência espanhola é apenas um elo novo e trágico dessa cadeia de crimes e traições.

ALIANÇA COM A SOMBRA DA BURGUESIA

Em termos políticos, o mais impressionante é o fato de que a Frente Popular espanhola carecia, na realidade, de um paralelogramo de forças. O lugar da burguesia era ocupado por sua sombra. Por meio dos stalinistas, socialistas e anarquistas, a burguesia espanhola subordinou o proletariado a si mesma, sem sequer se preocupar em participar da Frente Popular. A esmagadora maioria dos exploradores de todas as nuances políticas foi abertamente para o campo de Franco. Sem nenhuma teoria de “revolução permanente”, a burguesia espanhola entendeu desde o início que o movimento revolucionário de massas, não importa como ele comece, está dirigido contra a propriedade privada da terra e dos meios de produção, e que era absolutamente impossível acabar com esse movimento por meio de medidas democráticas.

É por isso que apenas restos insignificantes das classes possuidoras permaneceram no campo republicano: os senhores Azaña, Companys e os advogados políticos da burguesia, mas não a própria burguesia. Tendo apostado tudo na ditadura militar, as classes possuidoras foram capazes, ao mesmo tempo, de fazer uso dos seus representantes políticos do período anterior para paralisar, desorganizar e depois estrangular o movimento socialista das massas no campo “republicano”.

Sem minimamente representar a burguesia espanhola, os republicanos de esquerda ainda menos representavam os trabalhadores e camponeses. Eles não representavam ninguém além de si mesmos. Graças, no entanto, aos seus aliados – socialistas, stalinistas e anarquistas – esses fantasmas políticos desempenharam um papel decisivo na revolução. Como? Muito simplesmente. Ao encarnar os princípios da “revolução democrática”, isto é, a inviolabilidade da propriedade privada.

OS STALINISTAS DA FRENTE POPULAR

As razões da ascensão da Frente Popular espanhola e de sua mecânica interna estão perfeitamente claras. A tarefa dos líderes aposentados da ala esquerda da burguesia consistia em deter a revolução das massas e voltar a ganhar a confiança dos exploradores: “Por que Franco, se nós, os republicanos, podemos fazer a mesma coisa?” Os interesses de Azaña e Companys coincidiam plenamente nesse ponto central com os interesses de Stalin, que precisava ganhar a confiança da burguesia francesa e britânica, ao demonstrar-lhes, na ação, sua capacidade de preservar a “ordem” contra a “anarquia”. Stalin precisava de Azaña e Companys como uma cobertura diante dos trabalhadores: o próprio Stalin, é claro, é a favor do socialismo, mas é preciso ter cuidado para não repelir a burguesia republicana! Azaña e Companys precisavam de Stalin como um carrasco experiente, que goza de autoridade revolucionária. Sem ele, reduzidos a um montão de zeros, não poderiam nem teriam se atrevido a atacar os trabalhadores.

Os reformistas tradicionais da 2ª Internacional, aterrorizados com o curso da luta de classes, começaram a sentir uma nova onda de confiança graças à ajuda de Moscou. Esse apoio foi outorgado, não a todos os reformistas, mas apenas aos mais reacionários: Caballero representava a aristocracia operária do Partido Socialista, enquanto Negrin e Prieto sempre olhavam para a burguesia. Negrin ganhou de Caballero graças a ajuda de Moscou. É verdade que os socialistas de esquerda e os anarquistas, prisioneiros da Frente Popular, se esforçaram para salvar da democracia tudo o que poderia ser salvo. Mas, como não souberam mobilizar as massas contra os gendarmes da Frente Popular, seus esforços, no final das contas, se reduziram a lamentações piedosas. Dessa forma, os stalinistas se aliaram à ala mais direitista, mais abertamente burguesa, do Partido Socialista. Dirigiram seus golpes contra a esquerda, ou seja, contra os agrupamentos centristas que, embora de forma deformada, refletiam a pressão das massas revolucionárias.

Este fato político, por si só bastante significativo, nos dá, ao mesmo tempo, a ideia da degeneração da Internacional Comunista durante os últimos anos. Há algum tempo, definimos o stalinismo como centrismo burocrático; os acontecimentos aportaram certo número de provas da correção dessa definição. No entanto, atualmente, não corresponde à realidade. Os interesses da burocracia bonapartista não se encaixam com o caráter híbrido do centrismo. Em sua busca de entendimento com a burguesia, a camarilha stalinista só é capaz de se aliar aos elementos mais conservadores da aristocracia operária mundial. Devido a isso fica definitivamente estabelecido o caráter contrarrevolucionário do stalinismo na arena mundial.

AS VANTAGENS CONTRARREVOLUCIONÁRIAS DO STALINISMO

Chegamos aqui à chave da solução do problema: como e por que o Partido Comunista Espanhol, insignificante tanto por seus números quanto por sua liderança, foi capaz de concentrar em suas mãos todas as alavancas do poder, apesar da presença das organizações socialistas, incomparavelmente mais poderosas? A explicação corrente, segundo a qual os stalinistas conseguiram o poder graças às armas soviéticas, é superficial. Moscou recebeu o ouro espanhol em troca de suas armas. Segundo as leis do mercado capitalista, isso era o suficiente. Como Stalin obteve o poder nessa operação? Correntemente, costuma-se responder: ao aumentar sua autoridade diante das massas com base em seus abastecimentos, o governo soviético pôde conseguir, como condição de sua ajuda, medidas decisivas contra os revolucionários, afastando dessa forma de seu caminho perigosos adversários. Isso é indiscutível, no entanto, não é mais do que um aspecto do problema, o menos importante. Apesar da “autoridade” adquirida graças aos abastecimentos militares, o Partido Comunista espanhol continuou sendo uma pequena minoria, encontrando da parte dos trabalhadores um ódio cada vez maior. Por outro lado, não bastava que Moscou estabelecesse as condições, faltava que Valência as aceitasse.

Este é o fundo do problema, visto que não só Companys e Negrin, como também Caballero, quando era presidente do Conselho, se rebaixaram, mais ou menos de boa vontade, ante as exigências de Moscou. Por quê? Porque também esses senhores queriam manter a revolução em seu marco democrático burguês.

Nem os socialistas, nem os anarquistas, se opuseram seriamente ao programa stalinista. Eles próprios temiam a ruptura com a burguesia. Aterrorizavam-se ante cada nova ofensiva revolucionária dos trabalhadores. Stalin foi o salvador de todos esses grupos, graças as suas armas e ao seu ultimato contrarrevolucionário. Efetivamente lhes assegurava o que esperavam: a vitória militar sobre Franco e, simultaneamente, os liberava de toda responsabilidade sobre o curso da revolução. Apressaram-se a retirar as máscaras de socialistas, comunistas e anarquistas, com a esperança de poder voltar a utilizá-las quando Moscou lhes restabelecesse a democracia burguesa. Como o toque final de sua confortável posição, esses senhores podiam justificar sua traição para com o proletariado pela necessidade da aliança militar com Stalin. Por seu lado, este último justificava sua política contrarrevolucionária pela necessidade da aliança com a burguesia republicana.

Unicamente deste ponto de vista mais amplo fica clara para nós a angélica tolerância que demonstraram frente aos representantes da GPU, esses campeões do direito e da liberdade, como o são Azaña, Companys, Negrin, Caballero, Garcia Oliver e os demais. Se não puderam escolher, como eles mesmos afirmam, não foi unicamente porque não tinham recursos para pagar aviões e tanques de outra forma que não fosse com as “cabeças” dos revolucionários e com os direitos dos trabalhadores, mas porque lhes era impossível realizar o seu próprio programa “puramente democrático”, ou seja, antissocial, e por outros métodos que não fossem os do terror. Quando os trabalhadores e os camponeses se comprometem no caminho da revolução, isto é, quando se apoderam das fábricas, das grandes propriedades e expulsam os antigos proprietários, tomando localmente o poder, então, a contrarrevolução burguesa-democrática, stalinista ou fascista – para o caso, são todos o mesmo – não tem outro método para deter o movimento revolucionário além da violência, do engodo e da mentira. A vantagem da camarilha stalinista nessa via consiste em que começou imediatamente a aplicar esses métodos, que estavam fora do alcance de Azaña, Companys, Negrin e seus aliados de “esquerda”.

STALIN CONFIRMA A SEU MODO A TEORIA DA REVOLUÇÃO PERMANENTE

Foi assim que dois programas se enfrentaram no território espanhol. Por um lado, o da salvaguarda a qualquer preço da propriedade privada contra o proletariado, e se fosse possível, a salvaguarda da democracia contra o fascismo. Por outro, o programa da abolição da propriedade privada, graças à conquista do poder pelo proletariado. O primeiro expressava o programa do grande capital, por meio da aristocracia operária, das camadas melhor situadas da pequena burguesia e, sobretudo, por meio da burocracia soviética. O segundo traduzia, na linguagem marxista, as tendências do movimento revolucionário de massas, não plenamente conscientes, mas poderosas. Para infelicidade da revolução, entre um punhado de bolcheviques e o proletariado se levantava o muro contrarrevolucionário da Frente Popular.

Por seu lado, a política da Frente Popular não foi determinada de forma alguma pela chantagem de Stalin, enquanto abastecedor de armas. Sem dúvida, a chantagem está incluída nas condições internas da própria revolução. Durante os últimos seis anos, o fundo social desta última foi a ofensiva crescente das massas contra a propriedade semifeudal e burguesa. Foi precisamente a necessidade de defender essa propriedade o que empurrou a burguesia para os braços de Franco. O governo republicano havia prometido à burguesia defender a propriedade baseando-se em medidas “democráticas”, mas sofreu uma derrota completa, sobretudo em julho de 1936. Quando a situação da propriedade privada se tornou ainda mais ameaçada que a própria situação militar, os democratas de todos os tipos, incluídos os anarquistas, inclinaram-se diante de Stalin, e este último não encontrou em seu arsenal outros métodos que os de Franco.

Sem perseguição contra os trotskistas, poumistas, anarquistas revolucionários e socialistas de esquerda, sem as calúnias baixas, os documentos falsificados, as torturas nas prisões stalinistas, os assassinatos pelas costas; sem tudo isso, a bandeira da burguesia não teria durado nem dois meses junto à bandeira republicana. A GPU se fez dona da situação porque defendeu de forma mais consequente que os demais, isto é, com mais armadilhas, os interesses da burguesia contra o proletariado. Durante sua luta contra a revolução socialista, o democrata Kerensky buscou, em primeiro lugar, um apoio na ditadura militar de Kornilov, depois tentou entrar em Petrogrado nos vagões do general monárquico Krasnov; por outro lado, os bolcheviques, para levar a revolução democrática até o final, viram-se obrigados a derrubar o governo dos charlatães e falastrões democráticos. Ao fazer isso, acabaram, de passagem, com todas as tentativas de ditadura militar ou fascista.

A revolução espanhola demonstra que é impossível defender a democracia contra as massas revolucionárias de outra forma que não seja através dos métodos da reação fascista. E, inversamente, é impossível conduzir uma luta contra o fascismo de outra forma que não seja através dos métodos da revolução proletária. Stalin travou uma guerra contra o “trotskismo” (revolução proletária), destruindo a democracia através das medidas bonapartistas da GPU. Isso refuta mais uma vez e de uma vez por todas a velha teoria menchevique, adotada pela Internacional Comunista, segundo a qual as revoluções democrática e socialista são transformadas em dois capítulos históricos independentes, separados um do outro pelo tempo. O trabalho dos carrascos de Moscou confirma, à sua maneira, a correção da teoria da revolução permanente.

O PAPEL DOS ANARQUISTAS

Os anarquistas não tiveram nenhuma posição independente na revolução espanhola. Não fizeram mais que oscilar entre o bolchevismo e o menchevismo. Ou, mais exatamente, os trabalhadores anarquistas tendiam a buscar uma saída pela via bolchevique (19 de julho, jornadas de maio), os dirigentes, pelo contrário, empurravam as massas com todas as suas forças para o campo da Frente Popular; isto é, para o regime burguês.

Os anarquistas deram prova de uma incompreensão fatal das leis da revolução e de suas tarefas, visto que limitaram a revolução aos sindicatos, ou seja, às organizações de tempos de paz, impregnadas de rotina e ignorantes do que ocorria fora delas, nas massas, nos partidos políticos e no aparato de Estado. Se os anarquistas fossem revolucionários, teriam apelado, antes de mais nada, à formação de sovietes que reunissem todos os representantes da cidade e do campo, incluindo os milhões de trabalhadores super-explorados que jamais haviam entrado em um sindicato. Naturalmente, os trabalhadores revolucionários teriam tomado uma posição dominante nos sovietes. Os stalinistas ficariam em proporção insignificante. O proletariado ficaria convencido de sua força invencível. O aparato de Estado não seria levado em conta para nada. Não seria necessário um golpe demasiado forte para que esse aparato caísse por terra. A revolução socialista teria recebido um impulso poderoso. O proletariado francês não continuaria permitindo a Léon Blum bloquear a revolução por mais tempo do outro lado dos Pirineus.

Tampouco a burocracia de Moscou poderia se permitir tal luxo. As questões mais difíceis teriam se resolvidas à medida em que surgissem.

Em vez disso, os anarquistas, que tentaram se refugiar na política dos sindicatos, se converteram, com grande assombro de todos, e começando por eles mesmos, na quinta roda do carro da democracia burguesa. Não por muito tempo, pois uma quinta roda não serve para nada. Depois que Garcia Oliver e Cia ajudaram a Stalin e seus comparsas a roubar o poder aos trabalhadores, os próprios anarquistas foram expulsos do governo de Frente Popular. Dissimularam o seu terror de pequeno-burguês ante o grande burguês, de pequeno burocrata ante o grande burocrata, com base em discursos lacrimejantes sobre a santidade da frente única (das vítimas com os verdugos) e sobre a impossibilidade de admitir qualquer ditadura, inclusive a sua própria. “Teríamos podido tomar o poder em julho de 1936. Teríamos podido tomar o poder em maio de 1937…”. Era assim como os anarquistas imploravam a Negrin e Stalin para que reconhecessem sua traição à revolução. Um quadro repugnante.

Uma só justificativa: “Não tomamos o poder, não porque não pudéssemos, mas porque não quisemos, porque somos contra toda ditadura” etc., o que contém uma condenação do anarquismo enquanto doutrina contrarrevolucionária. Renunciar à conquista do poder é deixá-lo voluntariamente aos que o mantém, os exploradores. O fundo de toda revolução consistiu e consiste em levar uma nova classe ao poder, dando-lhe assim todas as possibilidades de realizar o seu programa. É impossível fazer a guerra sem desejar a vitória. Ninguém teria podido impedir aos anarquistas que estabelecessem, depois da tomada do poder, o regime que lhes parecesse, admitindo, evidentemente, que fosse realizado. Mas os dirigentes anarquistas perderam a fé neles mesmos. Afastaram-se do poder não porque haviam abandonado totalmente os seus princípios, haviam perdido a coragem, se é que algum vez a tiveram. Tinham medo de tudo, do isolamento, da intervenção, do fascismo, tinham medo de Stalin, tinham medo de Negrin. Mas a quem não temiam esses charlatães era as massas revolucionárias.

Quem se nega a conquistar o poder, abandona inevitavelmente toda a organização operária nos braços do reformismo, fazendo dela um brinquedo da burguesia; tendo-se em conta a estrutura de classe da sociedade, não pode ser de outra forma.

Lutando contra o fim, a tomada do poder, os anarquistas não podiam, afinal, deixar de lutar contra o meio, a revolução. Os dirigentes da CNT, da FAI, ajudaram à burguesia não só a se manter na sombra do poder em julho de 1936, como também a recuperar, pedaço por pedaço, tudo o que haviam perdido de um só golpe. Em maio de 1937, sabotaram a insurreição dos trabalhadores salvando, assim, a ditadura da burguesia. Dessa forma, então, o anarquista, que não queria ser mais do que apolítico, de fato se converteu em antirrevolucionário e, nos momentos mais críticos, em contrarrevolucionário.

Os teóricos anarquistas que, desde a grande prova de 1931-1937, nada mais fazem que repetir velhos contos reacionários sobre Kronstadt, afirmando que o stalinismo é o produto inevitável do marxismo, nada mais fazem que demonstrar que morreram para a revolução.

Dizeis que o marxismo é em si mesmo depravado e que o stalinismo é sua descendência legítima? Então, por que nós, os marxistas revolucionários, lutamos até a morte contra o stalinismo?

Por que a gang stalinista vê no trotskismo seu inimigo mortal? Por que toda aproximação conosco ou com nossa forma de agir (Durruti, Nin, Landau e os demais) obriga aos gangsteres de Stalin a recorrer a uma repressão sangrenta? Por que, por outro lado, os dirigentes anarquistas espanhóis, na época dos crimes da GPU, eram ministros de Caballero-Negrin, isto é, dos servidores da burguesia e de Stalin? Por que, mesmo agora, sob o pretexto da luta contra o fascismo, os anarquistas continuam sendo prisioneiros voluntários de Stalin-Negrin, ou seja, dos verdugos da revolução? Por sua incapacidade de lutar contra o fascismo?

Os defensores do anarquismo que pregam contra Kronstadt e a favor de Makhno não enganam ninguém. Tanto no episódio de Kronstadt quanto na luta contra Makhno, nós defendemos a revolução proletária frente a contrarrevolução camponesa. Os anarquistas espanhóis defenderam e defendem ainda a contrarrevolução burguesa frente a revolução proletária. Nenhum sofisma fará desaparecer da história o fato de que o anarquismo e o stalinismo estão do mesmo lado da barricada, as massas e os marxistas do outro. Esta é a verdade que penetrará para sempre na consciência do proletariado.

O PAPEL DO POUM

Não é melhor a parte que toca ao POUM. Certamente, tentou se apoiar na fórmula da revolução proletária (por essa razão, os stalinistas acusaram os poumistas de trotskistas), mas a revolução não se contenta com simples reconhecimentos teóricos. Em vez de mobilizar as massas contra os dirigentes reformistas, incluídos os anarquistas, o POUM tentou convencer esses senhores sobre as vantagens do socialismo sobre o capitalismo. A partir desse diapasão, se concentravam todos os artigos e discursos dos líderes do POUM. Para não brigar com os líderes anarquistas, não organizaram suas próprias células na CNT e, em geral, não realizaram nenhum trabalho nela. Evitando os conflitos agudos, não realizaram nenhum trabalho no exército republicano. Em vez disso, construíram seus “próprios sindicatos”, suas “próprias milícias” que defendiam seus próprios prédios e se ocupavam de seus próprios setores do front.

Ao isolar a vanguarda revolucionária da classe, o POUM debilitou a vanguarda, deixando as massas sem direção. Politicamente, o POUM esteve incomparavelmente mais próximo da Frente Popular, onde cobria a ala esquerda, do que do bolchevismo. Se o POUM foi vítima de uma repressão sangrenta e falaciosa, é porque a Frente Popular não podia cumprir sua tarefa de esmagar a revolução socialista sem destroçar, pedaço por pedaço, o seu próprio flanco esquerdo.

Ao contrário de suas próprias intenções, o POUM provou ser, em última análise, o principal obstáculo no caminho para a criação de um partido revolucionário. Os partidários platônicos ou diplomáticos da Quarta Internacional, como Sneevliet, líder do Partido Socialista Revolucionário Socialista Holandês, que demonstrativamente apoiaram o POUM em suas medidas intermediárias, sua indecisão e evasão, enfim, em seu centrismo, assumiram a maior responsabilidade. A revolução abomina o centrismo. A revolução expõe e aniquila o centrismo. De passagem, a revolução desacredita os amigos e advogados do centrismo. Essa é uma das lições mais importantes da revolução espanhola.

O PROBLEMA DO ARMAMENTO

Os socialistas e anarquistas que tentam justificar sua capitulação ante Stalin pela necessidade de pagar as armas a Moscou, com base no abandono de toda consciência e de todos os princípios, simplesmente estão mentindo e, ademais, mentem estupidamente. Certamente, muitos deles prefeririam passar sem assassinatos e sem falsificações, mas todo objetivo exige meios correspondentes. Desde abril de 1931, ou seja, desde muito antes da intervenção militar de Moscou, os anarquistas e os socialistas fizeram de tudo para frear a revolução proletária. Stalin os ensinou a levar essa tarefa até o final. Converteram-se em cúmplices de Stalin porque tinham os mesmos objetivos políticos.

Se os dirigentes anarquistas fossem somente um pouco revolucionários, desde a primeira chantagem de Moscou, poderiam responder não só com a continuação da ofensiva socialista, como também por meio da difusão, ante a classe trabalhadora, das condições contrarrevolucionárias impostas por Stalin. Ao fazer isso, teriam colocado a ditadura de Moscou entre a revolução socialista e a ditadura de Franco. A burocracia termidoriana teme e odeia a democracia. Mas também teme ver-se estrangulada pelo laço fascista. Por outro lado, depende dos trabalhadores. Tudo isso permite supor que Moscou se veria obrigado a proporcionar armas e, possivelmente, a um preço mais moderado.

Mas o mundo não se reduz à Moscou de Stalin. Durante o ano e meio de guerra civil, a indústria de guerra espanhol poderia ter avançado, adaptando uma série de fábricas civis às necessidades da guerra. Se esse trabalho não foi realizado deve-se unicamente a que as iniciativas das organizações operárias foram atacadas tanto por Stalin quanto por seus aliados espanhóis. Uma potente indústria de guerra seria uma poderosa arma nas mãos dos trabalhadores. Os líderes da Frente Popular preferem depender de Moscou.

É precisamente nessa questão onde aparece de forma particularmente clara o nefasto papel da Frente Popular, que impunha às organizações dos trabalhadores a responsabilidade das transações da burguesia com Stalin. Na medida em que os anarquistas se encontravam em minoria, evidentemente, não podiam impedir ao bloco dirigente que firmasse os acordos que parecessem convenientes com os amos de Moscou, Paris e Londres, mas o que podiam e deviam fazer era serem os melhores combatentes no front, diferenciar com precisão as traições e os traidores e explicar a verdadeira situação às massas, mobilizando-as contra o governo burguês para aumentar a cada dia suas forças para, no final das contas, apoderar-se do poder e, com ele, das armas de Moscou.

Mas o que poderia ocorrer se Moscou, devido à falta da Frente Popular, tivesse se negado a entregar as armas? E que teria ocorrido – respondemos nós – se a União Soviética não existisse? Até agora as revoluções não haviam vencido graças a protetores estrangeiros que lhes proporcionassem armas. Geralmente, os protetores estrangeiros estavam do lado da contrarrevolução. Precisamos mencionar a intervenção francesa, inglesa e norte-americana contra a União Soviética? O proletariado da Rússia venceu a contrarrevolução interna e externa sem necessidade de apoio material do exterior. As revoluções venceram, antes de mais nada, graças a um programa socialista que dá às massas a possibilidade de se apoderar das armas que encontram em seu território e de dispersar o exército inimigo. O Exército Vermelho se apoderou das reservas militares francesas, inglesas e norte-americanas, lançando ao mar os restos dos corpos expedicionários estrangeiros. Já se esqueceu disso?

Se à frente dos trabalhadores e camponeses armados, isto é, à frente da Espanha republicana, estivessem revolucionários em vez de agentes covardes da burguesia, o problema do armamento não teria desempenhado um papel tão grande. O exército de Franco, incluindo os Berberes coloniais e os soldados de Mussolini, não estava de forma alguma assegurado contra o contágio revolucionário. Rodeado por todos os lados pela conflagração da revolução socialista, os soldados fascistas seriam reduzidos a uma quantidade insignificante. Não foram as armas nem o gênio militar que faltaram em Madri e Barcelona; o que faltou foi um partido revolucionário.

AS CONDIÇÕES PARA A VITÓRIA

No fundo, as condições da vitória das massas na guerra civil contra os opressores eram muito simples:

Os combatentes do exército revolucionário devem ter plena consciência de que estão lutando por sua completa emancipação, e não pelo restabelecimento da antiga forma (democrática) de exploração.

Os trabalhadores e camponeses na retaguarda do exército revolucionário, bem como na retaguarda do inimigo, devem conhecer e entender a mesma coisa.

A propaganda em sua própria frente, bem como na frente do inimigo e em ambas as retaguardas, deve ser completamente permeada pelo espírito da revolução social. O slogan “Primeiro a vitória, depois as reformas” é o slogan de todos os opressores e exploradores, desde os reis bíblicos até Stalin.

A política é determinada pelas classes e estratos que participam da luta. As massas revolucionárias devem ter um aparato estatal que expresse direta e imediatamente sua vontade. Somente os sovietes dos deputados operários, soldados e camponeses podem atuar como tal aparato.

O exército revolucionário deve, não só proclamar, mas realizar imediatamente, nas províncias conquistadas, as medidas mais urgentes de revolução social: expropriação e entrega aos mais necessitados das reservas alimentícias existentes, a redistribuição dos alojamentos em benefício dos trabalhadores e, sobretudo, das famílias dos combatentes, a expropriação da terra e dos instrumentos agrícolas em benefício dos camponeses, o estabelecimento do controle operário sobre a produção e do poder soviético no lugar da antiga burocracia.

Devem ser expulsos sem piedade do exército revolucionário os inimigos da revolução socialista, ou seja, os exploradores e seus agentes, mesmo quando se cobrem com a máscara de “democratas”, “republicanos”, “socialistas” ou “anarquistas”.

À frente de cada divisão deve encontrar-se um comissário com autoridade inquestionável como revolucionário e como soldado.

Em cada divisão militar deve haver um núcleo homogêneo dos combatentes mais abnegados, recomendados pelas organizações operárias. Este núcleo só tem um privilégio: o de serem os primeiros a combater.

Nos tempos iniciais, o quadro de comando inclui necessariamente muitos elementos estranhos e pouco seguros. Devem ser postos à prova e selecionados com base na experiência de combate, nas recomendações dos comissários e nos depoimentos dos combatentes comuns. Ao mesmo tempo, devem ser empreendidos grandes esforços com vistas à preparação dos comandantes provenientes das fileiras dos trabalhadores revolucionários.

A estratégia da guerra civil deve combinar as regras da arte militar com as tarefas da revolução social. Não apenas na propaganda, mas também nas operações militares, é necessário levar em consideração a composição social das várias unidades militares do inimigo (voluntários burgueses, camponeses mobilizados ou, como no caso de Franco, escravos coloniais); e na escolha das linhas de operação, é necessário levar em consideração rigorosamente a estrutura social dos territórios correspondentes (regiões industriais, regiões camponesas, revolucionárias ou reacionárias, regiões de nacionalidades oprimidas, etc.). Em resumo, a política revolucionária domina a estratégia.

Tanto o governo revolucionário quanto o comitê executivo dos trabalhadores e camponeses devem saber conquistar a total confiança do exército e da população trabalhadora.

A política externa deve ter como objetivo principal o despertar da consciência revolucionária dos trabalhadores, camponeses explorados e nacionalidades oprimidas de todo o mundo.

STALIN ASSEGUROU AS CONDIÇÕES DA DERROTA

Como se pode ver, as condições da vitória são bem simples. Em seu conjunto, chamam-se revolução socialista. Nenhuma dessas condições existia na Espanha. A principal razão é a falta de um partido revolucionário. Stalin tentou trasladar à Espanha os procedimentos externos do bolchevismo: o Politburo, comissários, células, a GPU etc. Mas esvaziou todas essas formas de seu conteúdo socialista. Rechaçou o programa bolchevique e, com ele, os sovietes como forma necessária da iniciativa das massas. Colocou a técnica do bolchevismo a serviço da propriedade burguesa. Em sua estreita mente burocrática imaginava que os comissários, por si sós, eram capazes de assegurar a vitória. Mas os comissários da propriedade privada não são capazes de assegurar mais do que a derrota.

O proletariado exibiu qualidades combativas de primeira ordem. Por seu peso específico na economia do país, por seu nível cultural e político, encontrava-se, desde o início da revolução, muito acima do proletariado russo no início de 1917. Os principais obstáculos para a vitória foram suas próprias organizações. A camarilha dirigente, cúmplice da contrarrevolução, estava formada por agentes pagos, carreiristas, elementos desclassificados e todo tipo de lixo social. Os representantes das demais organizações operárias, reformistas inveterados, anarquistas charlatães, centristas incuráveis do POUM, grunhiam, duvidavam, suspiravam, manobravam, mas no final das contas se adaptavam ao stalinismo.

O resultado de todo o seu trabalho foi que o campo da revolução socialista (operários e camponeses) se encontrou submetido à burguesia ou, mais exatamente, à sua sombra; perdeu o seu caráter, perdeu o seu sangue. Não faltou o heroísmo das massas nem a coragem de revolucionários isolados. Mas as massas foram abandonadas a si mesmas enquanto os revolucionários permaneceram desunidos, sem programa, sem plano de ação. Os comandantes militares “republicanos” estavam mais preocupados em esmagar a revolução socialista do que nas vitórias militares. Os soldados perderam a confiança em seus comandantes, as massas em seu governo, os camponeses ficaram de lado, os operários se cansaram, as derrotas se sucediam, a desmoralização crescia. Não era difícil de se prever tudo isso no início da guerra civil. A Frente Popular estava destinada à derrota militar, já que tinha como meta salvaguardar o regime capitalista. Ao colocar o bolchevismo de cabeça para baixo, Stalin realizou com êxito o papel de principal coveiro da revolução.

A experiência espanhola – diga-se de passagem – demonstra que Stalin falhou completamente em compreender a Revolução de Outubro ou a guerra civil russa. Sua lenta menta provinciana ficou defasada com relação à marcha impetuosa dos acontecimentos de 1917 a 1921. Nos seus discursos e artigos em 1917, onde ele expressava suas próprias ideias, já se contém toda sua posterior “doutrina” termidoriana. Nesse sentido, o Stalin da Espanha em 1937 é o continuador do Stalin da conferência de março de 1917 dos bolcheviques. Mas em 1917 ele apenas temia os trabalhadores revolucionários; em 1937 ele os estrangulou. O oportunista tornou-se o carrasco.

A GUERRA CIVIL NA RETAGUARDA

“Mas, para se conseguir a vitória sobre os governos Caballero-Negrin, teria sido necessária uma guerra civil na retaguarda do exército republicano!”, chora aterrorizado o filisteu democrata. Como se já não existisse, sem necessidade disso, na Espanha republicana, a guerra mais pérfida e desonesta, a guerra dos proprietários e exploradores contra os trabalhadores e camponeses. Essa guerra ininterrupta se traduzirá em prisões, assassinatos de revolucionários, desarmamento dos trabalhadores, armamento da polícia burguesa, abandono no front, sem armas ou recursos, dos destacamentos operários e, finalmente, a restrição oficial do desenvolvimento da indústria de guerra.

Cada um desses atos constituirá um forte golpe para o front, uma evidente traição militar ditada pelos interesses da burguesia. No entanto, o filisteu democrata, seja stalinista, socialdemocrata ou anarquista, julga a guerra civil da burguesia contra o proletariado, mesmo na retaguarda próxima ao front, como uma guerra natural e inevitável, que tem por finalidade “assegurar a unidade da Frente Popular”. Pelo contrário, a guerra civil do proletariado frente à contrarrevolução republicana é, do ponto de vista do mesmo filisteu, uma guerra criminosa, “fascista”, “trotskista”, que rompe a unidade das forças antifascistas. Dezenas de Norman Thomas, de Attle, de Otto Bauer, de Zyromsky, de Malraux e de pequenos traficantes de mentiras do tipo Duranty e Louis Fischer, difundem essa sabedoria por todo o mundo. Enquanto isso, o governo da Frente Popular se transfere de Madri a Valencia e de Valencia a Barcelona.

Se, como os fatos confirmam, a revolução socialista é a única capaz de esmagar o fascismo, não é menos certo que a insurreição do proletariado não pode ser concebida apenas quando a classe dominante está aterrorizada pelas maiores dificuldades. No entanto, os filisteus democratas invocam precisamente essas dificuldades para demonstrar que a insurreição proletária é inadmissível. Se o proletariado está esperando que sejam os filisteus democratas quem lhe vá anunciar a hora de sua emancipação, continuará escravo eternamente. A primeira tarefa, e a principal, da revolução é ensinar aos trabalhadores a reconhecer os filisteus reacionários sob todos os seus disfarces e a desprezá-los, seja qual for esse disfarce.

O DESENLACE

Por sua própria natureza, a ditadura do stalinismo no campo republicano não poderá se prolongar por muito tempo. Se as derrotas provocadas pela política da Frente Popular empurrarem mais uma vez o proletariado a uma ofensiva revolucionária, vitoriosa desta vez, a camarilha stalinista ficará marcada com um ferro em brasa. Mas se, como é provável, Stalin conseguir terminar a sua obra de coveiro da revolução, inclusive neste caso ninguém lhe ficará agradecido. A burguesia espanhola necessitou dele como verdugo, mas ele não lhes é útil como protetor e preceptor. De seus pontos de vista, Londres e Paris, por um lado, Roma e Berlim, por outro, são muito mais sérios do que Moscou. É possível que Stalin prefira se retirar da Espanha antes da catástrofe definitiva. Tentará fazer com que a responsabilidade da derrota caia sobre os seus aliados. Depois disso, Litvinov solicitaria a Franco o restabelecimento das relações diplomáticas. Isso é algo que já vimos muitas vezes.

No entanto, uma vitória completa do exército republicano sobre Franco não significaria de forma alguma o triunfo da democracia. Os trabalhadores e camponeses conduziram os republicanos e seus agentes duas vezes ao poder: em abril de 1931 e em fevereiro de 1936. Nas duas vezes, os heróis da Frente Popular cederam a vitória do povo aos representantes mais reacionários da burguesia. Uma terceira vitória obtida pelos generais da Frente Popular significaria seu acordo inevitável com a burguesia fascista por trás dos trabalhadores e camponeses. Um regime desse tipo não seria mais do que outra forma de ditadura militar, inclusive sem monarquia e sem domínio aberto da Igreja Católica.

Em suma, é possível que as vitórias parciais dos republicanos sejam utilizadas pelos intermediários anglo-franceses “desinteressados” com a finalidade de reconciliar os beligerantes. Não é difícil de entender que, numa variante desse tipo, os últimos restos de democracia seriam sufocados nos abraços fraternais dos generais Miaja (comunista) e Franco (fascista). Mais uma vez, só pode vencer ou a revolução socialista ou o fascismo.

Por outro lado, não se exclui que a tragédia dê lugar, no último momento, a uma farsa. Quando os heróis da Frente Popular tiverem que abandonar sua última capital antes de subir ao barco ou ao avião, proclamarão uma série de reformas socialistas para deixar ao povo uma boa lembrança deles. No entanto, isso não servirá para nada. Os trabalhadores do mundo inteiro se lembrarão com raiva e com desprezo dos partidos que levaram uma população heroica à derrota.

A trágica experiência da Espanha é uma advertência ameaçadora, podendo ser a última ante acontecimentos mais grandiosos, dirigida a todos os trabalhadores do mundo. Segundo as palavras de Marx, as revoluções são as locomotivas da história, avançam mais rápidas que o pensamento dos partidos semi-revolucionários ou somente um quarto dos revolucionários. Quem ficar para trás, vai cair sob as rodas da locomotiva. Além disso, e este é o principal risco, a própria locomotiva frequentemente descarrila.

O problema da revolução deve ser analisado até o fundo, até suas últimas consequências concretas. É necessário ajustar a política às leis básicas da revolução, ou seja, ao movimento das classes em conflito e não aos preconceitos ou medos dos grupos pequeno-burgueses superficiais que se autodenominam Frentes “Populares” e todo tipo de frente. Durante a revolução, a linha de menor resistência é a linha do maior desastre. Temer o “isolamento” da burguesia é incorrer no isolamento das massas. A adaptação aos preconceitos conservadores da aristocracia trabalhista é uma traição aos trabalhadores e à revolução. Um excesso de “cautela” é a mais desagradável falta de cautela. Esta é a principal lição da destruição da organização política mais honesta da Espanha, a saber, o centrista POUM. Obviamente, os partidos e os grupos do Bureau de Londres não desejam tirar as conclusões necessárias do último aviso da história ou são incapazes de fazê-lo. Por essa razão, estão indo direto até sua própria derrota.

A título de compensação, uma nova geração de revolucionários agora está sendo educada pelas lições das derrotas. Pôde confirmar na prática a reputação ignominiosa da II Internacional. Pôde medir a profunda queda da 3ª Internacional. Aprendeu a julgar os anarquistas, não por suas palavras, mas por seus atos. É uma grande e inestimável escola, paga com o sangue de incontáveis lutadores. Os quadros revolucionários estão se agrupando apenas sob a bandeira da 4ª Internacional. Nascida em meio aos rugidos das derrotas, a 4ª Internacional levará os trabalhadores à vitória.

Eudes Baima
Professor da Universidade Estadual do Ceará - FAFIDAM/UECE