terça-feira, 28 de maio de 2019

E se questionarmos a monogamia?

maio 28, 2019




"Amar é verbo e não pronome possessivo."

"Todo mundo é a pessoa certa, até não ser mais."

"Precisamos de tempo para abandonar todas as pretensões de aprisionamento do outro; destruir qualquer intenção de cativeiro e, quem sabe um dia, amar sem construir cercas, sem adestrar o outro para o afago como recompensa."


Olá pessoas, eu quero logo dizer que este texto não tem pretenção de verdade absoluta, o autor, inclusive, não é dos que acredita nas tentativas fetichizantes e alienadas que surgem das alternativas poliamorosas de responder a problemática do afeto na contemporaneidade, não apoia, portanto, a afirmação da incerteza e da dispersão dos afetos que se consolida no mundo presente. Não se surpreenda, caro(a) leitor(a) se por ventura encontrar aqui alguma pergunta sem resposta ou alguma categoria sem maiores detalhes e desdobramentos teóricos, é pra ser assim mesmo, não tenho todas as respostas ainda.

No entanto, que tal realizarmos um breve exercício de questionar o raramente questionável? A polêmica monogamia!

Mas espera um pouco, antes de qualquer coisa assiste esse vídeo aqui que o pessoal da Vox fez na Netflix, é uma série chamada Explained e o primeiro episódio se chama, Monogamia, explicada. Assiste lá, são só 18 minutinhos, depois volta aqui pra ler o texto. Ah, e não esquece de colocar as legendas em português do Brasil!


Bora começar!

Os complexos afetivos surgem da necessidade de o ser dar resposta a problemas reais na reprodução social dos laços afetivos socialmente construídos pela práxis objetiva que foi posta em movimento no mundo. Se isto for verdade, é também verdade que o amor é, também, socialmente construído, não brota como que por instinto na subjetividade humana. De novo, se isto for verdade, é igualmente verdade que as mediações vividas pelo ser na cotidianidade contém um quantum de possibilidade de tornar esta práxis social objetiva também embrutecida, uma desumanidade socialmente posta. Quanto menos amamos, menos sabemos sobre o amor vivido no mundo atual. O amor exige ócio, exige disponibilidade afetiva para o conhecimento do(s) outro(s).

Aqui caberia um importante debate a respeito da sempre disponibilidade afetiva da mulher no mundo burguês. Tratarei deste tema numa outra matéria, não por julgá-lo secundário, mas porque pretendo, neste texto, registrar polêmicas que ainda serão temas de debates mais profícuos aqui no site. Deixarei para um outro texto, também, o amor romântico, um dos eixos que sustentam a reprodução social afetiva do patriarcado no delirante mundo burguês.

De certo modo, o mundo burguês trata de inserir uma tendência nefasta a esta forma de experimentar o afeto, a que chamamos de amor, que então deixa de ser uma elevação afetiva superior da consciência humana para tornar-se uma efemeridade bárbara, uma banalidade, uma superficialidade que não se constitui como forma eminentemente superior de contato entre no mínimo dois seres sociais que compartilham sentimentos afetivos um tanto recíprocos entre um(ns) e outro(s).

O amor tornaria-se, portanto, uma banal convenção social, um mero contrato social, uma prisão afetiva no mundo burguês? Ou amor e monogamia são coisas diferentes? Se sim, é possível amar e estabelecer um vínculo afetivo na ausência da monogamia? O amor, dentro do vínculo social afetivo que caracteriza os relacionamentos no mundo burguês, estaria necessariamente ligado a exclusividade sexual? "Eu te amo, mas você tem que ser só minha. Eu te amo, mas você tem que ser só meu."

A humanidade rebaixada com o embrutecimento da subjetividade humana somente pode ser resgatada ao imergir o ser em uma totalidade capaz de desenvolver suas potencialidades sensíveis. Esta sensibilidade passa, necessariamente, pela valoração de gestos afetivos, ou posições teleológicas que dizem respeito aos diversos afetos mesclados no cotidiano, que surgem, óbvio, dessa cotidianidade e retroagem em seu ser, em sua substância sensível, modificando sua subjetividade em direção a um patamar cada vez maior de humanização do indivíduo, de sensibilidade do ser, portanto.

A arte, como forma peculiar de refletir a realidade socialmente posta, nos traz apontamentos interessantes no que diz respeito a metamorfose sofrida por esta forma de afeto, o amor, no mundo burguês.

Vejamos especificamente a literatura.

Abelardo e Heloísa e Romeu e Julieta talvez sejam os primeiros exemplos representados na estética literária de como o amor na sociedade burguesa se tornaria uma tragédia, literalmente. Aqui surge uma interessante pergunta: É possível que as relações afetivas entre os indivíduos possam acontecer de uma outra forma que não seja o antiquado modelo de posse do corpo e do afeto do outro ser? ou pelo menos fora desta  que parece ser uma tendência geral...

“Fujo para longe de ti, evitando-te como a um inimigo, mas incessantementete procuro em meu pensamento. Trago tua imagem em minha memória e assim me traio e contradigo, eu te odeio, eu te amo.” Carta de Abelardo a Heloísa.

“É certo que quanto maior é a causa da dor, maior se faz a necessidade de para ela encontrar consolo, e este ninguém pode me dar, além de ti. Tu és a causa de minha pena, e só tu podes me proporcionar conforto. Só tu tens o poder de me entristecer, de me fazer feliz ou trazer consolo.” Carta de Heloísa a Abelardo

Agora fiquei na dúvida...

Haveria, na sociabilidade burguesa, uma dimensão trágica do amor que o torna um mero juramento formal, marcando o início de uma prisão emocional? Estaria o eu te amo perdendo totalmente o sentido, por não passar, de fato, da formalização verbal de um contrato monogâmico de relação propriedade/posse do outro que impede a demonstração de afeto por outro ser que não seja o(a) parceiro(a) monogâmico(a)? O amor, do puritano mundo burguês, é, de fato, um enclausuramento afetivo, e uma forma de propriedade privada do afeto alheio?

(...)

Conforme o gênero humano se desenvolve em meio a reprodução do capital, o processo de fetichização de mercadoria faz com que a necessidade de obtenção do dinheiro seja muito mais real do que as necessidades de elevação do gênero humano, de elevação da subjetividade humana para um patamar superior de sensibilidade estética, o sujeito sente a reverberação da propriedade privada nos complexos afetivos e se convence de que será feliz tendo a posse de outros indivíduos, tendo a posse do dinheiro, ou a posse, como forma de proprietário privado, do afeto alheio.

Ademais, há algumas considerações a serem feitas sobre os relacionamentos monogâmicos nos dois últimos séculos e as consequências desta forma de manifestação afetiva na constituição da família tipicamente burguesa. No entanto, há um fator que muito causa polêmica quando discutido, a saber, o sofrimento imanente a uma relação afetiva, a pauperização da substância sensível do ser.

Vamos falar sobre a bad!

A manifestação do sofrimento por amor (a famosa "bad", para ficarmos com os termos pós-modernistas cunhados para a caracterização deste drama existencialista) é não mais do que o ego implorando atenção, é a manifestação de uma subjetividade que encontra-se pauperizada, na dimensão dos complexos afetivos, é a expressão de um indivíduo que, de tão egoísta, não suporta estar em outro lugar que não seja o centro das atenções na vida do outro, ou pelo menos algo equivalente. O sofrimento pelo não desejo do outro em nós é a expressão madura do amor monogâmico-exclusivo-e-sexuado do período de decadência ideológica da burguesia, e contém, em sua essência, uma tendência em constituir relacionamentos afetivos que nada mais são do que prisões trágico-afetivas que tem como momento predominante o desejo sexuado.

Assim, neste início de século, os relacionamentos possuem uma enorme tendência, e cada vez mais empiricamente constatável, a pautarem suas respectivas manutenções no medo da perda de desejo que o outro tem sobre nós. Dizendo em outras palavras, o medo de perder o outro, ou o medo de perder a exclusividade do corpo do outro, desencadeia um sofrimento existencialista que começa a partir do firmamento do contrato monogâmico. Este novo nexo causal tem consequências enormes para a constituição das subjetividades masculina e feminina, qual seja, toda a sexualidade dos papéis de gênero do esposo/parceiro ideal e da esposa/parceira ideal serão erguidas a partir da alimentação deste desejo que se torna o principal eixo da conquista de um(a) parceiro(a) monogâmico(a), esta conquista constitui-se como um aprisionamento afetivo que tem no componente sexual sua mais forte característica. O sofrimento, neste caso, viria do desejo, do desejo de posse? E o amor, se fundamentaria no medo, no medo de que esta posse seja perdida? Como dissemos no início, esta é, todavia, apenas uma tendência geral, e não se constitui como uma generalização leviana de minha parte.

Veja, é o momento predominante quem estabelece o campo de possibilidades onde serão construídas as tendências gerais de escolha valorativa dos indivíduos. Quanto menor for a constituição de objetivações que intensificam os vínculos da esfera social, menor será a conexão destas ricas mediações aos elementos de continuidade que constituem a substância do ser, e maior serão as tendências que qualitativamente dirigem o processo a questões mais pragmáticas, efêmeras e passageiras, utilitaristas, imediatistas.

Se a relação no mundo burguês se torna um mero jogo ritualístico entre conquistador(a) e conquistado(a), na qual o vencedor é aquele que consegue seduzir o outro, então o jogo é sempre entre um mais fraco que você, ou você é a parte mais fraca e certamente cedeu à conquista do outro por meio de flertes e rituais sedutores. Seria esta uma tendência predominante que marca as relações afetivas no mundo burguês?

Não tá fácil pra ninguém...

Tenho consciência da efemeridade e dispersão com que ocorrem as relações sociais contemporâneas entre as pessoas, tenho consciência que cada vez mais o tempo necessário a construção de vínculos afetivos são mais difíceis devido ao devir que a história da vida acontece, tenho consciência de que é cada vez mais difícil encontrar a confiança, o companheirismo, a espera do apoio afetivo, a amizade, etc... em uma pessoa imersa na mundaneidade caótica de hoje… Parece que só nos resta confiar nos instintos sexuais e tolerar quaisquer qualidades que “já vem” com as pessoas. Mas as coisas não são assim, tão mecânicas. Isto não é ser realista, isto é ser pessimista e mecanicista. Uma compreensão realista entenderia que dentro do processo em que ocorre a realidade já estão contidas as condições de superação. Nenhuma realidade é mecânica e imutável. O ser nunca estará imerso em condições inelutáveis, o real só é real por conter nele o contraditório. O contraditório não se constitui de dados inamovíveis, o contraditório não é “os contrários”, nem “os opostos”, o contraditório é a condição de possibilidade de superação do atual estado de coisas que tende a um estágio mais complexo de objetivação do que as condições de outrora.

Ao entender que o desenvolvimento real de um superior patamar de afetividade é constituído por objetivações que nada mais são do que respostas que os indivíduos dão às suas vidas, ao compreender isso também é possível entender que é dentro do processo da relação social que estão os momentos predominantes de escolhas, ou seja, é dentro do processo que se acumulam uma série de momentos predominantes capazes de se sintetizarem para, em um futuro, inserirem uma direção, um rumo ao processo total. Dizendo em outras palavras, não é algo inexplicável, fora do real, místico ou inumano que mantém as relações afetivas, é a atividade sensível das pessoas que mantém o vínculo afetivo, a forma de manifestação do afeto que chamamos de amor não é algo inexplicável, portanto, é algo social, é socialmente construído e portanto tem de ser posto em movimento por atos humanos, eminentemente humanos.

O individualismo burguês nos faz pensar que nossa esfera individual é autônoma e não afeta outros indivíduos. É um egoísmo cego que nos retira da coletividade e nos distancia da possibilidade de elevarmos nossas capacidades sensíveis e nos tornarmos mais humanos e humanizados. Nos afastamos de uma rica vida social compartilhada, buscamos a felicidade em relações mais pragmáticas e efêmeras, algo que desumaniza e rebaixa a substância sensível do indivíduo.

Vivemos em tempos de dispersão de afetos. Amar é um ato revolucionário!

Em tempo, o poliamor é um falso caminho, uma alternativa fadada ao fracasso. E cabe aqui uma pergunta para um próximo texto, quem sabe... o poliamor reforça ainda mas os privilégios do patriarcado?

"A ausência temporária faz bem (...) os pequenos hábitos, que podem irritar fisicamente e assumir uma forma emocional, desaparecem quando o objeto imediato é removido do campo de visão. As grandes paixões, que pela proximidade assumem a forma da rotina mesquinha, voltam à sua natural dimensão através da magia da distância. O ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado”

Marx em carta à sua esposa, Jenny. 

Bruno
Doutorando em Educação (UECE)
Membro do GPOSSHE/IMO/UECE


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segunda-feira, 27 de maio de 2019

Uma conversa sobre literatura: A angústia da existência

maio 27, 2019



Olá, eu me chamo Antônio Marcondes, sou professor do curso do Pedagogia da UECE, membro do GPOSSHE, membro do GEM, Grupo de Estudos Marxistas da UFC, e hoje vamos conversar um pouco sobre literatura!

Bem pessoal, eu vou falar um pouco de três livros que li recentemente. Ivan Tuguêniev, um russo que escreveu o livro DIÁRIO DE UM HOMEM SUPÉRFLUO, essa obra é de 1850 e a crítica literária a considera como um marco no que na literatura russa, principalmente, muito conhecido a partir de Dostoiévski, ficou marcado a ideia de O Homem do Subsolo.


Então, essa perspectiva do personagem literário da literatura russa, aparece primeiro em Turguêniev, nesse livro. Turguêniev vai contar a história de um indivíduo chamado Tchulkatúrin, que se apaixona por uma jovem mulher da pequena nobreza de uma província da Rússia, ele acaba se apaixonando por essa jovem mulher mas o desenlace dessa história é trágico, pois a personagem, o Tchulkatúrin, acaba se desencontrando nessa relação, ele começa, então, a assimilar uma concepção de existência fortemente marcada pelo desencontro, pelo desacordo entre a vida e ele mesmo.

Ocorre que o amor de Tchulkatúrin não é correspondido, e a partir dessa recusa por parte da Liza, que é a mulher cuja qual o amor de Tchulkatúrin é efusivo e intenso, surge um desenlace, digamos, trágico, nessa relação. Trágico porque ele se apaixona de tal forma que a vida dele começa a mudar, porém, a não correspondência do amor o deixa numa situação de profundo pessimismo, de enclausuramento, de negação da própria existência, e Tchulkatúrin narra sua história em forma de diários, diários íntimos em que ele discorre sobre essa experiência amorosa trágica, ou seja, a não correspondência do seu amor por Liza.

E há uma peculiaridade nessa história porque Tchulkatúrin recebe um diagnóstico do médico de que terá poucos dias de vida, ele padece de uma enfermidade incurável, sabe que vai morrer e, nessa perspectiva trágica, ele começa a relatar nesses diários uma experiência de vida concreta que, no caso, é esse amor não correspondido que vai repercutir em toda sua vida, na sua concepção de mundo, na ideia que ele tem de existência como ele mesmo diz no início do livro, sabendo que vai morrer... e a consciência da morte o toma de tal forma, que o deixa em desespero, mas ele recusa o desespero afirmando que não vai fazer reflexões filosóficas sobre esse momento, sobre a ideia da morte, mas vai falar sobre um fato concreto da sua vida que o marcou profundamente.

Então, com esse livro, Turguêniev caracteriza o indivíduo enclausurado, torturado pelas suas angústias, que vive as opressões do sentimento amoroso, pois esse sentimento não é correspondido. O que é muito interessante nessa obra é que Turguêniev coloca em cena um personagem atormentado, um personagem oprimido por um amor não correspondido, mas essa opressão, ela também é um reflexo do regime opressivo do Tsar Nicolau I, que sufocava o pensamento crítico na Rússia do século XIX, que perseguia opositores, toda essa atmosfera opressiva vai repercutir na obra de Turguêniev.

Ele constrói um personagem que também é um reflexo dessa Rússia do século XIX, desse regime opressor que foi o Tsarismo, e a história é focada nisso. Então, a partir dessa personagem, o Tchulkatúrin, Turguêniev cria um personagem típico, que é o indivíduo que na literatura russa, de um modo geral, é conhecido, a partir de Dostoiévski, como o homem do subsolo. É aquele homem enclausurado, torturado, imerso nas suas próprias contradições existenciais, e eu trouxe esse livro do Turguêniev porque ele também suscita um assunto importante na literatura, principalmente na literatura europeia do século XIX, de final do século XIX e do século XX, que é a ideia do indivíduo moderno submetido às opressões da burocracia, e aqui já entro num outro assunto literário, que é a obra do Kafka, O PROCESSO.

Essa obra é considerada um dos marcos da literatura do século XX e a principal característica dessa obra do Kafka é a ideia do absurdo existencial, que se configura na história do Josef K. que é um funcionário de um banco que num determinado dia, repentinamente, quando tomava café da manhã, é surpreendido com a presença de dois representantes da justiça, que o acusam de um ato ilícito que ele não sabe o sentido, que ele não cometeu. A justiça está o acusando de tal forma que ele tem que responder a esse inquérito, mas toda essa narrativa do Kafka mostra o quanto o Estado moderno e seus aparelhos constitutivos, como a justiça, se constituem como instrumentos de opressão.

Então, Kafka é considerado, por exemplo, por Camus, o precursor de um debate fundamental na literatura, do final do século XIX e do século XX, que é exatamente o absurdo existencial. O Estado moderno cria mecanismos jurídicos, políticos e culturais que oprimem o indivíduo, criando um mal estar, e essa obra é um retrato desse indivíduo moderno oprimido pela burocracia do Estado.

Nessa obra Kafka cria um tipo literário que vai ser uma marca de sua literatura, que é o indivíduo angustiado, o indivíduo atormentado, que está submetido a mudanças de ânimo, de entusiasmo, e que ora é eufórico ora é depressivo, um indivíduo submetido a condições existenciais, que o tornam um indivíduo contraditório. Mas essa contradição existencial, essa contradição íntima, é uma expressão como reflexo das próprias contradições da sociedade moderna, e esse assunto, o absurdo, tão presente na obra de Kafka, O Processo, também presente em outras obras, como em A Metamorfose, e O Castelo, o absurdo é resgatado por Camus no Mito de Sísifo, onde o filósofo e escritor francês vai discorrer sobre a condição existencial do homem moderno.

O Camus, por exemplo, no Mito de Sísifo, vai perguntar o que constitui o absurdo? Para ele, o absurdo é a razão que constata seus limites. É o indivíduo submetido a circunstâncias sociais determinadas que se baseiam, na possibilidade de se escolher um modo de vida, mas as escolhas de um modo de vida estão submetidas a exigências da sociedade que, muitas vezes não liberta mas, do contrário, o oprime.

Então, nós vivemos uma existência absurda. Camus, ao suscitar esse tema ele está pensando as contradições do capitalismo moderno, as opressões de um sistema que sufoca o indivíduo, que o torna um sujeito submetido a situações existenciais que vão da razão lúcida a euforia pessimista, o que é muito próprio das contradições existenciais, essa mistura de sentimentos, de ideias, de visões de mundo de um autor como o Josef K. na obra do Kafka, representa exatamente isso que o Camus no Mito de Sísifo discute, a vida como uma condição que suscita paradoxos constantes.

Então, esses personagens da literatura, principalmente europeia, final do século XIX e final do século XX, mostram exatamente isso, que as contradições existenciais são um reflexo de contradições sociais, próprias de uma sociedade, de um Estado que oprime, que segrega, que dilacera o indivíduo a partir de seus instrumentos de burocratização. Então, trago essa breve e genérica reflexão sobre essas três obras literárias pra gente pensar, discutir, refletir aqui no canal do GPOSSHE a importância da literatura enquanto uma reflexão crítica sobre a condição existencial dos indivíduos na sociedade capitalista moderna. Então, é isso pessoal, obrigado pela leitura.

Antonio Marcondes dos Santos Pereira
Doutor em Educação (UFC)
Membro do GEM/UFC

sábado, 25 de maio de 2019

Uma conversa sobre literatura: O Lobo da Estepe

maio 25, 2019



Bem pessoal, iremos falar hoje sobre o livro de Harman Hesse, O Lobo da Estepe, foi escrito em 1927 e ele conta a história de Harry Haller, uma personagem que vive situações de angústia social, de angústia existencial, que o coloca numa situação própria de um período histórico que é marcado pela instabilidade, que é o período entre guerras, ou seja, aquele momento pós primeira guerra mundial, vésperas da segunda guerra mundial e da crise de 29, provoca abalos no sistema capitalista e essas contradições e desequilíbrios, essas desagregações sociais, vão repercutir na subjetividade das pessoas e o Herman Hesse vai tentar capturar nesse livro exatamente essas influências, e o Harry Haller vive uma personagem que tem muitas dubiedades, de caráter, de posições políticas de posições morais, e o livro está baseado em três versões sobre o personagem.

Na primeira, há um suposto editor que é sobrinho de uma proprietária de um albergue, no qual o Harry Haller vai se hospedar, vai passar alguns meses, e esse sobrinho da proprietária desse albergue vai narrar as impressões que ele tem sobre a personalidade de Harry Haller, um cara singular, solitário, de hábitos incomuns, e que vai representar, para o suposto editor, um verdadeiro choque, digamos, um choque cultural, de comportamento, pois o suposto editor é um típico burguês, muito apegado as convenções burguesas, a moral burguesa, a tradição da família, e o Harry é um sujeito solitário, enclausurado, que vive mergulhado nas leituras de Goethe, ouvindo as músicas de Mozart, e é esse sujeito que tenta afirmar a sua existência, em meio a tentativa de se consolidar enquanto um sujeito independente, ou seja, independente das convenções burguesas, das exigências do mundo social, capitalista, propriamente falando, então, nessa primeira versão do personagem de Herman Hesse há esse suposto editor que narra as impressões sobre essa figura singular que é o Harry Haller.

No segundo momento a história é, digamos, o pesadelo do Lobo Haller, que, em sua depressão, em sua incapacidade de se comunicar, está na base da crueldade da auto destruição, assim é que o autor se refere a esse personagem, ou seja, ele relata as experiências de angústia, de depressão, de instabilidade do Harry, de forma a mostrar que a ambivalência, do caráter de Haller, e por que o Lobo da Estepe? O Lobo da Estepe é uma personagem que representa exatamente uma metáfora do homem solitário, que vive tentando lapidar o seu destino sem projetar digamos, expectativas esperançosas, então, ele vive a sua vida, e imerso a essa contradição de existir, o autor vai desenhando uma personagem carregada de ambiguidades, então, o lobo da estepe seria essa segunda versão, o próprio Harry Haller, na personagem do lobo, ele vai narrar como esse personagem vai ser inserido na história, por exemplo, há uma passagem do livro que é muito sintomática sobre isso:

“Ah, é difícil achar esse trilho de Deus em meio a vida que levamos na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens, como não haveria de ser em o Lobo da Estepe, em um mísero eremita, em meio de um mundo cujo objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para minha felicidade e vida, e êxtase, e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção, na vida, parece-lhe absurdo. E de fato, se o mundo tem razão, se essa busca dos cafés, essas diversões em massa, esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco tem razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes, aquele animal extraviado, que não encontra abrigo, nem ar, nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”

Nessa passagem, podemos perceber o nível de descontentamento, de recusa, por parte do Lobo da Estepe, Harry Haller, do mundo burguês, das convenções burguesas, é importante lembrar que o contexto entre guerras é um momento histórico de emergência dos regimes totalitários na Europa, particularmente o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália, respectivamente, então o autor também se coloca diante da emergência dessa barbárie humana, ou seja, desse mundo que ao mesmo tempo desenvolve uma tecnologia que faz avançar vários processos sociais, culturais, como o automóvel, e outras conquistas tecnológicas, ao mesmo tempo favorece a emergência da barbárie humana, como foi o nazismo, o fascismo.

O autor, com esse personagem, ele desenha os sentimentos, as intuições, os desejos e a busca de um indivíduo que não se realiza nesse mundo, capitalista, mas, é necessário pontuar também que o próprio personagem, por exemplo, nesse momento em que ele se reveste do Lobo da Estepe, ele é um autor contraditório, um personagem contraditório, melhor dizendo, porque ao mesmo tempo que ele recusa as convenções do mundo burguês, ele não quer se desligar disso, porque ele ainda assim, por exemplo, já num outro momento da obra, o Harry, ele é um homem que tem família, é casado, depois se separa, tem conta no banco, mantém um círculo de relações ainda que escassas, mas mantém um círculo de relações com, digamos, pessoas da classe média burguesa da Europa, a Alemanha na primeira metade do século XX.

O Harry Haller, na figura do Lobo da Estepe, é esse sujeito contraditório e imerso num mundo cheio impasses, de ambivalências, mas, o Lobo da Estepe busca, sobretudo, a própria independência, ele é um sujeito que quer lapidar o seu destino, não com a expectativa de uma esperança realizável, mas como desejo de vivência do momento, então, é um sujeito que tenta se equilibrar entre os abismos da angústia e as euforias do momento que reserva certas satisfações, como por exemplo, ouvir a música de Mozart, ler os livros de Goethe, então, nessa segunda versão sobre Harry Haller, o Lobo da Estepe se manifesta, como aquele sujeito indômito, selvagem perigoso, que busca, no momento, ali, de imediato, uma certa satisfação que é inescapável para ele, para sua sobrevivência.

Numa terceira versão sobre o personagem temos um momento em que o Lobo se humaniza, ou seja, através da entrada em cena de Hermínia, que tenta reaproxima-lo do mundo, com salas de baile poeirentas e bares pobres, como diz aqui na orelha do livro, então o lobo da Estepe foi um livro escrito quando Herman Hesse tinha 50 anos, e o autor, Harry Haller, tem 50 anos, então, é um pouco disso, o próprio Herman Hesse criou esse personagem para também expressar as angústias dele não apenas como escritor, mas também como sujeito submetido às intempéries políticas, culturais e econômicas do seu tempo próprio, então, quando ele vai dizer:

“A custa da intensidade, consegue, pois, a subsistência e a segurança, em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência, em lugar do prazer a satisfação, em lugar da liberdade, a comodidade, em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável.”

Então, o livro, carrega essa significação da ambivalência, do sujeito que vive as contradições de um mundo em degenerescência moral, ética, política, própria do nazismo, do fascismo, da crise de 29, e consequentemente a segunda guerra mundial, pois as expectativas esperançosas não alimentadas pelo personagem, são como se fossem uma antevisão da tragédia que será, doravante, a segunda guerra mundial, então, o Lobo da Estepe é isso, e para configurar isso que o autor narra, eu concluo essa breve exposição: com mais uma passagem, do livro:

“Além disso, agrada-me o contraste que apresenta minha vida, esta minha vida solitária e sem amor, gasta e inteiramente desordenada em relação ao ambiente familiar e burguês. Agrada-me respirar na escada este cheiro de calma, de ordem, de limpeza, de decência e de domesticidade, o que, apesar de meu desprezo pela burguesia, tem sempre algo de comovente para mim, e me apraz também atravessar o umbral do meu quarto, em cujo interior tudo isso se acaba, onde entre os montões de livros aparecem pontas de cigarro e garrafas de vinho vazias, onde tudo está desordenado e negligente, e onde tudo, livros, manuscritos, pensamentos, está marcado e embebido pela miséria de um solitário pela problemática do ser humano, pelo anseio de dar um novo sentido a uma vida humana que já perde o seu rumo.”

Por fim, pessoal, convido vocês a fazerem a leitura do livro de Herman Hesse, O Lobo da Estepe, um clássico da literatura universal, que seguramente influenciou vários movimentos literários e filosóficos, como o existencialismo, na segunda metade do século XX, e fico aberto pra que pensemos a literatura , a arte que busca compreender as contradições da vida, é isso, um abraço e até outra oportunidade.

Antonio Marcondes dos Santos Pereira
Doutor em Educação (UFC)
Membro do GEM/UFC

O anti marxismo de Carla Akotirene

maio 25, 2019




Olá, pra quem não me conhece, eu sou Karla Costa, sou membra do GPOSSHE, e nesse texto nós vamos esclarecer um pouco mais sobre o antimarxismo de Carla Akotirene. Num dos textos passados aqui do site, discutimos sobre a categoria, o conceito de interseccionalidade, e nos baseamos, principalmente nessa obra da ativista negra Carla Akotirene, atualmente ela é, inclusive, doutoranda em Estudos Interdisciplinares de Gênero, Mulheres e Feminismos, pela UFBA, e nesse texto eu citei rapidamente o fato da autora fazer uma crítica a teoria marxista, considerando Karl Marx e Friederich Engels, a teoria fundada por eles, como uma teoria eurocêntrica e branca, portanto, uma epistemologia que deve ser negada pela luta negra, e é importante aqui discordarmos dessa perspectiva e dizer que o antimarxismo dessa autora é nefasto pra classe trabalhadora, mas por qual motivo?

Não é o fato de uma teoria ser elaborada por um branco ou por um negro, por um indígena, não é a localização social do indivíduo que elabora uma teoria que qualifica ou não essa teoria, o que a qualifica é a correspondência dela com a realidade, e aí percebemos esse antimarxismo dela, e esse anti epistemologias brancas e eurocêntricas, nessa própria obra que ela discute Interseccionalidade, quando ela diz que vai rejeitar expectativas literárias elitistas, jargões literários, escrita complexa, abstrações científicas paradoxais, que essas teorias são míopes a gramática ancestral da África e Diáspora, ela vai rejeitar também a tomada da mulher de maneira universal, enfoques socialistas encurtados a questão de classes, que segundo ela, negaram as humanidades africanas, todas essas categorias que ela rejeita, precisariam ser discutidas uma por uma pra gente entender que essa negação simplista não justifica a rejeição a teoria marxista ou qualquer outra teoria que se localize nesse lugar social do indivíduo privilegiado, digamos.

Por exemplo, quando ela critica a categoria de mulher universal ela afirma, e nesse sentido, há um fundamento de verdade, de que o feminismo foi descampando para uma perspectiva burguesa, branca, isso realmente aconteceu, principalmente, no feminismo estadunidense, e até hoje, o feminismo mais difundido é o que a gente tem chamado de feminismo liberal e essa perspectiva de uma luta das mulheres por questões de liberdade de expressão, de salários equivalentes aos dos homens, ser dona do próprio corpo, poder andar na rua, expor seu corpo em revistas, enfim...

Inclusive, saiu um artigo esses dias, e ele circulou nas rodas feministas, sobre o feminismo de mercado, vou deixar aqui o link. Então, quando ela afirma que o feminismo descampou muito para essa luta, esquecendo as singularidades das mulheres negras, pobres, ela tem total razão, o que não significa que ao falar em universalidade estejamos falando que essas mulheres são universais, no sentido de que elas representam todas as mulheres.

Para o materialismo histórico e dialético, o universal é o que se repete através do múltiplo, do diverso, do diferente, então, quando pensamos numa categoria universal, a gente não esquece as singularidades, pois a universalidade só existe porque há singularidades, então, em cada singularidade há traços que se repetem, então são esses traços que a gente considera universal, esses traços estão presentes tanto em mulheres brancas quanto em mulheres negras, quando a gente luta pela liberdade universal do ser humano, é a liberdade de todos os indivíduos, e aí a teoria marxista vai explicar pra gente que essa liberdade é possível, historicamente ela já está, inclusive, dada, no sentido de que o capitalismo já se desenvolveu suficientemente pra dar condições de existência para todos os indivíduos singulares, mas isso não aconteceu porque a sociedade capitalista também se refaz e reestrutura sua forma de opressão, sua forma de exploração.

Nesse sentido, por que a mulher branca foi pensada como universal? Universal é, no pensamento também, uma abstração singular, então, você tendo, como elas mesmas identificam, uma epistemologia hegemônica, uma fala hegemônica e as mulheres negras não tendo esse espaço, e precisando disputar esse espaço de fala, de pensamento, de conhecimento, a mulher branca foi pensada como universal porque é a mulher branca que é majoritária na classe dominante, e que tem, portanto, a hegemonia do pensamento, da fala e do conhecimento, então, é preciso sim, dentro do feminismo lutar contra a hegemonia e dessa ideia de que a mulher universal é a mulher branca, só que isso não pode significar a gente rejeitar as teorias que foram produzidas por homens e mulheres brancas, apenas por esse fato, se essas teorias correspondem com a realidade e nos dão fundamento pra superar a sociedade capitalista elas nos são caras, do mesmo modo que se elas tivessem sido produzidas por homens e mulheres negras, pobres, da periferia, enfim... ainda há que se pensar as condições objetivas de produção intelectual da classe trabalhadora, pra gente entender que, apesar das experiências e das vivências individuais serem importantes pra luta, não necessariamente esses indivíduos vão poder se produzir teoricamente.

Então, essa imagem, que a mulher branca é a mulher universal, isso não passa de aparência, ou seja, é uma visão turva da realidade, na essência, a compreensão universal de mulher é uma construção histórica, tanto que a Simone de Beauvoir já nos deixou muito bem explicado isso, nós não nascemos mulher, nos tornamos mulher, num processo histórico que é uma série de determinações, que constroem essa ideia, esse conceito de mulher, que são sociais, pessoais, que são históricas, culturais, enfim...

Todas essas determinações vão convergir para a construção de um conceito de mulher universal, então, por mais que esse movimento que a gente aqui critica, esse feminismo negro liberal, venha criticar o marxismo, é preciso afirmar que o marxismo é sim uma teoria universal, por mais que Marx e Engels tenham sido europeus, brancos, e, no caso do Engels, principalmente, seja um filho de burguês, mas esses dois homens, eles não tinham só uma fala revolucionária, mas uma prática revolucionária, e essa teoria que eles legaram para a humanidade, essa teoria é revolucionária, diferentemente da posição de Carla Akotirene, que é uma posição contrarrevolucionária, uma mulher negra, periférica, militante do feminismo negro, mas que está produzindo uma teoria que faz uma defesa de uma postura nefasta para a classe trabalhadora, pois, sem teoria revolucionária não há prática revolucionária.

Não basta entender a opressão, é preciso superar a opressão e já tenho dito isso aqui em alguns vídeos. E aí, se há ainda alguma dúvida do que eu falei sobre esse antimarxismo dessa autora, vocês assistir um vídeo de um evento chamado MULHER COM A PALAVRA, no qual Carla Akotirene, vai dizer que a interseccionalidade é uma encruzilhada pra Exu nunca mais comer marxismo, essa frase é uma prova do antimarxismo dessa autora, e esse antimarxismo é que não deveria ser comido por Exu.


Karla Raphaella Costa Pereira
Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)

Sobre o conceito de interseccionalidade

maio 25, 2019




Olá, meu nome é Karla Costa, faço parte do GPOSSHE desde 2014, e atualmente sou doutoranda em Educação, pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Esse texto diz respeito a uma série de discussões que pretendemos fazer em torno das relações identitárias, das pautas identitárias, das categorias que essas pautas identitárias trazem, principalmente para a luta feminista, à exemplo da Interseccionalidade,  da sororidade, do lugar de fala, do empoderamento... São categorias que são desenvolvidas há algum tempo, mas que pra muitas mulheres, que estão no interior da militância, elas são categorias ainda confusas. Daí a necessidade de a gente discutir essas categorias, compreendê-las e avançar na luta, inserindo a pergunta: "Porque essas discussões no interior do feminismo são importantes para a luta de classes, para a transformação dessa sociedade?" 

O primeiro tema a ser debatido é o da INTERSECCIONALIDADE.

Confesso pra vocês que quando comecei a estudar pra escrever esse texto e discutir esse tema, eu achei que viria aqui pra fazer uma crítica contundente ao tema da Interseccionalidade. Nos atuais textos que trabalham a questão da interseccionalidade dentro do feminismo, principalmente dentro do feminismo negro, eu achava que faltava uma compreensão mais profunda da classe, da necessidade de superação do sistema capitalista, e então, da necessidade de extinção das classes sociais, da forma como elas são apresentadas nesse sistema. Mas ao estudar o tema da Interseccionalidade, ao pesquisar outros textos que definiam, explicavam e historicizavam o termo, eu compreendi que a Interseccionalidade, surge, justamente num contexto da necessidade de defender aquilo que é um feminismo classista.

Por onde eu comecei? Comecei estudando e lendo esse livro da Carla Akotirene, uma doutoranda, em Ciências Sociais, e uma das autoras da série Feminismos Plurais da editora Letramento com o Justificando, coordenado pela Djamila Ribeiro. Nesse livro, é muito confusa a categoria da Interseccionalidade como ela foi apresentada, pois não há uma explicação clara, detalhada, do que ela significa, então, partindo desse livro, eu fui buscar outras obras e encontrei uma autora, também doutoranda, da Universidade Federal Fluminense - UFF, chamada Bárbara Araújo Machado, e ela publicou um artigo que se chama: "INTERSECCIONALIDADE, CONSUBSTANCIALIDADE, E MARXISMO: DEBATES TEÓRICOS E POLÍTICOS." Nesse artigo a autora explica com mais propriedade, com mais clareza, o que significa a Interseccionalidade.

Aqui está o link do artigo pra que vocês possam acessar e ler na íntegra. Nele ela vai explicar que a Interseccionalidade, surge como termo oficial na década de 1990, cunhado por uma pensadora, feminista, militante e negra, Kimberlé Creenshaw, e essa autora vai cunhar esse termo no intuito de expressar a necessidade de articular, as diversas opressões: Gênero, raça e classe.

Mas ela não é a primeira a pensar numa ideia da intersecção dessas opressões, já na década de 1970, em obras, palestras e falas de coletivos de feministas negras, que surgem nessa década, elas já apontavam essa necessidade, fazendo uma crítica, ao feminismo liberal, que partia de uma concepção do que elas chamam de mulher universal.

Uma categoria importante pra gente retomar em outro texto.

Partindo dessa compreensão, as mulheres não são iguais, as opressões que elas sofrem não são iguais, é necessário, uma categoria, uma epistemologia, uma metodologia, que permita as mulheres, enxergar essas diversas intersecções. Essa autora, Kimberlé Creenshaw, explica o termo Interseccionalidade por meio de uma analogia, segundo a qual, a Interseccionalidade é a possibilidade de enxergar um cruzamento, uma via, na qual, os diversos cruzamentos são as diversas opressões.

Nessa via, a mulher negra é atingida por diversas opressões, não apenas classe, raça ou gênero. Essa perspectiva é fundamental pra gente entender, por exemplo, porque uma mulher negra, pobre, sofre uma opressão diferente de uma mulher negra da classe dominante. Só entendendo, as diversas opressões que atingem essas diferentes mulheres, você compreende o lugar que elas estão posicionadas na sociedade.

Qual o problema da compreensão atual da Interseccionalidade? É uma falta de radicalidade na compreensão do que é a classe. Essa autora, a Bárbara, explica isso muito bem, quando diz que algumas autoras atuais, que discutem a Interseccionalidade, compreendem a classe de maneira quantitativa. Seria: o quanto de dinheiro possui um indivíduo ou a mulher e o quanto ele pode acessar de consumo. Então, é uma compreensão que não radicaliza a posição qualitativa das classes. Ou seja, qual a estrutura que organiza essas classes? A qual classe ela pertence? Qual o fundamento dessas classes?

Nesse sentido, esse cruzamento, onde essa mulher negra está, (e agora usarei um termo da Carla Akotirene) está "acidentada" (AKOTIRENE, 2018), pra entender esse cruzamento, não basta a gente entender as opressões, apenas no seu caráter identitário. Não é só uma questão de identificação, é uma questão ontológica. A Bárbara Araújo faz justamente essa crítica, quando a Carla Akotirene define a Interseccionalidade nesse livro, ela vai usar diversas vezes a palavra epistemologia, e ela não avança a partir disso.

O que é Epistemologia? É um estudo do conhecimento, das possibilidades do homem conhecer, da relação de um sujeito questionador e um objeto a ser conhecido. Ao ficar apenas no campo da Epistemologia, nós podemos criar a ideia de que as categorias são eternas, de que os objetos já estão prontos, de que eles são dados a priori, a partir daí você pode compreender que a categoria Mulher Universal é pré-existente, então, há uma mulher universal, que já existe, e ela não foi posta.

Nesse sentido, a autora Bárbara Araújo Machado, faz a crítica ao atual conceito de Interseccionalidade, que se tornou famoso por volta dos anos 2000, segundo ela, por uma distorção do termo, que vai retirar justamente o caráter classista, ela vai criticar que ele se define como uma epistemologia, negando o caráter ontológico, da compreensão dessas opressões. Isso fica muito claro quando a gente compara com o livro da Carla Akotirene, pois ela cita diversas vezes que a Interseccionalidade é uma epistemologia, um olhar, uma sensibilidade...

Tudo isso, dentro do campo da epistemologia que é a compreensão da Teoria do Conhecimento, de como o homem pode conhecer, torna essa categoria uma universalidade, dá a categoria um status de teoria, que não é explicado pela Carla Akotirene. Segundo Bárbara, quando esse termo é cunhado pela Kimberlé Crenshaw, ela não tinha o objetivo de tornar esse termo uma categoria, mas era, em caráter provisório, uma metodologia pra avançar nas lutas feministas, nas pautas feministas e combater o feminismo liberal.

O feminismo liberal, ao compreender as classes apenas nesse sentido quantitativo, de acesso ao consumo, através da posse do dinheiro, cria a ideia de que as classes são eternas. Então, o que o feminismo vai conseguir são lutas pontuais para que mulheres saltem para classes, onde esse valor quantitativo de quantidade de dinheiro e acesso ao consumo, e as oportunidades dentro do sistema capitalista, sejam acessíveis, pois são negadas a essas mulheres negras, aqui dentro da luta do feminismo negro.

Ao contrário, a Bárbara vai defender a necessidade de compreender ontologicamente essas opressões, para a partir daí entender o que é classe, quais são e como se formaram historicamente, então ela vai defender que a questão não é negar a Interseccionalidade, mas dar a essa categoria um caráter histórico e dialético, não é nem dar, na verdade, é resgatar a origem do termo, quando as feministas negras norte americanas vão defender e disputar no feminismo liberal, que avançava na época, esse caráter de classe.

Então, porque a Interseccionalidade compreendida na perspectiva liberal precisa ser combatida? Porque ela não ameaça o sistema capitalista. Ao contrário, o sistema capitalista se apropria desses discursos que aparentemente estão defendendo as mulheres negras, pobres, faveladas, mas, na verdade, estão condicionando a permanência delas na classe onde elas pertencem, na classe expropriada pelo sistema capitalista.

Não é só o discurso, não é só dizer que é feminista negra ou dizer que faz um debate Interseccional, mas, defender a superação da sociedade capitalista, para a partir daí entender, que a luta feminista, não é, (não tem o objetivo aqui de dizer que gênero e raça não são importantes ou não são fundamentais... ou não são estruturais, pra usar as palavras dessa coleção Feminismos Plurais, o racismo é estrutural, o patriarcado, o Cis Hétero Patriarcado também é estrutural, mas eles são momentos, etapas, são aspectos da complexidade da sociedade capitalista, e nessa sociedade capitalista, há um momento predominante, é esse momento que estrutura as demais estruturas de opressão da sociedade capitalista) A Bárbara argumenta que a distorção do termo Interseccionalidade foi justamente quando ele deixou de ser compreendido como um momento da luta de classes, um momento da luta feminista, e passou a ser central nessa luta.

Nós precisamos, então, recolocar o que é central, recolocar o que é o momento predominante, e o momento predominante é a superação da exploração das classes, assim, as possibilidades de superação do racismo, do patriarcado, da LGBTfobia, estarão postas. As críticas ao marxismo, ao feminismo marxista, vão dizer que, na sociedade comunista, tudo será maravilhoso, não é possível dizer isso! Mas é possível dizer que a estrutura que gera essas opressões não existirá mais, e, nesse sentido, as demais estruturas estarão passíveis de mudança.


Então, é uma recolocação da necessidade da superação das classes.

Karla Raphaella Costa Pereira
Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)