domingo, 19 de março de 2023

Contra o trabalho escravo: expropriar e estatizar as empresas da burguesia escravocrata

março 19, 2023


    O Brasil conviveu com o trabalho escravo por mais de 350 anos. Em 1888 ocorreu a “Revolução Abolicionista” que extinguiu o modo de produção escravista colonial. Um ano mais tarde, 1889, caiu a superestrutura que garantiu durante 67 anos a escravidão no Brasil independente: a monarquia escravista foi substituída pela república oligárquica. No entanto, o trabalho escravo, junto com outras formas de trabalho compulsório, permaneceu nas franjas do capitalismo periférico brasileiro. A escravidão acabou na lei, mas permaneceu nas relações de trabalho, como na atividade de imigrantes que vieram ao Brasil com a promessa de uma vida melhor.


    Hoje, em pleno século XXI, observamos que o trabalho escravo não é algo ligado à regiões atrasadas e/ou setores marginais da economia capitalista. Mas, é algo presente no modo de ser do capitalismo brasileiro. 


    Em levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com 327 ocorrências entre 2003 e 2020, o estado do Pará é o campeão nacional, com cerca de um quinto (10.427) do total de 49.076 pessoas libertadas de servidão involuntária no período. Em Minas, Goiás e Mato Grosso se encontraram em torno dos 4.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Já Tocantins e Bahia ficaram na casa dos 3.000, e Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de janeiro e Maranhão, na dos 2.000. O trabalho escravo não está presente só no campo (incluindo o garimpo), mas, também, em áreas urbanas (32,7%). E isso, é só a ponta do iceberg. É só o indício de uma realidade mais grotesca.


    O aprofundamento da crise do sistema imperialista, em particular a partir de 2008, e a desconstrução de direitos sociais pelo governo golpista de Temer (“Reforma Trabalhista” de 11/11/2017) estimularam formas mais monstruosas de exploração da força de trabalho no Brasil. Isso foi ainda mais estimulado por 4 anos do governo de extrema direita de Bolsonaro. Além do processo de precarização das relações de trabalho, ficou cada vez mais fácil para empresários burlarem direitos como jornada de trabalho, idade e remuneração mínima, além de férias, assistência na doença e na velhice. A destruição desse regime de proteção social ocorre em nome da modernidade, do mercado e da competitividade econômica. Resultado: precarização, fome, miséria, desemprego e diversas formas de trabalho forçado.


    As últimas denúncias estão ligadas a empresas capitalistas sólidas no mercado de vinho, mas, também, em fazendas de arroz, todas no Rio Grande do Sul. 


    O que os trabalhadores podem fazer diante de formas cada vez mais aviltantes de exploração?


    Além da luta e da denúncia, é preciso defender a expropriação (sem indenização) e imediata estatização de empresas e fazendas com trabalho escravo. Nas contas dos modernos escravocratas capitalistas multas e indenizações já estão incluídas como produto do mais-valor expropriado dos trabalhadores no processo de trabalho. É chegada a hora de expropriar os expropriadores.


Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO



segunda-feira, 13 de março de 2023

Cérebro humano e aprendizado: uma relação fundamental à prática docente

março 13, 2023

 


O texto abaixo é produto de um ensaio que propus às alunas e aos alunos da disciplina Psicologia da Educação, na Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA), que ministro neste semestre. Évilly e Lucas são alunes dessa disciplina e escreveram um texto que demonstra uma maturidade intelectual e posição crítica admiráveis. Espero que aproveitem, assim como eu aproveitei a leitura.


Profa. Dra. Karla Raphaella Costa Pereira

 

 

Cérebro humano e aprendizado: uma relação fundamental à prática docente

 

Não é de hoje que a sociedade debate acerca do processo de aprendizagem humana e busca entender como ela funciona, sobretudo dentro das salas de aula. Contudo, parece que mesmo com o avanço da neurociência e com o conhecimento que já se tem sobre o cérebro humano, os mesmos métodos de ensino de séculos passados continuam sendo, majoritariamente, replicados pelos professores dentro dos espaços educativos. 

Mas por que, caro leitor, mesmo com os resultados negativos na educação sendo explicitados dia após dia, os educadores continuam replicando métodos ineficazes? Vos apresento a resposta mais direta para tal pergunta: grande parte dos educadores não está a buscar conhecer o cérebro humano e sua relação com o aprendizado. Por isso, acabam tratando as salas de aula como um processo culinário em que se aplica uma receita previamente definida. Tal ato, nega o fato de que a relação entre o desenvolvimento cerebral e a aprendizagem é indissociável e que cada indivíduo possui particularidades psicológicas, históricas e culturais que influenciam diretamente no modo em que aprendem e se desenvolvem. 

Primeiramente, para compreender melhor sobre o que falamos, tomemos como ponto de partida a importância de se compreender como o cérebro humano funciona quando o assunto é aprendizagem. É sabido que a evolução da nossa espécie nos proporcionou diversos feitos e descobertas, incluindo nossa capacidade de reconhecer situações de perigo e/ou desenvolver soluções para estas. Isso se dá graças à plasticidade cerebral, que é a capacidade que o cérebro humano tem de adaptar-se. Podemos englobar inúmeros exemplos de como a plasticidade cerebral é influência ativa na evolução da espécie humana, como aprender a andar sobre duas pernas, manusear objetos com uma mão só, pedalar e etc.

Assim, dentro do aprendizado, o nosso cérebro conta com artifícios e ferramentas que, inferidos pela plasticidade cerebral, nos permitem reorganizar o mundo externo dentro da nossa mente, criando uma projeção interna do que está à nossa volta, e é isso que atribuímos o nome de aprender. Um desses artifícios é destacado dentro da pedagogia pelo que Dehaene chama de “os quatro pilares do aprender”. O cérebro humano conta com processos que contribuem e fazem toda diferença na hora de absorver uma nova informação/experiência, e estes processos estruturam os quatro pilares da aprendizagem, que são atenção focada; o envolvimento ativo, o feedback de erros e repetições diárias que resultam na consolidação do aprendizado.

Dessa forma, como pode um educador aplicar práticas educativas efetivas se desconhecer a forma como os alunos absorvem o que é ensinado e tornam isso um conhecimento real? É impossível utilizar de maneira acertiva uma máquina sem que tenhamos o conhecimento de como ela trabalha e de quais mecanismos ela precisa para que seu funcionamento aconteça de maneira eficaz. O mesmo acontece com o educador e o conhecimento do funcionamento do processo de aprendizagem. 

Além disso, não basta conhecer o cérebro e o seu funcionamento pelo olhar puramente físico e científico. Se faz necessário também reconhecer os papéis dos indivíduos inseridos no processo de aprendizagem e a relação desses indivíduos com o ambiente que o cerca. Se falamos anteriormente que aprender é ajustar os parâmetros captados do mundo exterior e criar a partir dele projeções internas, é possível inferir que todo e qualquer indivíduo possui inúmeros parâmetros já absorvidos do meio no qual está inserido, mesmo antes de adentrar no espaço de uma sala de aula. 

Diante disso, até mesmo um ser isolado em uma floresta, longe da humanidade, como acontece na ficção “Tarzan”, possui conhecimentos que foram constituídos a partir de padrões observados do seu exterior, como conhecimentos de sobrevivência, de padrões naturais, etc, que se consolidaram e foram ajustados formando um conhecimento, que não é escolar, mas é absorvido mediante o meio à sua volta. 

Dessa maneira, teorias como a do estudioso Piaget são facilmente refutadas. Tal autor desconsidera o aprendizado que o educando traz do seu meio social e cultural, tratando-o dentro da sala de aula como uma folha em branco, na qual o conhecimento será absorvido apenas a partir dali. Tal pensamento desconsidera a singularidade dos educandos e coloca-os dentro das mesmas possibilidades educativas, que acabam sendo eficazes para uns, mas ineficazes para outros, o que culmina na produção de práticas ineficazes, pois se não funcionam para todos, não foram efetivas. 

Por outro lado, enquanto educador, é preciso adotar uma postura que considere aspectos histórico-culturais do educando, isto é, considere o estudante como um ser que já entra na sala de aula dotado de conhecimentos que foram ajustados mediante os aspectos que este absorveu do meio social, cultural e psicológico no qual está inserido. Assim, o educador age sobre as diferenças, criando possibilidades educativas distintas que possam suprir necessidades e particularidades distintas.

Contudo, reconhecemos, caro leitor, que essa  não é uma tarefa fácil, principalmente em uma sociedade construída sobre anos e anos de uma educação tradicional, pautada na formação de indivíduos que atuem como máquinas de uma sociedade capitalista que enxerga o aprendizado apenas como meio pelo qual o indivíduo pode produzir e ser “útil” ao sistema. Mas é necessário tentar, persistir e buscar criar possibilidades educativas que ajam a partir do educando e não apenas sobre ele. 

Portanto, a partir do que foi discorrido aqui, é possível perceber que a relação entre desenvolvimento cerebral e aprendizado é inseparável, como propõe o estudioso Vygostky com sua teoria dialética acerca da aprendizagem e desenvolvimento. Além disso, a construção dessa relação é impossível sem que se considere os fatores histórico-culturais que cercam os indivíduos envolvidos no processo, desfazendo-se totalmente da noção de que o aluno é uma folha em branco. Reconhecer a trajetória e a carga de conhecimento do aluno é o primeiro passo para que se possa criar possibilidades, de fato, educativas, uma vez que para se criar senso crítico e seres humanos ativos na sociedade é preciso ir além do tradicional; é necessário que cada situação seja vista com um olhar pedagógico. 

Assim, possibilidades educativas eficazes requerem educadores que ajam mediante a perspectiva de que cada educando precisa ser considerado individualmente, de educadores que pensem o aprendizado em todas as suas vertentes funcionais, humanas e sociais, não apenas como uma ferramenta de manutenção capitalista.

 

Évilly Anik de Oliveira Gomes – Graduanda em Letras UFERSA

Lucas Jeorge Alves da Costa – Graduando em Letras UFERSA

 

REFERÊNCIAS 

 

DEHAENE, Stanislas. Introdução. In: ______. É assim que aprendemos: por que o cérebro funciona melhor do que qualquer máquina (ainda...). São Paulo: Editora Contexto, 2022. p. 9-28.

 

DEHAENE, Stanislas. O que é aprender? In: ______. É assim que aprendemos: por que o cérebro funciona melhor do que qualquer máquina (ainda...). São Paulo: Editora Contexto, 2022. p. 29-59.

 

 VYGOTSKY, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: LEONTIEV, Alexis [et al.]. Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem. São Paulo: Centauro, 2005. p. 25-42.

 

LURIA, A. R. O cérebro humano e a atividade consciente. In: ______. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10. ed. São Paulo: Ícone, 2006. p. 191-228.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Triste Fim de Policarpo Quaresma: uma sátira do povo brasileiro

fevereiro 24, 2023


O romance Triste fim de Policarpo Quarema, publicado em 1915, narra as peripécias da personagem Policarpo Quaresma, um patriota comicamente ingênuo e visionário que, com seu nacionalismo exaltado e utópico, sugere alguns projetos para a construção de uma identidade genuinamente brasileira acreditando contribuir por meio destes para o desenvolvimento e o crescimento de seu país.

De autoria de Afonso Henrique de Lima Barreto, mulato nascido no Rio de Janeiro, em 1881, que teve uma vida humilde e determinada pelo preconceito. Tendo sido seu pai tipógrafo e sua mãe professora, os perdeu ainda muito jovem e, desde cedo, teve que trabalhar para prover o sustento da família. A dedicação ao jornalismo e à literatura possibilitou à Lima Barreto imprimir uma crítica contundente e categórica aos aspectos sociais e políticos de sua época.

Nessa obra, o autor denuncia o preconceito racial, as relações sociais baseadas em interesses, principalmente da classe média suburbana e a corrupção dos políticos. Esse romance que é a segunda obra e a mais conhecida de Lima Barreto, inicialmente foi publicado nos folhetins do jornal do comércio, no Rio de Janeiro, em 1911, e, posteriormente em formato de livro, em 1915, tendo sua edição custeada pelo próprio autor.

O romance é dividido em três partes compostas de cinco capítulos cada uma. Na primeira parte, em seu primeiro capítulo, o autor apresenta Policarpo Quaresma “um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito”, “esquisito e misantropo”, assim julgavam os vizinhos.

Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre para baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava (BARRETO, p.09).

O autor apresenta também os ideais nacionais do personagem, que tenta defendê-los no decorrer de toda a narrativa por meio de suas expressões e ações. Quaresma mantinha uma biblioteca farta de livros de História do Brasil, de literatura de autores nacionais, fato que evidencia a exaltação ao nacional. Ele acreditava que ter o conhecimento inteiro do Brasil o levaria a “meditações sobre os seus recursos, para depois apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa” (BARRETO, p.11).

Encontram-se também nesse capítulo inicial, críticas contundentes e categóricas à aristocracia suburbana e à cultura europeia. Ao consultar historiadores, cronistas e filósofos, Quaresma concluiu que o violão era o instrumento genuinamente brasileiro e a modinha, a forma musical artística original. O personagem também exalta a riqueza e diversidade dos alimentos oferecidos pelas terras brasileiras, afirmando a potência e grande capacidade de produzir e de alimentar a sua população.

No segundo e terceiros capítulos, “a convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes cometimentos” (BARRETO, p.20). No intuito de resgatar a cultura folclórica, defendendo como sendo os costumes da tradição genuinamente brasileira, Quaresma faz empreende pesquisas e visitas à uma velha preta que cantava cantigas antigas e acompanha Ricardo Coração dos Outros em apresentações artísticas de modinhas e outras canções folclóricas.

Sem o reconhecimento esperado, tal projeto não vai em frente. Dentro de pouco tempo, empolgado com seu nacionalismo, Quaresma decide encaminhar um requerimento para a Câmara no qual sugere o estabelecimento do Tupi-guarani como língua oficial do país. No quarto e quinto capítulos, os acontecimentos narrados aludem a esse episódio e suas consequências. O quarto capítulo encerra-se com um breve diálogo entre Quaresma e Ricardo Coração dos Outros:

- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.

- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

- É bom pensar, sonhar consola.

- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens... (BARRETO, p.54).

 

Ainda nesses capítulos, as cenas narradas retratam o contexto da época acerca do casamento e da submissão da mulher, que era educada para casar e servir ao marido, a superficialidade das relações entre as classes sociais e, abordam também a temática da loucura, condição direcionada à personagem Ismênia, uma jovem abandonada pelo noivo e ao próprio Quaresma, que passa meses internado em um hospício após ser considerado insano pelo seu superior e ter tido alguns delírios.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da a loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após (BARRETO, p.56).

Considerada um enigma indecifrável da própria natureza humana, a loucura foi uma condição que esteve presente na vida de Lima Barreto, o qual esteve internado em um hospício repetidas vezes. Na cena em que se descreve a chegada de visitantes ao manicômio, o autor afirma que a loucura é uma das condições humanas que iguala as pessoas:

[...] Como em todas as portas dos nossos infernos sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos (BARRETO, p. 57).

Na segunda parte do romance, nos cinco capítulos são retratados os episódios em que Quaresma se dedica ao sítio Sossego, lugar que passa a morar depois que sai do hospício. Baseando-se na ciência, em seu conhecimento geográfico e, na certeza absoluta, das ‘excelências do Brasil’, “planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos” (BARRETO, p. 70).

         Acompanhado de sua irmã Adelaide e de seu empregado Anastácio, Quaresma dedica-se inteiramente à agricultura, momento em que ocorre no romance uma intensa valorização da fauna e da flora brasileira, exaltando-se a fertilidade das terras, a variedade do clima, o que permitiria uma produção agrícola fácil e rendosa. Para ele, tudo que se plantasse, dava, era uma questão de método e de dedicação.

         O projeto agrícola de Quaresma também não foi bem sucedido. Além de muitas dificuldades em realizar o comércio de sua produção, ele foi multado pelos políticos, o que ocorreu devido não concordar em apoiar o candidato apontado pelo tenente Antonino, sua estrutura agrícola não produziu boas safras e as formigas saúvas devoraram sua lavoura.

Com a experiência, Policarpo percebeu o descaso do governo para com a população rural e, considerando necessária uma reorganização da administração, escreveu ao marechal Floriano Peixoto, então Presidente da República, sugerindo a implementação de leis agrárias e de medidas que iriam melhorar e dar novas bases à vida agrícola.

Na terceira parte, Quaresma abandona o sítio e larga a família para dedicar-se à defesa da Pátria. Alista-se no Exército, fica à frente da revolta das armadas e luta pela integridade do país, apesar das decepções. Nesse contexto, a personagem denuncia a negligência e corrupção militarista ao ter que comprar a própria patente, bem como os desmandos e a desmedida e cruel violência incrustada no meio militar.

A manifestação de sua discordância em relação à truculência com a qual os prisioneiros “inimigos” eram tratados leva Quaresma a ser preso, considerado traidor da pátria. No capítulo cinco, antes de ser morto pelos próprios companheiros de farda, ele afirma sua decepção para com a pátria:

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia, A que existia de fato, era a do Tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati (BARRETO, p. 184).

Satirizado, desqualificado e, até criminalizado, pela sua paixão pelo país, Policarpo Quaresma representa cada brasileiro e cada brasileira que luta, diária e incansavelmente, individual e coletivamente, pela melhoria das condições de vida e reivindica políticas e medidas que promovam o bem estar social da população, uma vez que nosso país tem riqueza natural e patrimonial suficientes para tornar isso uma realidade concreta.


Marcilia Nogueira do Nascimento

Doutoranda em educação pela Universidade Estadual do Ceará - UECE - PPGE

 

Referências bibliográficas

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 2. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2017.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Lula precisa criar uma base social para avançar nas reformas estruturais

janeiro 23, 2023

 

 

A vitória eleitoral contra o bolsonarismo representou uma derrota parcial da tendência de fascistização do regime político, da recolonização do Brasil e do processo de aprofundamento das desigualdades sociais.

 No entanto, isso foi só o primeiro passo.

A tentativa golpista de criar um caos em 8 de janeiro e a oposição da oligarquia financeira às tímidas propostas de reforma revelam que o governo Lula sofre a possibilidade de cerco e derrubada.

Para evitar a possiblidade de golpe, o governo Lula deve tomar a iniciativa de fortalecer uma base social para garantir reformas estruturais no sentido de retirar o Brasil do atraso e fortalecer o protagonismo de um projeto socialista para nosso país.

Um governo eleito contra uma coalização reacionária, como no Brasil, precisa tomar medidas imediatas para deter o golpismo, consolidar um amplo apoio de massas e desestruturar as bases sociais do bolsonarismo e da oposição burguesa de direita. As mudanças exigidas precisam de um conjunto de forças sociais que participem do processo de reformas estruturais, recebendo seus benefícios e, portanto, com disposição de defender esse processo e seus resultados.

Todo processo de mudanças radicais começa com fatos que criam condições históricas novas, gerando interesses a favor de novas conquistas e disposição para defender o aprofundamento das transformações diante de resistências reacionárias. Pode-se dar o exemplo da Revolução Socialista Russa de 1917. A ação dos camponeses destruiu a propriedade latifundiária e qualquer tentativa de retorno à situação anterior implicava no enfrentamento com milhões de trabalhadores dispostos a defender suas conquistas.

Essa lição histórica é importante porque muitos governos reformistas ou de esquerda recuam de mudanças necessárias, procurando se sustentar fazendo concessões às classes dominantes e pedindo paciência para as bases. Tal postura desmoraliza o movimento que levou à eleição desses governos, levando-o à desmobilização e ao afastamento dos trabalhadores e setores populares, que não tem nada a defender.

Então nesses primeiros seis meses de governo Lula são necessárias medidas econômicas e políticas para enfrentar problemas essenciais para a maioria dos brasileiros como: questão agrária, desemprego, miséria, fome, falta de saúde e educação pública, baixos salários, transporte, moradia, inúmeras formas de opressão social entre outras mazelas.

Por isso, também é importante uma ampla mobilização por reformas. As direções sindicais, populares e a intelectualidade democrática têm uma responsabilidade imensa nesse processo.

         O tempo urge.

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O governo soviético

dezembro 12, 2022


Texto retirado do livro da jornalista, feminista e ativista política estadunidense Louise Bryant (1885-1936) Seis meses na Rússia Vermelha. Utilizamos o texto em inglês presente em www.marxists.org/archive/bryant/works/russia/ch05.htm e a tradução ao português feita pela editora Lavra palavra (BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: Lavrapalavra, 2022, p. 44-45).

 

Os sovietes[1] foram uma forma natural de organização para as massas russas devido a longa experiência de suas primitivas instituições comunitárias. Eles devem sua forte influência sobre o povo ao fato de serem os órgãos políticos mais democráticos e sensíveis jamais inventados.

O soviete é um órgão de representação proporcional direta baseado em pequenas unidades da população com um representante para cada 500. O soviete é eleito por sufrágio igual, voto secreto, com pleno direito de revogação. Um soviete não é eleito com frequência regular. Os representantes ou delegados, no entanto, podem ser convocados e reeleitos por seus constituintes a qualquer momento. Dessa forma, o semblante do soviete registra imediatamente o sentimento das massas da população. Os sovietes são baseados diretamente nos trabalhadores nas fábricas, nos soldados nas trincheiras e nos camponeses nos campos.

Cada cidade tem seu Soviete de representantes de Soldados e Trabalhadores. As diferentes partes[2] da cidade também têm seus sovietes. As províncias, os condados e algumas aldeias possuem Sovietes de Agricultores.  O Congresso dos Sovietes de Toda Rússia é formado por representantes dos sovietes das províncias, que também podem ser eleitos diretamente, sendo a proporção de um representante para 25 mil pessoas.

O Soviete de Toda a Rússia geralmente se reúne a cada três meses. Elege um Comitê Central Executivo, que é o Parlamento do País. O Comitê Central Executivo é composto por quase 300 membros. Os Comissariados do Povo, que são o Gabinete ou Ministério, do qual Trotsky é um comissário, Lunacharsky outro, e assim por diante, são eleitos pelo Comitê Central Executivo. Os comissários são homens simples na direção de um colegiado responsável por cada departamento do governo. Lênin é o presidente dos Comissariados.

O propósito geral dos Sovietes não é simplesmente uma representação territorial, mas também de ser um corpo de classe – um corpo representativo principalmente de uma classe – a classe trabalhadora.



[1] Conselhos.

[2] Bairros, distritos.