segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A face capitalista da fome: 65 milhões de brasileiros com alimentação insuficiente

outubro 19, 2020

 


Na quinta-feira (15/10), no ciclo de conferências virtuais “Reflexões sobre o Brasil em Tempos de Pandemia”, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, José Graziano da Silva, agrônomo, professor e ex-presidente da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) da Organização das Nações Unidas (ONU), afirmou : “As projeções mostram que devemos estar em um número hoje, em 2020, no começo da pandemia, com 15 milhões de pessoas passando fome e 30% da população brasileira não comendo o suficiente, o que levaria a um número assustador de 65 milhões de pessoas”[1].

Essa tragédia não é só brasileira. Segundo dados do relatório “State of Food Security and Nutrition – SOFI” (O estado da segurança alimentar e nutrição no mundo 2020)[2], “Considerando o total de afetados por níveis moderados ou graves de insegurança alimentar, cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo não tiveram acesso regular a alimentos seguros, nutritivos e suficientes em 2019”.  Ainda acrescenta: “Prevê-se que o COVID-19 piorará as perspectivas gerais para a segurança alimentar e nutricional. Bolsões de insegurança alimentar podem aparecer em países e grupos populacionais que não foram tradicionalmente afetados. Uma avaliação preliminar sugere que a pandemia pode adicionar entre 83 a 132 milhões de pessoas ao número total de desnutridos no mundo em 2020, dependendo do cenário de crescimento econômico (perdas que variam de 4,9 a 10 pontos percentuais no crescimento do PIB global)”.

Os dados foram levantados em 2019, ou seja, a tendência é que o quadro atual seja pior do que o esperado. O capitalismo agrava exponencialmente o problema da fome.

É sabido que a fome é uma chaga que acompanha a história humana.  Antes da sociedade moderna a fome explodia na crises pré-capitalistas, que resultavam da destruição dos produtores diretos ou dos meios de produção, ocasionada por desastres naturais ou por catástrofes sociais. A consequência imediata dessas crises era uma carência generalizada dos bens necessários à vida social, isto é, uma crise de subprodução de valores de uso que gerava, entre outras mazelas, a fome.

Já no capitalismo a destruição material dos elementos de produção são consequência da crise. Há ampliação do desemprego, da miséria e da fome porque há crise. A fome se instala nos lares porque a crise estala, uma crise de superprodução de valores de troca. Explica-se tal crise, dentre outras coisas, pela insuficiência da capacidade de pagamento do comprador. Uma abundância relativa de mercadorias não encontra seu equivalente no mercado, não pode realizar seu valor de troca, o que resulta invendável e arrastando seus proprietários à ruína. Noutras palavras, no capitalismo, passa-se fome em meio a abundância de alimentos. De fato, há comida para todos, porém os mais pobres não têm capacidade monetária para comprá-la, gerando insegurança alimentar, má nutrição, desnutrição, subnutrição e fome[3].

Muitas vezes, de acordo com Caparrós (2016), o termo técnico “segurança alimentar”, mascara a realidade concreta de cerca de 2 bilhões de seres humanos, que, às vezes, comem o suficiente, mas nunca têm certeza se vão conseguir comer – e, às vezes, não conseguem. Para eles, comer ou não comer é um vaivém: basta que haja uma mudança ínfima em suas condições de vida, a perda de um trabalho, um conflito, uma eventualidade climática, para que uma pessoa – ou milhões de pessoas – fique sem saber se vai conseguir se alimentar no dia seguinte.

No Brasil, país com raízes no escravismo colonial, no latifúndio e numa posição subordinada na divisão internacional do trabalho, a insegurança alimentar é estrutural. O que se agrava na atual crise econômica, acrescida pela pandemia do Covid-19 e sob o governo de extrema direita de Bolsonaro. Se, ainda somarmos, por exemplo, a desigualdade social crescente, a concentração absurda de riqueza, o volume de alimentos exportados, o desperdício e a política de destruição da agricultura familiar, veremos que uma economia de mercado centrado no lucro e não na vida humana possui, objetivamente na atualidade, uma orientação genocida.

Diante disso, a reversão de tal quadro e a busca de políticas públicas compensatórias devem estar subordinadas a uma estratégia socialista de tomada do poder político pelas massas trabalhadoras da cidade e do campo. A história demonstra que a expropriação da burguesia, a economia planejada e o controle do comércio exterior, com todas as contradições de regimes burocráticos, trouxeram soluções efetivas para a superação de problemas em torno de moradia, alimentação, saúde e educação para as grandes maiorias.

Frederico Costa - IMO/GPOSSHE/UECE

Photo by Jordan Opel on Unsplash

Referências

CAPARRÓS, Martín. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.



[3] Insegurança alimentar, situação de quem não tem garantia de acesso a quantidades suficientes de comida saudável e nutritiva para seu desenvolvimento normal, causada pela inexistência de comida à disposição, falta de poder aquisitivo para a compra de alimentos ou uso inadequado da comida em casa, podendo ser crônica, temporária ou transitória; má nutrição, condição fisiológica anormal, causada por consumo inadequado de nutrientes (inclui desnutrição); desnutrição, condição de absorção deficiente de nutrientes causada por repetidas doenças infecciosas; subnutrição, estado de incapacidade em obter comida suficiente para atingir os níveis mínimos de energia necessários para uma vida saudável e ativa; fome, termo sinônimo de subnutrição crônica, ou seja, quando o estado de subnutrição dura por mais de um ano (fonte: https://mpabrasil.org.br/noticias/mundo-produz-comida-suficiente-mas-fome-ainda-e-uma-realidade/, consultado em 17/10/2020).

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Os subterrâneos das eleições estadunidenses: democracia fake e imperialismo

outubro 15, 2020

 


Os Estados Unidos (EUA) têm um projeto para si e para o mundo sintetizado na expressão full spectrum dominance (dominação de espectro total), cujo objetivo é estabelecer, manter e expandir a hegemonia e os lucros das corporações estadunidenses, sob a falsa ideologia de defesa de valores universais e democráticos. Essa perspectiva ora é coordenada por governos republicanos, ora por governos democratas. A depender do contexto nacional e internacional, está sempre condicionado pela luta de classes, o que faz com que a orientação imperial dos EUA sofra momentos de cooperação, acomodação, tensão, subversão, confrontos e conflitos armados com outros países. Em última instância, isso explica as posturas agressivas do imperialismo estadunidense ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, à Síria, à Venezuela, à Cuba, à Coreia do Norte, à Bielorrússia, à Rússia e à China.

O importante a ser destacado é que, apesar do contexto e das contradições, a perspectiva das frações da classe dominante estadunidense é manter e aprofundar sua dominação interna e externa sobre trabalhadores, povos e nações, como uma “delegação divina”.

Por isso, o que está em jogo na atual disputa eleitoral entre a direita (Joe Biden, democrata) e a extrema direita (Donald Trump, republicano) é qual a melhor forma de manter os objetivos estratégicos do imperialismo estadunidense: 1) manter sua hegemonia militar em todas as regiões do mundo por meio da presença de forças militares (terrestres, aéreas e navais) capazes de inibir a emergência de Estados rivais com capacidade militar de dissuasão dos EUA de utilizarem o uso de força, o que inclui a tentativa constante de desarmar Estados periféricos; 2) conservar sua hegemonia sobre os sistemas de comunicação e de informação, controlando a elaboração e a difusão de conteúdo pelos meios de comunicação como agências de notícias, cinema, rádio, televisão e internet que formam posturas subjetivas dos setores dominantes e das massas de distintos Estados e formações sociais; 3) consolidar sua hegemonia nos organismos econômicos internacionais, como a Organização Mundial de Comércio-OMC e o Fundo Monetário Internacional-FMI, que elaboram normas internacionais reguladoras das relações entre Estados e as impõem por meio de programas para enfrentar dificuldades de balanço de pagamentos  e de financiamento de investimentos; 4) expandir seu controle sobre recursos naturais no territórios de outros países e de suas vias de acesso, o que é essencial para a economia estadunidense e suas mega empresas multinacionais, assim como de outras potências imperialistas; 5) preservar sua hegemonia política através do controle, tanto quanto possível, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, único organismo internacional que autoriza a aplicação de sanções e o uso da força militar contra qualquer Estado, menos contra os membros permanentes, com o apoio incondicional da França e da Inglaterra, reservando-se o direito de agir unilateralmente quando o interesse do imperialismo estadunidense assim o exigir; 6) continuar na vanguarda do desenvolvimento científico-tecnológico em termos de aplicações civis e militares, condição para seu domínio em outras áreas; 7) deixar abertos os mercados de todos os países para seus capitais e para seus bens e serviços.

Essa é a moldura da fake democracia da terra do Tio Sam, ou seja, as eleições atuais não ocorrem num vácuo, mas num cenário local e global de profunda crise econômica agravada pela pandemia do coronavírus. O acirramento da disputa entre as frações dominantes nos EUA abre uma brecha para a intervenção das classes subalternas estadunidenses e para a ascensão das lutas anti-imperialistas.

Frederico Costa - GPOSSHE/IMO/UECE

Photo by Robert Metz on Unsplash


Para mais informações sobre o imperialismo, ouça este podcast da Rádio Gposshe:


terça-feira, 13 de outubro de 2020

As eleições estadunidenses são democráticas?

outubro 13, 2020

Em 4 de novembro, ocorrerão eleições presidenciais nos Estados Unidos da América (EUA), o país imperialista mais poderoso do mundo. Os EUA vendem-se ideologicamente como os guardiões da liberdade e democracia no mundo. Mas será que, realmente, os EUA sustentam-se num regime político que expressa os interesses da maioria da população?

Nas eleições de 2000, num contexto de crise, o republicano George W. Bush, após uma polêmica apuração na Flórida, foi eleito presidente com 50.456.987 votos populares e 271 votos dos delegados dos estados, enquanto o democrata Al Gore ganhou, no voto popular, 51.003.926 votos, mas só obteve 266 votos no Colégio Eleitoral[1]. Com isso, o caráter não democrático das eleições estadunidenses veio à tona. 

Tal distorção ocorreu novamente, em 2016, na eleição do republicano, Donald Trump, em que milhares de pessoas foram às ruas questionar o resultado das urnas. Trump conquistou 62.979.636 votos populares e 306 votos dos delegados dos estados, suficientes para ser eleito presidente. Porém, a democrata Hillary Clinton obteve 65.844.610 votos populares, mas apenas 232 votos no Colégio Eleitoral[2].

Isso não foi uma novidade. Já ocorrera antes.

Em 1824, o candidato John Quincy Adams conquistou 113.122 votos populares, enquanto seu adversário, Andrew Jackson, ganhou, no voto popular, 151.271. Como ambos não alcançaram o mínimo de votos no Colégio Eleitoral, a decisão de quem ocuparia a presidência foi tomada pela Câmara dos Representantes que elegeu Quincy Adams como presidente[3].  Mais de cinquenta anos depois, em 1876, o candidato republicano, Rutherford B. Hayes, que teve 4.036.298 votos populares, obteve 185 votos dos delegados de um total de 369 votos no Colégio Eleitoral. Seu adversário, o democrata Samuel J. Tilden venceu no voto popular com 4.300.590 votos, mas só alcançou 184 votos no Colégio Eleitoral[4].  Nas eleições de 1888, o candidato republicano, Benjamin Harrison, conquistou 5.439.853 votos populares e 233 votos dos delegados, elegendo-se presidente. Seu concorrente, o democrata Grover Cleveland, ganhou no voto popular com 5.540.309 votos, mas só obteve 168 votos no Colégio Eleitoral[5].

Depois dos exemplos acima, vimos que no complexo sistema eleitoral do imperialismo americano, é possível ser eleito presidente sem ter a maioria dos votos populares, o que viola o princípio democrático formal de uma pessoa, um voto. Por quê?

Nos EUA, o presidente e o vice-presidente não são escolhidos diretamente pelos cidadãos aptos a votar. Os eleitores escolhem os delegados de um Colégio Eleitoral, que é composto atualmente por 538 provenientes de todos os 50 estados, incluindo a capital Washington D.C. Cada estado tem um mínimo 3 delegados, como é o caso de Delaware, 853 mil habitantes. Já a Califórnia, estado mais populoso do país com 36 milhões de habitantes, possui 55 votos; enquanto Nova York, com 19 milhões de habitantes, tem 31 votos. Então, os eleitores de cada estado elegem os delegados que votarão para a presidência dos EUA. Vence a eleição quem obtiver, pelo menos, 270 votos, isto é, metade mais um do Colégio Eleitoral. No caso improvável de que nenhum dos candidatos obtenha 270 votos no Colégio Eleitoral, o encarregado de decidir o vencedor é a Câmara de Representantes que deve escolher o novo presidente a partir dos três candidatos com mais apoio. Da mesma forma, o Senado, por sua vez, deve realizar um processo similar para eleger um vice-presidente entre os dois candidatos mais votados. Como vimos, isso ocorreu em 1824.

Bem, depois que os cidadãos votarem no seu candidato presidencial em 4 de novembro deste ano, os votos serão contabilizados em nível estadual. Em 48 estados e em Washington DC vigora o sistema de "o vencedor leva tudo", isto é, o candidato que obtiver a maioria dos votos populares em um estado fica com todos os delegados atribuídos a esse território. A exceção são os estados de Maine e Nebraska, onde os votos são divididos. No estado do Maine, por exemplo, duas das cadeiras no colégio eleitoral vão para o vencedor no Estado, e as outras duas vão para o vencedor em cada um dos distritos do Estado.

De acordo com a Constituição dos Estados Unidos, os delegados não são obrigados a votar de acordo com a vontade dos cidadãos. Embora, em alguns Estados, sejam livres para apoiar o candidato que quiserem, enquanto noutros são obrigados a votar no candidato que prometeram apoiar.

Assim, o voto nominal tem peso relativo, de acordo com cada estado, ocorrendo distorções que acabam privilegiando um pouco regiões mais rurais, e estados
menos populosos são sobrerepresentados. Tal sistema eleitoral tem seus fundamentos na Constituição de 1787. As classes dominantes, ou seja, as elites rurais, escravistas e conservadoras temiam o voto popular por sua possibilidade de confrontar-se com a ordem expressando os interesses da maioria.

O sistema eleitoral estadunidense constituiu-se como a forma política para o escravismo, o racismo, o expansionismo agressivo e, por fim, o imperialismo mais poderoso na atualidade. Com a crise capitalista atual e o acirramento da luta de classes, aumenta suas contradições como estrutura de dominação. A última palavra será dada pelos trabalhadores e trabalhadoras mobilizados.

Frederico Costa - UECE/IMO/GPOSSHE

Photo by annie bolin on Unsplash



[4] https://www.presidency.ucsb.edu/statistics/elections/1876, consulta em 12/10/2020.


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Uma parte da minha família se foi ontem

setembro 17, 2020

 


Um tio meu faleceu ontem. Francisco era o nome dele. Quinto filho de seis, uma prole que tem minha mãe como a caçula. Minha família materna sempre se manteve muito próxima, moramos todos no mesmo terreno deixado por meu avô para os seis filhos, por isso nunca nos desgarramos, ao contrário, vivemos a felicidade e as contradições de viver todos assim, muito próximos, acompanhando a vida e os problemas uns dos outros.

Meus tios e minhas tias nunca ficaram separados por muito tempo, sempre juntos. Meu tio Chico foi o único que mais se afastou do ninho. Na década de 1990, esperançado pela corrida do ouro da Amazônia, foi trabalhar no garimpo de Rondônia, depois levou a esposa e as duas filhas que tinha. Lá, contraiu malária, sobreviveu.

A primeira sólida lembrança que eu tenho do meu tio é muito alegre: quando ele vinha nos visitar, trazia lembranças, levava coisas do Ceará e eu o imaginava muito rico numa terra muito distante. Eram dias de alegria, minha mãe e os irmãos se reuniam. Com a morte do meu avô, ele veio novamente para o velório e, algum tempo depois, retornou ao Ceará, trouxe minhas primas já crescidas e um filho mais novo nascido naquele estado. Os seis irmãos se reuniram definitivamente e nunca mais se separaram. Vivem todos na mesma rua, meu tio Chico “um pouquinho mais pra lá” do terreno da família.

Quando descobrimos a doença dele, foi devastador. Ele era um ser humano tão complexo quanto qualquer outro, longe da perfeição e que cometeu erros, mas também muitos acertos, por exemplo, criou, junto com a esposa, minha tia Lirene, quatro filhos de sangue e uma de coração. Meu primo e minhas primas são, em grande parte, reflexo dos pais: fortes, determinados, justos, bons, possuem o coração cheio de amor.

A gente sempre pensa que os pais são eternos e, quando um deles se vai, pesa a finitude da vida nos nossos ombros, mas o que fica é uma história de coragem e de luta, de esperança, de determinação que, se não passa pela genética, transmite-se pela convivência e pelo exemplo. Meu tio Chico foi o aventureiro da família, aquele que ousou sonhar mais longe e que viajou quilômetros para realizá-los e proporcionar sonhos maiores para os filhos.

Quero, com esse texto, homenagear meu tio, mas principalmente, meu primo, Ueslei, e minhas primas, Zélia, Leiriane, Larissa e Juliana. Dizer a eles que eu sinto muito, que a do deles é nossa também, mas que o tio Chico nunca será esquecido que ele deixou muitos exemplos para nossa família e que eles vão se perpetuar em cada um de nós, mas principalmente na vida de seus filhos e netos. Sempre veremos o tio no olhar de cada um que o amou.

Neste ano, muitas famílias velaram seus parentes, o Brasil perdeu mais de cem mil de vidas. Ontem, ao velar meu tio, pensei em cada uma dessas famílias e, por mais que as circunstâncias sejam diferentes, cada partida é adiantada. Nunca vivemos o bastante, a morte sempre se precipita.

Karla CostaFamília Costa-Sá

Fotos: acervo pessoal

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

São Bernardo, uma resenha

setembro 14, 2020

    

Graciliano Ramos constrói o romance São Bernardo com um caráter essencialmente brasileiro, mais especificamente nordestino. Utilizando uma linguagem simples e despojada, apresenta a paisagem árida e cruel do sertão nordestino e narra a história também simples, porém, ambicioso, autoritário, rude, egoísta e desumano. o social e o psicológico se fundem, criando uma obra de análise profunda das relações humanas.

    Considerado um marco na literatura brasileira pós-30, esse romance tem como pano de fundo histórico a chamada modernização conservadora ocorrida na década de 20 que culminou com a revolução de 30 e 32. Sob esse cenário, o autor constrói as configurações do espaço, dando significação ao meio agreste e rural, ambiente condicionante do ser e de sua trajetória. Coronelismo, cangaço, ignorância, miséria, são algumas conotações que permeiam o sertão nordestino influenciando de forma determinante os indivíduos e suas histórias.

    Paulo Honório, coronel industrialista, é a personagem principal, o núcleo do romance, firmando-se dentro da obra como um ponto cardeal, visto, por ele, passam todos os vetores que conformam as demais personagens. É em relação a ele, aos valores que ele consolida, às ações que ele realiza que se definem as outras personagens bem como os outros elementos que constituem a narrativa.

    Tendo todo o controle em suas mãos, o fazendeiro Paulo Honório conta sua vida, o modo desonesto como enriqueceu e construiu seu patrimônio, a violência com que tratava seus empregados e os trabalhadores de sua fazenda e a indiferença com que sempre tratou os outros. A partir de sua visão, revela a sua própria história, na tentativa de compreender os fatos passados em sua vida, sua acelerada ascensão social e seu profundo sofrimento interior.

    A atitude dura e dominadora com que assumiu as dificuldades ajudou Paulo Honório à vencê-las. Porém, em relação à Madalena, simples professora desempregada (que vivia com uma tia velha), com quem se casou a fim de garantir um herdeiro para sua fazenda, São Bernardo, a dureza e brutalidade não o ajudou. Pelo contrário, o distanciou consideravelmente da esposa. Possuindo valores completamente diferentes do marido, Madalena é a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto, ou seja, não consegue dominar, nem mesmo compreender.

    É um elemento tão singelo em sua singularidade e tão carregado metaforicamente, o pio da coruja que, ao causar um estremecimento em Paulo Honório, desperta suas lembranças e motiva o relato da ruína de suas conquistas diante da impossibilidade de compreender o outro, principalmente sua mulher, Madalena que, cansada de travar diariamente uma luta com o marido, se suicida.

    Iludido pela ganância, Paulo Honório perde-se em uma simplificação cega da realidade ao contemplar apenas a materialidade, a objetividade, desconsiderando as relações intersubjetivas. Por fim, encontra-se atormentado pelo passado fracassado, transtornado intimamente pela perda de Madalena, única possibilidade de humanização. É o balanço trágico de um homem que, perdido nos laços perversos e implacáveis do sistema social capitalista, acabou por desumanizar-se para poder viver.

    Enfim, uma obra que possui uma importância não apenas dentro do estilo literário ao qual pertence, o Modernismo, mas por sua mediação simbólica, pelas representações e conotações dos dramas psicológicos e sociais, pelas quais envolve o leitor, aproximando-o de uma realidade concreta, levando-o a refletir e a tentar descobrir os sentidos da vida e do mundo humano. Uma leitura tão arisca e áspera tanto quanto encantadora e emocionante considerando a solidez e a grandeza literária de São Bernardo.

Marcilia Nogueira

Professora da Rede estadual do ensino do Ceará, pesquisadora do Gposshe.

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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Nem tudo que reluz é ouro: a luta pela “democracia” na Bielorrússia

setembro 09, 2020

 


No dia 9 de agosto ocorreu eleição na Bielorrússia (antiga Rússia Branca). Os resultados deram vitória ao ex-burocrata estalinista Alexander Lukashenko contra sua rival, a candidata "independente" Svetlana Tikhanovskaya, representante de um programa neoliberal e pró-OTAN. O resultado, com a esmagadora maioria de 80% dos votos, provavelmente adulterados, deu origem a uma mobilização pela democracia no país, que conta com o apoio da grande mídia, da União Europeia (EU) e de setores de esquerda.
            O regime da Bielorrússia parece algo descontextualizado. O governo burocrático local de Lukashenko chegou ao poder após o colapso da URSS em 1991, mas conseguiu evitar, por meio da declaração de independência, o tratamento de choque neoliberal massivo e a destruição econômica que afligiu a Rússia sob o regime de Yeltin.
De fato, a Bielorrússia é dominada por uma burocracia que maneja o aparelho do Estado e os ramos estratégicos da economia nacional, herança do stalinismo, que governou o país por mais de cinco décadas, até a queda da URSS.

A questão central da atual crise gira em torno da ofensiva do imperialismo de desmontar as sobrevivências burocráticas para tomar posse das riquezas naturais e indústrias nacionais. Quando a União Europeia (EU) denomina Lukashenko como o “último ditador” da Europa, na verdade, está assinalando que objetiva remover a casta burocrática estalinista do manejo do Estado e da economia por meio de uma oposição liberal-burguesa. Nesse contexto, Lukashenko, procurando manter os privilégios da camada burocrática, acusa a oposição de querer privatizar a economia estatizada.

Nesse momento, é preciso não ter ilusões no regime de Lukashenko. Mas, é preciso destacar que o movimento de protesto segue a cartilha de golpes de Estado recentes: 1) começou com a contestação do resultado eleitoral; 2) manifestantes de direita, contra a corrupção, bandeiras nacionais e nazistas; 3) predominância de classe média e alguns poucos trabalhadores desorganizados. Há, nas mobilizações, bandeiras vermelhas e brancas da "Bielorrússia", usadas por elementos pró-nazistas na Segunda Guerra Mundial. Além de ligações dos líderes com a Ucrânia e outros países bálticos.
            Importante dizer que o pelotão de choque nazista-neoliberal obedece a interesses imperialistas. A prescrição do Banco Mundial para o país é a seguinte:

“Mais urgentemente, o setor empresarial estatal da Bielo-Rússia precisa de uma reestruturação abrangente. E o que isso implicaria?

• Em primeiro lugar, mantenha públicas as empresas estatais com fins lucrativos ou privatize-as de forma transparente a preços de mercado justos.

• Em segundo lugar, manter os provedores de serviço público e reguladores públicos, mas definir claramente o que eles devem fornecer em troca de fundos públicos.

• Terceiro, reestruturar as estatais deficitárias que poderiam se tornar rapidamente lucrativas, proporcionando um bom retorno sobre qualquer investimento extra.

• E para todo o resto: encerramento ou privatização.

A classificação das empresas nessas categorias deve ser feita por especialistas independentes, a fim de obter avaliações objetivas de quais negócios são viáveis ou não” (https://blogs.worldbank.org/europeandcentralasia/why-economic-reforms-belarus-are-now-more-urgent-ever-0).

Apesar de toda a corrupção e despotismo de Lukashenko, a economia estatizada é progressiva. A experiência histórica demonstra a queda na expectativa de vida na Rússia causada pelo choque econômico de Yeltsin naquele país, por exemplo. O mesmo acontecerá na Bielorrússia se os neoliberais tomarem o poder. Por isso, é preciso:

·    - defender os ganhos sociais fragmentários que ainda foram mantidos na Bielo-Rússia desde o período soviético, mesmo que pela inércia burocrática;

- defender a Bielorrússia e a Rússia, como países capitalistas relativamente atrasados diante da ofensiva do imperialismo e seus representantes imperialistas que buscam "mudança de regime" e "revoluções coloridas” para aumentar a área de exploração e opressão do capital financeiro internacional contra os povos e os trabalhadores.

- defender as conquistas sociais ainda existentes na Bielorrússia, a propriedade estatizada contra a privatização com táticas para superar as ilusões das massas em Lukashenko e Putin por sua inconsequência em lutar contra imperialismo.

- defender a democracia operária e o processo de auto-organização das massas.


Frederico CostaProfessor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Alcance e limites das tendências desantropomorfizadoras na Antiguidade

agosto 28, 2020

 


Fiz este texto para me ajudar a entender e a fixar o pensamento de Lukács. Não o considero, pois, um artigo, mas espero que ele possa contribuir para o debate no grupo. As páginas referidas em parênteses referem-se à “Estética” de Lukács, na tradução em castelhano da Editora Grijalbo.

Nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade há uma tendência a produzir formas de pensamento que não conseguem ultrapassar as formas ingênuas e espontâneas, necessariamente antropomorfizadoras, características do pensamento cotidiano que, portanto, não refletem autenticamente a natureza e o mundo social dos homens.

Engels explica que este fato é a fonte da proliferação e domínio da religião nos primeiros estágios de desenvolvimento do gênero humano e que o paulatino avanço da ciência, ou seja, do conhecimento real da natureza e do mundo formatado pela humanidade vai desembocar, na Idade Moderna, no deslocamento dos deuses de sua posição dominante na concepção de mundo dos homens, pelo menos no nível da teoria (filosofia), mediante a afirmação gradual de que a natureza e o mundo dos homens são regidos por leis naturais e sociais, e que a sociedade é produto da atividade dos próprios homens, não havendo, portanto, desígnios divinos na criação e evolução da natureza ou da sociedade.

Segundo Lukács, foi na Grécia antiga que, pela primeira vez, o homem tornou-se consciente desse embate entre as concepções antropomorfizadoras e desantropomorfizadoras, ou seja, científica. O pressuposto do desenvolvimento da metodologia científica na Grécia residiria na sua estrutura socioeconômica: a existência de paridade entre os proprietários de terras e de escravos e o fato dessa propriedade ser fundada no pertencimento à comunidade; não havendo a escravidão do tipo que ocorria no Oriente (o Estado como proprietário dos escravos), que impunha regimes tirânicos, a democracia política pôde florescer e se estender ao campo religioso, razão por que pôde haver um desenvolvimento próprio da ciência sem uma interferência decisiva das necessidades sociais e ideológicas da religião; no antigo mundo grego não foi, assim, possível fazer da filosofia e da religião uma só coisa e, muito importante, a religião não logrou formar uma casta separada do povo que fosse detentora exclusiva do saber e da fé e, portanto, também do conhecimento. É a primeira vez, portanto, que a humanidade faz a separação clara do reflexo científico em relação ao reflexo cotidiano e ao religioso.

Lukács destaca que a filosofia grega estabeleceu os problemas decisivos acerca da especificidade do reflexo científico da realidade, sendo que, em muitos casos, também os clarificou; também esclareceu a função social do reflexo científico de estar a serviço da vida, o de sempre regressar à vida para enriquecê-la (p. 153), aduzindo, no entanto, que isto ocorreu com maior envergadura no terreno do conhecimento social, como na ética, do que na metodologia das ciências da natureza, isto porque o modo de produção e reprodução da vida do antigo povo grego impossibilitou a aplicação das leis da natureza então descobertas ao mundo da produção, haja vista que a escravidão acarretava o desprezo social pelo trabalho produtivo. Plutarco cita, por exemplo, que Platão foi violentamente contra as leis da geometria serem usadas para a criação de máquinas produtivas, pois, em seu entender, seria uma humilhação para a geometria a sua utilização prático-mecânica, ao mundo corporal e sensível. Arquimedes só autorizou a utilização prática de suas descobertas científicas para fins militares, de defesa de Siracusa, ou seja, motivado por um superior sentimento patriótico. A consequência desse fato é de que, na Grécia antiga, a ciência não deu uma contribuição efetiva à produção e vice-versa. Isto acarretou o fato de que, nas posteriores etapas de desenvolvimento da filosofia da natureza, haverá a influência decisiva de reflexos antropomorfizadores.

A despeito disto, Lukács assinala que a linha fundamental do pensamento grego antigo é a fundação de uma objetividade real do conhecimento, cuja construção deveria ser feita sem a influência de elementos da subjetividade humana, o que seria atingido através da crítica das ilusões perceptivas dos sentidos, dos paralogismos (raciocínios falsos feitos com boa fé), da imediatez do pensamento cotidiano que produz todos esses erros. Destaca ainda que a filosofia dos pré-socráticos é um ponto de involução na história do pensamento humano neste sentido de ser um esforço de ultrapassagem decisiva da “subjetividade humana, com seus limites, deficiências e preconceitos” (p. 154), com vistas a refletir com a maior fidelidade possível a realidade tal como ela é. O ponto culminante neste desenvolvimento são o pensamento de Demócrito e Epicuro, para quem “todo o mundo fenomênico humano se considera tal como o produto, segundo leis, das relações e dos movimentos das partes elementares da matéria” (p. 154). Os antigos gregos, assim, descobriram o modelo metodológico correto para lograr conhecer a realidade, mesmo que não o tenham aplicado de forma sistemática nos estudos particulares dos fenômenos naturais.

Lukács conclui então que “se se analisam os fundamentos metodológicos conseguidos desde Tales até Demócrito-Epicuro, é possível assentar duas informações básicas: em primeiro lugar, que uma captação verdadeiramente científica da realidade objetiva não é possível mais do que mediante uma ruptura radical com o modo de concepção personificador, antropomorfizador. O tipo científico do reflexo da realidade é uma desantropomorfização tanto do objeto quanto do sujeito do conhecimento: do objeto, ao limpar o seu ser-em-si de tudo o que é aduzido pelo antropomorfismo (na medida do possível); do sujeito, ao fazer com que o comportamento deste a respeito da realidade consista em criticar constantemente suas próprias intuições, representações e formações conceituais para evitar a penetração de atitudes antropomorfizadoras que deformaram a objetividade na captação da realidade. O desenvolvimento concreto será resultado de uma fase posterior; porém, os fundamentos metodológicos estão já assentados na cultura grega: que o sujeito do conhecimento tem que imaginar seus próprios instrumentos e modos de proceder para fazer, com sua ajuda, que a recepção da realidade seja independente das limitações da sensibilidade humana e para automatizar, por assim dizer, o seu autocontrole.” (p. 154)

Lukács destaca que a evolução do pensamento desantropomorfizador na filosofia grega não se deu apenas contra o pensamento religioso, mas também contra o pensamento do cotidiano. Na filosofia posterior à dos gregos, a crítica ao pensamento cotidiano desemboca num idealismo religioso ou semirreligioso; isto porque, contraditoriamente, o paulatino avanço do conhecimento científico, no período que vai do fim da Antiguidade ao fim da Idade Média, é menos capaz de impedir o comportamento cognoscitivo geral antropomorfizador do que a ciência menos desenvolvida da Grécia antiga, o que indica de forma clara que o decisivo, neste problema, foi a diferença da organização social conformadora da polis grega, mais democrática em relação à Europa feudal e cristã da Idade Média; Lukács refere inclusive que Hegel percebeu isso, ao ver uma diferença entre o ceticismo antigo, que critica a antropomorfização do pensar resultante da apreensão da realidade pelos meros sentidos humanos, portanto subordinado à subjetividade do sujeito cognoscente, e o ceticismo moderno, que combate a objetividade do pensamento científico e filosófico que se fez possível pelos avanços do pensamento desantropomorfizador.

Para a filosofia grega, ressalta Lukács, o conhecimento se baseia no reflexo correto da realidade objetiva. No entanto, a questão do reflexo para os gregos não transita da interpretação filosófica da realidade objetiva para o predomínio das questões epistemológicas (teoria do conhecimento); por mais diverso que seja o reflexo da realidade para Platão e Aristóteles, nem um nem outro nega a sua importância central; ocorre que, como vimos, a própria filosofia grega postula a necessidade de conhecer a realidade em si (essência) que é diversa daquela que percebemos pelos sentidos (fenômeno); para Platão, a resposta ao “como” se chegar à essência das coisas é dada em sua teoria da formação dos conceitos que, iluminando a intuição sensível e as representações, devem refletir da forma mais fiel possível a realidade objetiva.

Quando a filosofia posterior à grega assenta a predominância das questões epistemológicas em relação à elaboração filosófica da realidade objetiva, encontra, nesta teoria dos conceitos de Platão, a base para tal transição, esquecendo que para Platão o conceito é o reflexo o mais próximo e correto possível da realidade objetiva. Ao se esquecer disto, a filosofia se torna idealista, ou seja, as ideias deixam de ser um “mero” reflexo da realidade e passam a ter existência própria, autônoma e, por vezes, superior em relação à própria realidade objetiva. Há uma autonomização e, portanto, uma separação do mundo das ideias em relação ao mundo real.  Portanto, como diz Lukács, “com esta inflexão em direção à teoria do conhecimento se empreende, ao mesmo tempo, o caminho do idealismo.” (p. 160)

Com o idealismo o sujeito cognoscente passa a ter que refletir em sua mente o mundo das ideias, portador das essências das coisas, e o mundo empírico, que compreende a realidade objetiva como simples manifestação fenomênica das ideias. E essa duplicação do reflexo, observa Lukács, constitui um sério risco ao reflexo correto da realidade objetiva, ao aduzir que “a separação entre o mundo ideal e a realidade, a realidade autêntica – metafísica - que Platão atribui ao primeiro, conduz o pensamento humano – como viu Aristóteles claramente desde o primeiro momento e o criticou resolutamente – ao nível já superado do antropomorfismo.” (p. 160)

De fato, Lukács explica que Aristóteles, em sua crítica a Platão, informa que este considera que a essência de uma coisa tem a mesma constituição da coisa que é perceptível pelos sentidos humanos; a diferença está em que uma é eterna (a essência da coisa) e a outra é perecível (a coisa perceptível pelos sentidos). Aristóteles informa que esse caminho conduz ao antropomorfismo e, por conseguinte, à religião, e o explica da seguinte forma: “Assim se fala do homem em si, do cavalo em si, da saúde em si, sem que com isso se tenha nenhuma outra alteração do objeto; igual que quando se afirma a existência dos deuses, porém imaginando-os completamente iguais aos homens. Pois não se tem feito assim mais que predicar aos homens o predicado da eternidade, e naquele outro caso não se tem feito mais que imaginar ideias, iguais aos objetos sensíveis, porém com o predicado da eternidade.” (citado na p. 161)

Assim, para Lukács, “a antropomorfização do mundo das ideias nasce diretamente do fato de que a filosofia idealista atribui à essência uma existência própria junto a – ou melhor dizendo por cima da – do mundo fenomênico. Esta nova existência própria tem que dotar-se, naturalmente, com traços próprios, e como esses traços não são refigurações do mundo material,  o que podem ser senão extrapolações do ser humano?” (p. 161, grifo meu).

E a forma dessa extrapolação do ser humano, de antropomorfização incidente sobre a refiguração do mundo material, tem sua origem no processo de trabalho, onde parte-se da ideia do que se vai construir para poder-se efetivamente construir algo; primeiro o homem imagina a coisa que ele vai construir, a sua forma, os materiais e as ferramentas que vai utilizar, tudo em conformidade com o objetivo final que tem em mente; passa então a realizar o trabalho até dar aos materiais escolhidos a forma final imaginada em sua mente. Esse momento intelectual passa a ser predominante em relação à execução material do trabalho. Aristóteles realizou a clara separação entre a gênese natural (dos objetos da natureza) e a gênese artificial (oriunda do trabalho), sendo que essa clara distinção “[…] possibilita o conhecimento da essência do trabalho e impede, ademais, uma errônea generalização da mesma, a acrítica aplicação de suas categorias à realidade extra-humana.” (p. 162) Assim disse Aristóteles: “Pela arte se origina tudo aquilo cuja forma está previamente na alma… assim vai procedendo o pensamento até chegar à última condição que pode produzir um mesmo (uma coisa, ou no caso do exemplo de Aristóteles, a saúde); o movimento que sai deste ponto e que leva à saúde se chama então uma produção. Assim resulta que, em certo sentido, a saúde se origina da saúde, uma casa se origina de uma casa, a casa material de uma casa imaterial. Pois a arte do médico e a arte do construtor é a forma da saúde no primeiro caso, e da casa no segundo.” (p. 161/62)

Lukács diz que é essencial ao trabalho que as propriedades da matéria apareçam ao trabalhador como possibilidades diante da consecução do objetivo a que ele se propõe no processo do trabalho; essas possibilidades são concretas e delimitadas; Plotino, epígono de Platão, as considera no entanto de forma abstrata e absoluta, portanto ilimitadas, e as contrasta com o elemento intelectual do trabalho, aqui também considerado de modo abstrato e absoluto e não de modo concretamente determinado, como de fato é no processo do trabalho; com essa abstração e absolutização do elemento intelectual do trabalho (que assim não é delimitado pelas características e propriedades da realidade objetiva), abre-se a possibilidade de pensar que a realidade extra-humana dos produtos naturais (extratrabalho) também pode ser criada “intelectualmente”, ou seja, subjetivamente por um “ser”.

Plotino considera ainda que “o potencial nunca poderia passar à atualidade se o potencial tivesse a primeira classificação, posição, no reino do ente (do criador); […] pois não pode por-si a si mesmo em movimento, por isso que o atual tem que existir antes dele (antes do potencial); […] Pois certamente não engendra a matéria a forma, o sem qualidade a qualidade, nem nasce da potencialidade a atualidade”. Plotino parte da ideia de que o potencial não pode, por si só, gerar o atual; ou seja, o que é meramente potencial, como não tem movimento, não pode, por si mesmo somente, criar o atual, o existente, o que tem movimento; assim ele defende que somente o atual, o já existente, pode criar um outro atual, um outro existente; como ele toma como modelo de criação o processo do trabalho e, por isso entende que o momento intelectual (a prévia ideação separada, autonomizada da realidade objetiva) é o princípio criador necessário para a gênese de algo, ele defende que esse momento intelectual é já atual, ou seja, põe e é movimento, sendo pois também causa do próprio movimento; as ideias, portanto, são a causa do ser e do devir do mundo material (idealismo objetivo).

Vê-se aqui que Plotino considera o princípio criador (o elemento intelectual do trabalho) como um momento superior em relação ao que se produz ou ao momento da execução prática do trabalho, que ele nem considera em seu raciocínio. Lukács informa que tal perspectiva de Plotino e do idealismo objetivo grego em geral não decorre pura e simplesmente da pura projeção abstrata do processo do trabalho à gênese do mundo natural, mas também de um condicionamento social decisivo do modo de produção escravista da época: o forte desprezo pelo trabalho, sobretudo o físico. Isto teve a consequência filosófica de imprimir à relação entre o mundo ideal e o mundo fenomênico uma sujeição hierárquica deste último ao primeiro, ou seja, aquilo que cria (a essência, a ideia) é superior ao que se produz ou à execução do trabalho no plano material; Lukács diz que isso não decorre necessariamente do idealismo filosófico, tanto que, em Hegel, sob o influxo já de relações capitalistas de produção, uma parte do que é objetivamente criado (as ferramentas, os instrumentos de trabalho) são consideradas superiores à satisfação das necessidades humanas (aos fins do trabalho, à prévia ideação), isto porque as ferramentas são expressão do domínio do homem sobre a natureza, são duradouras, enquanto a satisfação das necessidades do homem refletem a sua dependência da natureza, sendo o gozo humano passageiro e logo esquecido.

Lukács arremata que “o idealismo objetivo da Antiguidade que, em seu mundo ideal, convertia a essência, separada e independentizada do mundo fenomênico, em fundamento real da realidade, não tinha mais saída possível que a de conceber essa causação, assim estatuída, de um modo antropomorfizador, mitologizador, como “processo de trabalho” da gênese do ser e do devir do mundo, embotando consequentemente a tudo o que havia conseguido a anterior filosofia em relação à desantropologização do conhecimento e a sua fundamentação como ciência.” (p. 162/163)  

Esta hierarquia entre o mundo ideal (superior) e a realidade material (inferior) teve forte influência no pensamento posterior. Diz Lukács que a “involução da concepção do mundo no sentido de um novo antropomorfismo, fenômeno que começa com Platão, determinou o destino do pensamento científico na Europa durante quase um milênio, produzindo a queda no esquecimento das antigas conquistas” (desantropomorfizadoras) (p. 164).

Assim, ocorre que nesse novo antropomorfismo há um movimento para garantir que o pensamento desantropomorfista se circunscreva à pesquisa científica particular, inclusive à sua metodologia, incorporando assim as conquistas científicas de campos específicos, enquanto que a investigação das causas últimas, de fundo, de visão e de concepção de mundo, esteja sob controle do pensamento antropomorfista, sobretudo o da religião. Isto também ocorreu no Oriente, sendo que neste, em razão da existência de uma casta de sacerdotes que monopolizava o saber, não floresceu o pensamento desantropomorfista típico da filosofia grega anterior a Platão.

Há ainda um outro importante aspecto do neoplatonismo que Lukács observa em Plotino: o mundo ideal é substantivado mas dele se exclui o devir do mundo fenomênico e a quantificação da realidade material. De fato, Plotino afirma sobre o mundo ideal: “a propósito da substância inteligível e dos correspondentes gêneros e princípios” há que supor uma hipostasia inteligível, como algo que é verdadeiramente e é um em grau supremo, a saber, sem o devir dos corpos e a percepção e as dimensões sensíveis”. Mas Plotino também postula, como vimos, um mundo existente caracterizado pela suprema atualidade (o que tem movimento) contraposta à mera potencialidade da matéria, “captado numa imediatez que é sensível, não sensível e suprassensível, e concebido como essência pura, como substância única e força motora da realidade propriamente dita.” (p. 165) 

Para captar esse “mundo essencial” Plotino se vale da noção de “intuição intelectual”, que toma da ciência momentos – deformados – da desantropomorfização. Isto porque a realidade, captada pela sensibilidade imediata e sem a consideração do devir e da quantificação do real (objeto da matemática), não pode “conceituar-se com os meios normais do pensamento” que, por sua vez, para serem desantropomorfizadores, não podem prescindir da “indispensável abstração quantificadora e da captação das leis do devir”. Mas não só por isso, defende Lukács. É que a captação desantropologizadora da realidade material pressupõe a apreensão mais pura do objeto em si, “com a maior eliminação possível das propriedades da receptividade humana, enquanto uma ‘realidade inteligível’ platônica está indissoluvelmente vinculada à natureza do homem como homem”, ou seja, à subjetividade humana (p. 166). A inteligibilidade aqui é mais orientada para o próprio sujeito do conhecimento do que para o objeto. O momento predominante é a antropomorfização em relação à desantropologização, o que é reforçado pela impossibilidade de se obter um reflexo correto da realidade material ao se fazer a abstração do processo do devir e da sua característica de poder ser quantificada. Essa impossibilidade, por seu turno, reforça o referido viés antropológico platônico no processo de obtenção do conhecimento.

Esse modo de pensar cria o postulado de se “levantar acima do nível antropológico do homem e, simultaneamente, preservar esse nível – depurado, e até conduzi-lo a si mesmo mediante essa purificação”. Nisso Lukács identifica o parentesco do neoplatonismo com a religião: como não há a apreensão das verdadeiras legalidades que operam na realidade objetiva, da essência por trás da aparência no sentido do autêntico materialismo, o homem mantém-se na esfera da cotidianidade caracterizada pela união imediata de teoria e prática;  mas a verdadeira realidade, para o platonismo, é o mundo ideal das essências únicas, puras e eternas, deste modo faz-se necessário elevar-se deste nível da cotidianidade para se atingir o verdadeiro conhecimento. Essa elevação se faz mediante a eliminação da realidade objetiva do que não é puro, único e eterno, ou seja, das leis do devir e da quantidade. Após tal purificação, retorna-se à vida cotidiana em cuja esfera há um abandono do normal comportamento humano diante da realidade: “como o objeto (a realidade inteligível, o mundo ideal) é mais que humano, também o sujeito tem que levantar-se por cima de seu próprio nível para ser capaz de recebê-lo” (fl. 166). Deste modo, o homem oscila entre o pensamento cotidiano e o pensamento que tem por objeto o sobre-humano, o transcendente à sua própria realidade humana.

Lukács entende que, desse modo, as doutrinas das ideias (idealismo) e da religião entendem que o homem só encontra a sua essência (ou a alma humana só encontra a si mesma) deste modo antropomorfizador e que para tais doutrinas, portanto, o pensamento científico desantropomorfizador leva à desumanização do homem, ao perder-se de si mesmo; que a desdivinização, a dessacralização do mundo é um real perigo para o ser-homem do homem, para a integridade humana, aduzindo que, embora esta conclusão já está presente nos neoplatônicos, só atinge seu pleno desenvolvimento na Idade Moderna, como por exemplo em Pascal.             

Na verdade, para Lukács tal conclusão é falsa, pois de fato ocorre o contrário: “a desantropomorfização a que leva a cabo a ciência é um instrumento do domínio do mundo pelo homem; é um passo à consciência, uma elevação ao nível do método daquele comportamento intelectual que apenas se inicia com o trabalho, separa o homem do animal e lhe ajuda a fazer-se homem. O trabalho e a forma consciente mais alta nascida dele, o comportamento científico, não é pois somente um instrumento do domínio do mundo dos objetos, mas também, por isso, um meio indireto que, pelo descobrimento cada vez mais rico da realidade, enriquece o homem mesmo, lhe faz mais completo e humano do que seria sem ele.  Ao contrário, a elevação por cima da cotidianidade, no sentido da intuição intelectual e da religião, parte da ideia de que o núcleo humano é para o homem mesmo tão transcendente como o mundo ideal ou a “realidade” religiosa em relação ao mundo objetivo, ao mundo terreno. Todos os métodos propostos por essas tendências, desde a doutrina do eros, até a ascese, o êxtase, etc., tendem a despertar esse desejo do homem de transcender a si mesmo, e a contrapor tal desejo de forma rude, excludente, hostil e recusatoriamente ao homem real” (p. 167).

Lukács destaca que a criação desse mundo ideal, transcendente, empobrece o homem porque nesta criação não há a apreensão das leis que regem a realidade objetiva, não havendo, por conseguinte, o aumento do domínio do homem sobre o seu mundo concreto. É uma criação que não aumenta as capacidades do homem tendo em vista a sua vida real. Isto porque, do ponto de vista objetivo, o mundo ideal ou transcendente é pensado como qualitativamente superior ao mundo humano, ao que é perceptível pelos sentidos e que pode se tornar autenticamente inteligível ao homem (no sentido de poder ser realmente objeto da razão humana), sendo, por isso mesmo, formado por momentos profundamente marcados pelo pensamento antropomorfizante; e do ponto de vista subjetivo, “o homem tem que romper com o seu concreto ser humano, inclusive com sua personalidade moralmente formada, para poder estabelecer um contato fecundo com esse mundo”. (p. 167)

E para Lukács a verdadeira ética é aquela que mantém íntegra a personalidade do homem como tal, como ser concretamente existente, sensível, socializado, com uma práxis referida ao aumento de suas próprias capacidades em suas trocas com outros seres humanos e com a natureza, num autêntico vínculo com a sua humanidade que é necessariamente desantropomorfizante em relação aos objetos desse mundo concreto. Ele diz que “precisamente neste ponto apresenta, ao contrário, uma ruptura (com a personalidade humana) o momento subjetivo daquele ascenso ao mundo ideal: pois inclusive o ser humano eticamente realizado é, em comparação com o sujeito digno e capaz de intuição intelectual do mundo das ideias, algo meramente terrenal, material, hierarquicamente baixo” (p. 167) Há uma desvalorização, então, da personalidade verdadeiramente humana. Isto também ocorre pelo fato de que o mundo ideal ou a religião impõem exigências abstratas ao homem que ultrapassam os limites de sua própria condição humana, o que lhe desvia do caminho de “superação concreta daqueles momentos do homem que lhe atam à superfície da cotidianidade e lhe impedem explicitar com suas próprias forças o essencial de si mesmo” (p. 167)

Para o filósofo húngaro é um desenvolvimento necessário que as correntes éticas que se fundam na intenção de explicitar o núcleo humano imanente do homem utilizem conceitos e descrições cientificamente objetivas, desantropomorfizadoras. Reversamente, “a ultrapassagem abstrato-transcendente do humano, teorética e praticamente generalizado, tem que levar a uma aproximação a – ou até uma realização de – usos, ritos etc., mágico-religiosos”, numa predominância dos reflexos antropomorfizadores (p. 167).


Sávio Bastos

Membro do Gposshe