A inflação é o látego, o chicote do capital
O que é a inflação? A subida dos preços em velocidades maiores ou menores. Economistas e imprensa tratam esse fenômeno econômico como algo prejudicial a toda a sociedade. Na verdade, os analistas tendem geralmente a afirmar que a economia é uma estrada de mão única, onde os seus efeitos podem ser benéficos ou maléficos a todos igualmente. Nada mais distante da realidade.
A inflação é um mecanismo de controle social das camadas assalariadas, ou das sem salário. Quase como um substituto do chicote a obrigar à busca desesperada pela sobrevivência. Um instrumento para submeter a população à contínua ameaça, à chantagem para conseguir os meios de vida.
A economia não age igualmente para todas as camadas sociais. De fato, sempre desconfiei do termo “sociedade” no capitalismo. Não vivemos em uma participação societária, em uma sociedade que reparte os ganhos de acordo com a participação acionária de cada um. Talvez a maldita Margareth Thatcher tivesse razão ao dizer que não reconhecia a existência de uma sociedade, só reconhecia indivíduos. Eu diria que concordo com a primeira parte da afirmação, não há sociedade. Mas, discordo da segunda, não há indivíduos isolados, mas há classes e camadas sociais em luta brutal.
A “ciência” econômica não poderia existir independentemente desta luta. As teorias formuladas nela são voltadas para atender a interesses das forças em combate. Não há ciência aqui. Não no sentido de leis válidas para todos os protagonistas do embate social. Há interesses e propostas que beneficiam uns em detrimento de outros.
Vivemos a permanente propaganda de que as ações governamentais – seguindo preceitos teóricos “sérios e técnicos” da “ciência” econômica – devem servir a toda a população de um país. A ilusão de que um governo existe para todos. A má utopia de que somos todos beneficiários ou prejudicados uniformemente por ações governamentais. O sonho macabro de que temos os mesmos interesses: os assalariados, camadas pobres e médias baixas de um lado e as empresas e seus proprietários bilionários do outro.
Talvez por isso nos iludamos e soframos com as ações
governamentais. Esperamos uma fraternidade (irmandade, sororidade)
que não existe. Esperamos um governo comum, uma comunidade de
interesses, uma “sociedade” onde nos beneficiemos mutuamente.
Não
é assim. Enquanto sonhamos, as camadas dominantes sabem o que
querem, controlam os meios e dirigem governos impiedosamente para seu
benefício. Citarei pensadores díspares, aparentemente
inconciliáveis aqui.
O primeiro é Maquiavel, que nos ensinou como o poder se comporta.
Por isso nunca será perdoado pelos poderosos. O poder trama e ilude
e se beneficia, não há progresso comum. Devemos entender que
devemos tramar contra o poder, dele nada podemos esperar.
O
segundo é Buda, Sidarta Gautama. Ele nos disse que é preciso ver as
coisas como são e não como desejamos que deveriam ser. Ele nos
impele a acordar, a ver o real, a despertar do sonho ilusório
produzido pela deusa Maya. Rasgar o véu da ilusão.
O terceiro é Marx, o mais imperdoável de todos. Marx desnudou o capitalismo. Sua obra central tem como título “O Capital: crítica da economia política”. Não se chama “O Social”, “A Sociedade”, “O Trabalho”. Só há o domínio do capital. O capital é o poder que Maquiavel desmascarava. O capital é a verdadeira deusa da ilusão.
Só há compreensão de fenômenos econômicos com esse alerta
incandescente, com esse “aviso de incêndio” de Walther Benjamim.
Não pode haver leitura ingênua.
A inflação não é ingênua.
Não é um fenômeno para além do mundo físico, distante dos
corredores do poder. A inflação é programática. A busca pelo
empobrecimento generalizado de camadas pobres, médias, assalariadas
ou não é um projeto, o verdadeiro projeto do capital, o retorno
para seu caminho original.
Marx o chamou de acumulação primitiva. Alguns pensaram que Marx delimitara a acumulação primitiva aos primórdios do capitalismo. Mas não é correto. Marx a compreendia como elemento permanente da acumulação de capital, ou não teria dito que a dívida pública faz parte dele. Ou ainda que a compressão dos salários é um dos elementos desta acumulação primitiva. A inflação é compressão não só de salários, mas de toda renda que está sob o domínio do capital. A inflação é o retorno do capital a si mesmo. É a verdadeira face do pesadelo. Ela não é a perda coletiva e uniforme da “sociedade”. Nem é o fenômeno descrito pela teoria econômica em sua arte de enganar e subjugar. Economistas que servem ao poder capitalista são magos da ilusão, sacerdotes do véu ilusório lançado pelo deus “capital”. Não é à toa que Marx descrevia o capital como uma “abstração real”, pessimamente traduzido em português como abstração racional, ou pior, razoável.
O capital é abstrato e real como um deus sanguinário, a exigir
sacrifícios.
Porém, ao invés da imolação das vítimas com
golpes de punhal em um altar macabro, temos o sacrifício permanente
da fome e insegurança alimentar, das dívidas, das contas por pagar,
dos gastos com saúde. A inflação atual não é resultado de
qualquer guerra, ou consequência dos efeitos da pandemia sobre as
cadeias de suprimentos como alardeiam os economistas ao serviço do
poder.
A inflação é o projeto do capital de retornar ao seu caminho original. A inflação é o futuro e o passado. Afinal, o capitalismo começa com a “grande inflação” que destruiu o feudalismo europeu e agora consome multidões.
A inflação é o látego, o chicote do capital!
Fábio Sobral
Professor da UFC nos cursos de Economia Ecológica, Economia e
Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) Economista
com doutorado em Filosofia pela Unicamp.