As posições políticas de Nietzche segundo os ensinamentos de Lukács
Lukács aponta para duas características fulcrais do pensamento de Nietzche: a defesa do aristocratismo no sentido de que cabe a uma elite governar e que, para isso, só essa elite deve produzir e acessar o conhecimento humano; e a condenação do socialismo.
Ainda segundo Lukács, Nietzche entende que o meio para se atingir uma elevada e autêntica cultura é o surgimento de uma elite que seja materialmente sustentada por uma classe de trabalhadores, pela plebe, pelas massas, que para ele faria o trabalho físico (não intelectual) e, por isso mesmo, não teria a mínima necessidade de ter acesso à citada cultura.
Assim, pondo os olhos no fato histórico de que a escravidão propiciou o suporte material (econômico) para o excepcional desenvolvimento da cultura grega clássica, na Antiguidade, Nietzche chega a afirmar que “mesmo sendo verdade que os gregos sucumbiram por causa da escravidão, não é menos verdade que nós sucumbiremos pela falta de escravidão” [1], ou seja, pela falta de trabalhadores que sustentem uma elite que, livre do trabalho penoso de produção da riqueza material, tenha acesso ao ócio necessário à produção de uma cultura imortal como a produzida pelos gregos antigos. E a libertação dos trabalhadores da exploração da elite de capitalistas é o socialismo. Daí que o aristocratismo e a condenação ao socialismo estão interligados.
A postura antissocialista de Nietzche fica bem caracterizada pelo seu apoio ao chanceler alemão Bismarck, que em 1878 aprovou leis que proibiam a existência de partidos de trabalhadores, em resposta ao crescente ascenso do movimento político-social da classe operária alemã. Lembremos também que Bismarck aprovou, em 1883, um sistema de seguridade social para os trabalhadores. Era a política da “cenoura e bastão” aplicada após a Comuna de Paris de 1871 e após a grande crise mundial do capitalismo de 1873.
É curioso que mesmo reprimindo ferozmente o movimento operário, o governo de Bismarck era considerado democrático por Nietzche, que via na política do governante alemão um instrumento para uma evolução social que podia combater eficazmente a revolução social preconizada pelo movimento socialista e tão detestada pelo próprio Nietzche que, inclusive, tinha admiração por Voltaire, a quem ele considera um representante da moderação e do evolucionismo, e uma autêntica ojeriza por Rousseau, que teria insuflado o otimismo revolucionário aos franceses em 1789. Nietzche considera Voltaire “o homem do seu século, o filósofo, o representante da tolerância e da descrença”, descrença esta no citado otimismo revolucionário insuflado por Rousseau[2].
E assim, Lukács afirma que “na segunda metade dos anos 1870 Nietzche tornou-se ‘democrata’, ‘liberal’, evolucionista, pois viu nisso o meio mais eficaz de se contrapor ao socialismo. O seu entusiasmo por essa inevitável fase de transição, como dizia na época, é bastante moderado; é preciso, como ele escreve, ‘adaptar-se às novas condições, assim como nos adaptamos quando um terremoto muda as velhas fronteiras e os contornos do solo e altera o valor da propriedade’[3]. Entretanto, na segunda parte da mesma obra, ele acredita ser possível ‘que a posteridade se ria desse nosso temor’ e aprove o período democrático de transição. ‘Parece’, continua ele, ‘que a democratização da Europa é um elo na cadeia das tremendas medidas profiláticas que são a idéia do novo tempo e com que nos distinguimos da Idade Média. Agora é o tempo das construções ciclópicas! Derradeira segurança nos alicerces, para que todo futuro possa construir sobre eles sem perigo! Impossibilidade, doravante, de os campos da cultura serem novamente destruídos, da noite para o dia, por selvagens e absurdas torrentes da montanha! Barragens e muralhas contra os bárbaros, contra as pestes, contra a servidão física e espiritual’[4].”[5]
“Nietzche vai tão longe por esse caminho”, continua Lukács, “que chega ao ponto de condenar a exploração como algo insano e inútil: ‘A exploração do trabalhador foi, como se compreende agora, uma estupidez, um esgotamento do solo a expensas do futuro, um grande risco para a sociedade. Hoje em dia temos quase a guerra: e, em todo o caso, os custos para manter a paz, para fechar acordos e inspirar confiança serão imensos de agora em diante, porque imensa e prolongada foi a tolice dos exploradores’[6]. A nova forma de governo – e aqui ele, Nietzche, se refere expressamente a Bismarck – é um compromisso com o povo que é a-histórico, mas igualmente hábil e útil e que permite, aos poucos, transformem-se todas as relações humanas.” [7]
Segundo ainda Lukács, Nietzche acredita que essa “evolução democrática” na Alemanha teria como efeito mais positivo a criação de uma nova elite que passaria a comandar a nação. Assim, nem mesmo na sua “fase democrática” ele abandonou as suas convicções aristocráticas. Para Lukács, Nietzche “percebe a salvação da cultura exclusivamente na concessão decidida de privilégios a uma minoria, cujo ócio se fundamenta sobre o trabalho físico duro da maioria, das massas.” [8] E de fato Nietzche afirma que “uma cultura superior pode surgir apenas onde houver duas diferentes castas da sociedade: a dos que trabalham e a dos ociosos, os que são capazes de verdadeiro ócio; ou, expresso de maneira mais forte: a casta do trabalho forçado e a casta do trabalho livre” [9].
Nietzche acredita que quando o povo tiver maioria no parlamento ele “atacará a elite capitalista, comercial e financeira com o imposto progressivo e, aos poucos, criará realmente uma classe média que estará em condição de esquecer o socialismo, como uma doença superada.” [10] A inocorrência da formação desta classe média durante o governo de Bismarck e o grande receio de Nietzche de que o socialismo de massas conquiste o poder político o fará abandonar as ilusões “democráticas” de forma bem nítida em A Gaia Ciência, de 1882. Mas esse é um tema para um próximo artigo.
Domingos Sávio
Membro do GPOSSHE
[1] In Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 286.
[2] In Nietzche, a Vontade do Poder, citado por Lukacs em A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 290/291.
[3] Nietzche, Humano, Demasiado Humano II, Cia das Letras, 2008, p. 134
[4] Nietzche, Humano, Demasiado Humano II, Cia das Letras, 2008, p. 291
[5] Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 291
[6] Nietzche, Humano, Demasiado Humano II, Cia das Letras, 2008, p. 216-217
[7] Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 291
[8] Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 291-292
[9] Nietzche, Humano, Demasiado Humano II, Cia das Letras, 2008, p. 134
[10] Nietzche, Humano, Demasiado Humano II, Cia das Letras, 2008, p. 293