domingo, 26 de julho de 2020

O conto da Aia, uma resenha

julho 26, 2020


O livro O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, trata-se de um romance distópico que narra a vida na República de Gilead, anteriormente o território dos EUA. Publicado em 1985, a narrativa se passa num futuro próximo, num país governado por um regime teocrático e totalitário, imposto por cristãos radicais sob uma interpretação extremamente exagerada e desvirtuada do Velho Testamento.

A história é narrada pela perspectiva de Offred, uma aia cuja única função é dar um filho ao Comandante. Retirados todos os seus direitos, até mesmo a sua identidade, em Gilead, as mulheres são divididas em castas funcionais: as Marthas, para serviços domésticos; as Esposas, administradoras do lar; as Aias, como reprodutoras; e as Tias, senhoras que educam as mulheres para a servidão e submissão.  

Pelo viés da opressão às mulheres, o leitor é levado a observar cada parte da estrutura que organiza a sociedade que, sob a alegação de princípios religiosos, supostamente éticos e justos, mantém as cisões e as ordenações essenciais para a manutenção de um sistema não apenas opressor, desumanizador, mas principalmente, destrutor de vidas. Nesse Estado, as universidades foram extintas, não existem jornais, livros, revistas ou filmes. Não existem também advogados, uma vez que ninguém tem direito à defesa. Os “criminosos” são fuzilados e expostos em praça pública para servir de exemplo.  

Compondo um panorama completo de um Estado teocrático e totalitário e seus aspectos políticos e sociais, com evidente inspiração em estados fundamentalistas, o romance desenvolve-se com maestria ao equilibrar de forma harmoniosa elementos do gênero literário distopia e a realidade, criando um ambiente no qual o leitor é conduzido a fazer profundas reflexões, guiado pela carga simbólica dos personagens, cenários e acontecimentos.

Entre muitos momentos tensos, cenas fortes e profundamente simbólicas da obra, a narradora e personagem principal, a aia Offred se pergunta, em alguns momentos, como as pessoas permitiram que aquilo acontecesse, lembrando que alguns se rebelaram, lutaram, porém sem êxito. Outros, simplesmente ignoraram os sinais e indícios que se apresentavam de forma iminente dessa possível ditadura. Mergulhada em um sofrimento sem medidas, deixa em aberto esses questionamentos.  

Inquestionavelmente atual, o Conto da Aia é uma leitura imprescindível para quem deseja compreender a conjuntura política vivenciada mundialmente nesse momento.


Profa. M.a Marcilia NogueiraProfessora da Rede Estadual de Ensino do Ceará, membro do GPOSSHE.

Foto: acervo pessoal de Karla Costa cedido ao GPOSSHE.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Entrevista com o camarada Rui Holanda

julho 21, 2020


O GPOSSHE entrevistou uma icônica personagem da luta dos trabalhadores de nosso estado, o camarada Rui Holanda, que atuou no movimento popular, camponês e sindical, e se notabilizou pela fidelidade aos princípios revolucionários e pela intrepidez nas ações que dirigiu ou das quais participou, no embate de classes contra o Estado burguês.

Sua integridade moral o credenciou para gerir as finanças de diversos movimentos nos quais teve participação. E a exemplaridade de sua conduta, em cada um deles, o fez referência também nessa esfera da luta política.

Ele vivenciou o ressurgimento dos movimentos sociais em nosso país, após a ditadura militar, e a decrepitude daqueles, em função da política de conciliação de classes implementada por suas direções ao longo dos últimos 30 anos.

Caracterizando-se mais como agitador do que organizador ou propagandista, ele usa de refinada ironia para expressar sua oposição ao poder do capital e aos que lhe dão sustentabilidade política.

Aos 80 anos, o camarada Rui continua firme na esperança de que a unidade e luta dos trabalhadores no mundo inteiro resulte na destruição do capitalismo e na edificação da sociedade socialista.

 

GPOSSHE: Camarada Rui, como você ingressou no movimento da classe trabalhadora?

 

Rui Holanda: Embora minha revolta  contra as três colunas do “capetalismo” – a divisão de classe, a extração de mais-valia e a propriedade privada dos meios de produção – tenha se manifestado desde a juventude, foi somente a partir da nona década do século passado que dei os primeiros passos na luta revolucionária, até o meu ingresso no aguerrido e competente PLP (Partido da Revolução Proletária).

 

GPOSSHE: O camarada teve uma participação nos movimentos sociais. Quais foram eles?

 

Rui: Sim. Antes mesmo de minha efetiva participação no PLP, muitas lutas foram por nós organizadas e dirigidas, através dos movimentos populares e sindicais, isso nos anos 1970, 1980 e 1990, quando aconteceram centenas de saques em grandes mercantis, diversas ocupações de solo urbano (dos sem-teto) e rural (dos sem-terra). As organizações de que participamos, nos períodos aludidos, em função das quais foram travadas os principais embates contra o Estado burguês foram: Conselho de Moradores da Granja Portugal (da qual éramos presidente); União das Comunidades da Grande Fortaleza; MST (Movimento dos sem-terra); MLT (Movimento de Luta pela Terra); sindicato de trabalhadores rurais de Itapiúna, Capistrano de Abreu, Madalena, Itatira, Pentecoste, Itaitinga, Chorozinho e Choró-Limão.

Dentre as várias lutas de que participamos, as que mais repercutiram foram os saques em redes de supermercados de âmbito nacional, saques estes acontecidos com maior força justamente no período da grande seca de cinco anos, que se deu entre 1979 a 1983, quando foram mortos 3,5 milhões de nordestinos de fome ou de doenças relacionadas à desnutrição crônica e aguda. Tudo por causa da situação de abandono a que as populações pobres foram submetidas pelos genocidas governantes da época. O livro Genocídio Nordeste – da insuspeita Pastoral da Terra – conta muito bem essa terrível matança de brasileiros.

Mas no setor de ocupação de áreas urbanas, uma teve maior destaque, devido à magnitude do patrimônio “esbulhado”: foi a ocupação do Conjunto Jardim Castelão, com 462 casas, situado em frente ao famoso cemitério Parque da Paz e próximo ao não menos conhecido aterro do Jangurussu.

A proprietária do Conjunto era a riquíssima imobiliária Terra que, com a ocupação ocorrida em 2/5/1986, se via a braços com sérios problemas junto a bancos e órgãos estaduais e federais. O evento em questão ocupou a grande mídia por muito tempo e serviu de estímulo para muitas outras ocupações promovidas pelos sem-teto.

 

GPOSSHE: O camarada foi vítima da repressão seletiva, promovida pela polícia política do Estado contra as lideranças dos movimentos sociais?

 

Rui: Devido à nossa participação e incentivo às lutas no período, que aconteceram não só em Fortaleza, mas em vários municípios do interior cearense, acabei por ser identificado como um dos principais articuladores dos saques, das ocupações de terras urbanas e rurais, além de outros tipos de pressão ao poder público burguês: acampamentos, invasões de armazéns da COBAL e de cooperativas. Em razão disso, fui detido e preso pelas polícias civil, militar e federal, tendo sido até mesmo torturado pela famigerada PF.

É cabível reconhecer que, durante muito tempo, a burguesia e seus acólitos governamentais não tiveram sossego, mas a repressão se tornou mais intensa, na medida que as ações que realizávamos recrudesciam e as formas de luta se tornavam mais ousadas, a ponto de, em certa altura, a ordem dada aos órgãos repressores ser; “Se pegar, mata.” Por isso tive que fugir e me esconder por dois anos nos grotões do interior mato-grossense.

 

GPOSSHE: Como foi a atuação do camarada no PLP?

 

Rui: No PLP, atuei na organização clandestina do partido, e realizamos ações que surpreenderam a própria esquerda em nosso estado, sendo uma delas a ocupação de uma área de proteção ambiental, no município de Itaitinga, onde fundamos o sindicato de trabalhadores rurais do município. Uma outra foi um saque a uma sede de uma rede de supermercado nacional em Fortaleza.

Eu era responsável pela autodefesa nas ocupações rurais que realizamos e fui escolhido para gerir as finanças dos acampamentos. Inclusive organizei uma bodega comunitária em um assentamento que foi conquista de uma de nossas ocupações. Ela se tornou referência para outros assentamentos, inclusive.

Emprestávamos também eventual apoio às lutas populares e às greves da classe trabalhadora em Fortaleza.

 

GPOSSHE: Como o camarada avalia a atual situação da classe trabalhadora em nosso país?

 

Rui: Infelizmente, devido ao minguado grau de consciência de nosso povo, aliado ao imutável oportunismo da nossa esquerda conciliadora, as lutas foram esmorecendo, esmorecendo... A ponto de hoje não se ver mais nada em termos de lutas consequentes, quer políticas, quer comunitárias, quer sindicais.

E o PT, principalmente, teve um papel fundamental nessa apatia, nesse desânimo que se abateu sobre a classe trabalhadora deste país, em razão da distância abismal imposta ao povo pela gestão política do Estado por aquele partido que, por 14 anos, esteve em suas mãos, mas não a aproveitou para fortalecer a consciência e a organização de nosso povo. Aqui mesmo, no Ceará, vemos a política do Camilo “Santanás”, que atende fundamentalmente aos interesses da plutocracia.

 Dizem que reconstruir é muito mais difícil do que construir, e  a premissa é a de que, devido aos imensos erros do passado, será muito mais difícil recolocar os trabalhadores nos trilhos de sua libertação, rumo à nova ordem social livre da opressão, exploração e tantos outros sofrimentos a que está sujeita a classe proletária de nosso país.

 

GPOSSHE: Como o camarada caracteriza o atual governo de nosso país?

 

Rui:  É um governo que foi imposto ao nosso povo, por meios fraudulentos e sórdidos e pela ingerência direta dos Estados Unidos, para destruir as conquistas sociais de nosso povo e atender aos interesses dos monopólios daquele país. Ele é, na verdade, a volta dos militares entreguistas ao poder, dentro da democracia burguesa, cujo objetivo precípuo é aplicar as medidas de cunho neoliberal em nosso país e reprimir a classe trabalhadora, se ela ousar se opor a esse objetivo.

De certa forma, ele é um produto dos equívocos da esquerda capitulacionista, que imobilizou os movimentos da classe trabalhadora em nome da governabilidade de gestões a ela ligadas, e cuja consequência foi o descrédito de amplos setores do proletariado em seus próprios organismos de luta.

 

GPOSSHE: E com relação à conjuntura internacional, como o camarada avalia a situação do capitalismo hoje?

 

Rui: Vemos, na verdade, a mesma situação de sempre. Os grandes magnatas que impõem as diretrizes econômicas e políticas para o mundo se esmeram na aplicação de três princípios fundamentais para consolidar seu poder: a eliminação de populações depauperadas em todo o planeta, a destruição dos direitos mínimos da classe trabalhadora e demais explorados e o projeto de bestificação cavalar jumentalizada para idiotizar o povo, para que nunca veja com clareza as causas de sua pobreza, e do sofrimento e humilhações a ela adstritos.

 

GPOSSHE: O camarada ainda acredita na possibilidade de a classe trabalhadora no mundo conseguir destruir o capitalismo e gestar o socialismo?

 

Rui: Sim, claro. O sofrimento contínuo dos trabalhadores vai impeli-los à luta, e esta vai requerendo uma adequação de suas organizações às exigências do embate de classes. A burguesia se impõe também pelos equívocos do movimento do proletariado, mas este vai aprendendo a superá-los e a buscar formas mais exitosas de organização e de luta por conquistas sociais até o momento da conquista do poder político definitivo. Aí então começará o fim da pré-história da humanidade, como citou Marx.

 

Entrevista realizada pelo camarada Maurício Oliveira

Foto: Acervo pessoal Maurício Oliveira cedido ao Gposshe


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Uma resenha e uma estranheza: "Adulta sim, madura nem sempre: fraldas, boletos e pouco colágeno"

julho 15, 2020


Eu costumava acompanhar um podcast chamado É nóia minha?, produzido pela roteirista Camila Fremder. Uma produção divertida que passava longe de debater temas profundos ou politizados, mas que cumpria uma função interessante de entretenimento de fácil consumo. O que interessa é que eu me divertia. Até que o podcast foi comprado por uma plataforma paga que eu não uso, então, parei de ouvir.

Esses dias, vivendo o marasmo do quarto mês de quarentena, vi, numa postagem no Instagram, que a dita roteirista lançara um livro e, claro, a propaganda garantia risadas e divertimento. Preciso dizer, a essa altura, que eu não sou o tipo de pessoa que acha graça de piadas vazias e sem conteúdo, o que deveria ter me alertado. Resultado: comprei o livro que recebe o título Adulta sim, madura nem sempre: fraldas, boletos e pouco colágeno.

Eu superestimei o livro sim. Eu esperava, no mínimo, boas histórias, divertidas, engraçadas, estava mirando em Luis Fernando Veríssimo, mas "errei feio, errei rude". Acontece que, mesmo ele não tendo tido nenhuma graça para mim ou acrescentado qualquer conteúdo na minha vida, o livro me trouxe reflexões, mas reflexões revoltantes sobre como, a depender da classe a que fazemos parte, vivemos vidas completamente diferentes, e, para citar o livro, de como nos tornamos adultos de modos muito diferentes.

Leitores, vocês não me venham argumentar que todas as formas de viver são válidas e legítimas. Não é essa a questão. Não culpo indivíduos singulares pelo tipo de vida que levam, mas compreendo as relações sociais que engendram desigualdades na forma de viver da sociedade capitalista. Também não legitimo o discurso do “reconheça seu privilégio” por duas razões: primeiro porque ele, muitas vezes, dirige-se a quem não tem privilégio nenhum, mas ocorre de acessar um direito mínimo no interior de precariedade e exploração; segundo porque, quando ele atinge quem realmente tem privilégio, exige apenas reconhecimento e isso não basta. Eu quero mesmo é superar a sociedade capitalista: destruir pela negação, conservar o que produzimos de humano e, finalmente, elevar a um patamar superior: o comunismo.

Então, voltemos ao livro. Camila Fremder, no livro, conta pequenas histórias pessoais e faz reflexões sobre sua própria vida, como o título aponta. Na transição para a vida (nem tão)adulta de Camila, morar sozinha, trabalhar, pagar os próprios boletos, casar, engravidar, lidar com as expectativas dos outros sobre ser mãe e ser realmente uma mãe são os temais mais desenvolvidos. Certamente, muitas mulheres hão de se identificar com Camila e dar muitas risadas com as histórias contadas e, talvez, o livro seja um sucesso.

Por quê?

Explico: por que Camila é um tipo. Um personagem típico é aquele que condensa as características principais de um tipo social, fazendo com que o leitor reconheça aquilo que ele representa da realidade. Assim, a Camila personagem do livro é uma típica brasileira de classe média. Olhar para como Camila tornou-se uma adulta diz muito sobre as desigualdades sociais que formam o Brasil como ele é.

Enquanto Camila conta que se deu conta de ter se tornado adulta, quando um vendedor de panos de prato, no sinal, oferecera a ela seu produto, dizendo que ela devia estar precisando; eu, uma leitora situada num lugar de classe, olhei para a existência do vendedor de panos de prato no sinal, tentando ganhar a vida, provavelmente para sustentar sua existência e de sua família que nem deve imaginar que sua ação serviu de epifania para a mulher no interior de seu carro e que viraria personagem pra lá de secundário de um livro. Essa dicotomia se instalou nas primeiras páginas e não pude mais perder de vista o lugar de classe de onde falava aquela mulher.

Enquanto Camila destacava a nostalgia de sua infância indo para casas de praia com seus pais, jogando videogames, não se preocupando com o botão da blusa que caiu, viajar com os pais sem se preocupar com agendar o voo, o hotel, verificar documentos; outras mulheres e homens, neste país, tornaram-se adultos tendo que trabalhar cedo para ajudar a sustentar a casa e nem conseguem sentir nostalgia porque, na verdade, não tiveram infância, nunca foram cuidados e protegidos, nunca viajaram nem tiveram tempo para brincar.

A maioria das pessoas aqui, ao tornarem-se adultas, entram num caminho sem volta, não podem se dar ao luxo de, como Camila, gostar de artistas teen nem de dedicar-se a assistir aos filmes da sessão da tarde, afinal têm verdadeiros problemas não só para pagar boletos, mas para arrumar trabalho num país cujo desemprego, pela primeira vez na história, é maior que o número de pessoas empregadas.

Fico me questionando como somos indiferentes à realidade do país em que vivemos. Como substituímos problemas de verdade, problemas que têm a ver com a vida e sua manutenção por pseudoproblemas de uma classe média deslumbrada. Claro que são questionamentos retóricos, pois, as classes abastadas sofrem da mesma alienação que as classes subalternas, mas, para aquelas, não há ameaça à vida, apenas uns percalços, algumas pedras no caminho.

A cultura de massa, no entanto, consegue subverter a realidade e legitima um tipo de experiência como hegemônica, como universal, ao difundir esse discurso como representativo de uma universalidade. É muito pobre a cultura da classe média, as experiências e a visão de mundo, muito estreita, limitada e limitante. Claro que Camila não é culpada da ideologia que dissemina, mas, consciente ou não, é cúmplice de um Brasil que continua com a visão embaçada, bem como diria Chico Buarque: “Sol, a culpa deve ser do sol / Que bate na moleira, o sol / Que estoura as veias, o suor / Que embaça os olhos e a razão”.

Karla Raphaella Costa Pereira
Foto: Karla Costa

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A velha da lamparina

julho 09, 2020

Era exatamente meia-noite quando Seu Antônio se levantara da rede para averiguar um barulho estranho que se fazia no quintal. Percebeu logo em seguida, que tratava-se de uma pessoa deambulando em círculo. Aquilo, no entanto, não era algo insólito. Invariavelmente, nos primeiros dias de novembro de cada ano, Seu Antônio ouvia aquele pisado sempre à meia-noite,  como se alguém quisesse dar um recado, ou apenas atormentar os vivos. Nesta noite, quando Seu Antônio saiu para flagrar aquilo que lhe perturbava, foi tomado por um medo indescritível: aparecia ali bem na sua frente, a tão famigerada "velha da lamparina", que ele tantas vezes ouvira falar pelas histórias contadas por seu avô. Era uma figura sombria, de face indiscernível. Vestida com um manto negro e uma lamparina na mão, irrompia no meio do quintal, fazendo um tipo de lamento horripilante,  que rasgava a noite numa agonia sem fim. Seu Antônio não teve tempo de espantar o vulto tenebroso, apenas começou a rezar com fervor, agarrando-se ao terço com o qual sempre deixava enrolado na mão direita, exatamente para servir de amuleto contra as assombrações do sertão profundo. Porém, de repente a figura sombria ao fundo do quintal evanescia, deixando para trás apenas seu lamento pálido, e a fagulha de luz da lamparina que se apagava em meio a escuridão no abismo da noite.

Antonio Marcondes

terça-feira, 7 de julho de 2020

Seduzidos para a morte. O feitiço da mercadoria e do capital durante a pandemia

julho 07, 2020


Para a proteção da vida da humanidade, seria necessário um isolamento social rigoroso, com exceção dos serviços verdadeiramente essenciais de abastecimento de alimentos, de saúde e de transportes, até o advento da vacina contra o coronavírus. Apesar de a humanidade possuir reservas suficientes para tanto, esse isolamento se revelou impossível no capitalismo.

Trump, Johnson e Bolsonaro atuaram como negacionistas da gravidade da crise sanitária e, assim, fizeram com que EUA, Grã Bretanha e Brasil se tornassem responsáveis por metade das mortes do planeta. São governos genocidas de seu próprio povo. A grande maioria dos governos burgueses, porém, fez alguma demagogia social.

Muitos líderes políticos declararam que a vida é mais importante que os lucros. Alguns realizaram, por poucas semanas, alguma forma de isolamento social. Não poucos, inclusive, usaram a justificativa das medidas necessárias contra a pandemia para atacar greves, protestos populares e sufocar a resistência política social. Por isso, a luta pelo controle sobre o isolamento social também faz parte da luta da classe trabalhadora contra a burguesia, seu Estado e seus governos. Passado algum tempo, porém, todos os governos trataram de proteger o capital da recessão criada pelas medidas de isolamento social, ao custo da desproteção da vida e do aumento dos números de contaminados e mortos.

Por mais que o comércio virtual tenha disparado nos últimos meses, ele não supre as necessidades do mercado capitalista. A reabertura dos comércios se impôs, no auge da pandemia, mesmo com os hospitais colapsados e mesmo que tal reabertura significasse a ampliação do caos no sistema de saúde. A liberação começou quando até mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que o pior ainda estava por ocorrer. Nos EUA, a reabertura do comércio foi fatal para a multiplicação do número de casos de infectados e de mortes. Como registra o New York Times:

“O número de casos está aumentando em grande parte dos Estados Unidos, inclusive em vários estados que foram os primeiros a reabrir. Como o número de pessoas hospitalizadas e a porcentagem de pessoas positivas também estão aumentando em muitos desses locais, o aumento de casos não pode ser explicado apenas pelo aumento dos testes ... E enquanto alguns lugares reimpuseram restrições, outros continuam a reabrir suas economias... Em alguns estados que reabriram cedo, os níveis de casos aumentaram novamente.” (Coronavírus nos EUA: Últimos Mapas e Contagem de Casos).[1]

Não nos referimos a grande maioria dos assalariados assediados a voltar ao trabalho, ainda mais sob a chantagem do desemprego, multiplicado pela crise econômica agravada pela pandemia. Não exigimos nenhuma parcimônia, dos que estavam confinados há semanas, no sentimento de reencontrar-se com os amigos e amigas. Tampouco deve-se ter parcimônia em relação ao próprio consumo individual ou familiar. “Os trabalhadores fizeram tudo e podem destruir tudo, porque podem fazer tudo de novo”. Do mesmo modo, eles têm direito a tudo, a todos os valores de uso. Há também uma boa parcela dos trabalhadores conscientes que buscam preservar-se, ficando em casa o quanto podem. A nenhum desses casos nos referiremos aqui. Aliás, sobre a parcimônia, nos aliamos a Oscar Wilde que uma vez escreveu:

“Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar a um homem que esteja passando fome que coma menos. Que um trabalhador do campo ou da cidade usasse de parcimônia, seria absolutamente imoral. Um homem não deveria estar pronto a mostrar-se capaz de viver como um animal mal alimentado.” (A alma do homem sob o socialismo, 1891).

Com a reabertura, milhares de pessoas foram aos shoppings e aos mercados para comprar, ou simplesmente simular o circuito de consumidores pondo-se em contato, se contaminando, adoecendo e morrendo. Foram atraídas como peixes para o anzol, como qualquer animal é atraído por uma isca e fazem isso apesar de terem algum nível de consciência dos riscos. Caminharam e caminham cegamente para a morte. Por que isso é assim?

O senso comum costuma criticar o consumismo. Segundo essa concepção, a culpa da insensata corrida aos shoppings seria da própria vítima, o consumidor. A crítica ao consumismo, porém, é uma crítica moralista. A culpa não é dos trabalhadores, como tenta impor a dupla moral burguesa, assim como a culpa do vício em alguma droga não é do drogado, mas do sistema do narcotráfico que a seduziu e estimulou ao vício. Nem mesmo o mais perverso dos capitalistas escapa ao fetiche da mercadoria, do dinheiro e do capital. Os governos são determinados pelos grandes capitalistas que, por sua vez, são determinados pelo capital. Não foi por acaso que Marx batizou sua obra magna de “O Capital”, e não “O Capitalismo” ou “O Capitalista”.

“[...] o trabalho se representa no valor, e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho[...] Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo.” (O Capital, livro I, p. 155-156, Editora Boitempo).

Portanto, para entender essa tendência suicida da “insensata corrida aos shoppings”, temos que ir à raiz do problema, e a raiz é explicada pelo fetiche da mercadoria. Ao explicar o processo de produção do capital, no capítulo 1 do livro I, da obra O Capital, Marx esclarece que é um erro acreditar que a mercadoria é valor de uso e valor de troca.

“Quando, no começo deste capítulo, dizíamos, como quem expressa um lugar-comum, que a marcadoria é valor de uso e valor de troca, isso estava, para ser exato, errado. A mercadoria é valor de uso – o objeto de uso – e “valor”. (Idem, p. 136).

Na verdade, a mercadoria é valor de uso e “valor”, um valor que nasce antes da troca. A substância do valor é o trabalho e sua medida de grandeza o tempo de trabalho. A forma de valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mas também mais geral do modo burguês de produção [...] é tomada pela forma natural e eterna da produção social” (idem, p. 155).

 

Feitiço mortal

 

Mais adiante, quando vai explicar o caráter fetichista da mercadoria e seu segredo, Marx diz que o caráter místico da mercadoria não está no seu valor de uso nem no conteúdo das determinações do Valor. O caráter enigmático das mercadorias surge da relação social estabelecida entre elas como produtos do trabalho humano. Os produtos do trabalho humano, quando assumem a forma de mercadorias, tornam-se “coisas sensíveis supra-sensíveis” (idem, p. 146), e assumem para os homens uma relação entre coisas.

O fetiche da mercadoria não é uma fantasia, como superstições ou ilusões descoladas da realidade; são ilusões fabricadas pela realidade. O fetiche da mercadoria é uma ilusão real.

No capitalismo, os objetos de uso necessários se tornam mercadorias produzidas pelo homem. Os produtores das mercadorias se condicionam a realizar o contato social entre si, mediante a troca de produtos dos seus respectivos trabalhos.

A forma valor do produto do trabalho é tomada como natural e eterna. As mercadorias donas do modo de vida dos homens, que por elas são controlados, “relacionam-se umas com as outras apenas como valores de troca”. E “o valor só se realiza na troca, isto é, num processo social.” (idem, página 158).

O ciclo do capital se consuma com a troca das mercadorias. E as pessoas, como que obnubiladas, se movimentem atrás das mercadorias. Mesmo que essa troca seja representada entre a forma dinheiro e outra mercadoria, as mercadorias e o dinheiro ou o capital, produtos do trabalho humano, exigem que os homens, pondo sua vida em risco, as satisfaçam, para consumar o ciclo.

É o modo como os homens produzem sua vida que explica como eles acabam por liquidá-la. O grande aumento dos casos de depressão e de suicídio[2] durante o isolamento social se deve ao fato de as pessoas não poderem realizar esse movimento ou, por não terem dinheiro para realizar esse movimento, se sentirem excluídas, frustradas. Inclusive, para além de ter o objeto, de possuí-lo, independentemente de seu valor de uso para o consumidor, é importante realizar a prática do pagamento, em dinheiro ou crédito.

 

Crise econômica, Pandemia e Fetichismo do Capital

 

O fetiche da mercadoria, do dinheiro e do capital são ilusões reais. Mas são mistificações diferentes, que podem atuar de forma combinada, mas diferentes. Também descrito no Capítulo 1 do Livro I de O Capital, o fetiche monetário, faz com que o dinheiro enfeitice os homens, atuando como “uma coisa natural dotada de estranhas propriedades sociais” (p. 157), como equivalente do valor de toda e qualquer mercadoria produzida socialmente.

Quanto ao fetiche do capital, a pandemia o desmascarou. Essa mistificação vai ser criticada por Marx mais adiante na obra O Capital, no Capítulo 24 do Livro III, que aborda “A exteriorização das relações capitalistas sob a forma de capital portador de juros”. Quando o dinheiro e o valor se valorizam a si mesmos através dos juros, a relação capitalista assume sua forma mais exterior, mais independente da reprodução, mais extremamente mistificada. A fórmula D-MD’ é reduzida a D-D’. O capital se apresenta como criador de si mesmo, produto da coisa, dinheiro que gera mais dinheiro. A coisificação das relações de produção é elevada a máxima potência. Para a economia vulgar essa situação é um achado magnífico, o capital assume existência independente. Se com o dinheiro, momentaneamente, já se apagam as outras determinidades do dinheiro se apagam, se tornam invisíveis as diferenças das mercadorias como valores de uso e a diferença dos capitais industriais constituídos por essas mercadorias e suas condições de produção, o capital, em forma de dinheiro, se apresenta como valor de troca autônomo, no mercado monetário, permanentemente, o capital assume essa forma autônoma em relação a produção e circulação, parece se auto-reproduzir.

Muitas pessoas que são enfeitiçadas pela mercadoria, repudiam o feitiço do capital como já vandalismo na mistificação, admitem as relações entre as coisas produzidas pelo homem desde que que elas não cheguem até a essa forma mais descarada. Feitiço da mercadoria e do dinheiro sim, não poderíamos viver sem eles, mas feitiço da especulação não. Ou seja, são reféns do modo de produção capitalista, mas repudiam sua forma mais desenvolvida, buscam voltar atrás a roda da história.

No estágio atual, de elevado desenvolvimento da força produtiva social do trabalho e diminuição do tempo de trabalho que custa para a reprodução, a sobre acumulação de capitais – como demonstrado por Marx, também no livro III, na abordagem da lei da queda tendencial da taxa de lucros – a taxa de lucros diminui em relação ao aumento da acumulação de capitais e a capacidade produtiva do trabalho social. O capital variável se vê diminuído em relação ao capital constante. 

Esta situação, que foi registrada no ciclo de acumulação de capitais entre a crise de 2008 e 2020, faz com que a queda da taxa de lucros e a guerra comercial EUA-China tenha criado de forma latente uma nova crise econômica. A guerra comercial, com suas medidas protecionistas, deprimiu o mercado mundial, a pandemia e as medidas de isolamento social, fizeram com que ele retrocedesse a índices muito anteriores de produção. A crise sanitária não foi a causa preponderante da crise econômica, mas um detonador.

Em um primeiro momento, em março de 2020, as bolsas despencaram, os capitais fugiram para investirem em dinheiro, no dólar, e mais ainda se refugiaram no ouro. Em um segundo momento, comprando as ações que caíram, o capital voltou a inflar as bolsas de valores. Mas esse salto para a frente não se sustenta enquanto o mercado se mantém em retrocesso acelerado. O desemprego disparou de forma inédita nos EUA. Não cabe mais nos gráficos que registraram as décadas anteriores.


 No Brasil, mais da metade da força de trabalho já se encontra desempregada. Analistas financeiros acreditam que 2020 pode ser o pior ano da economia brasileira desde 1900.


Mas, durante a pandemia, quando o circuito capitalista se interrompe com a retração do consumo mundial e em cada um dos países, pela miséria crescente das massas, desempregadas e endividadas em meio a pandemia, descobre-se os limites da autonomia da valorização do valor. A autovalorização não se sustenta por muito tempo e independente do trabalho vivo. Toda a fantasia se vê questionada. As relações entre as coisas criadas pelo homem, dentre elas, as mercadorias, o dinheiro e o capital, sem o contato com o trabalho vivo e independente da produção e da circulação, não são sustentáveis, porque as coisas não podem prescindir da sociedade humana, da vida humana e da sua condição de existência, o trabalho.

 

O consumismo faz parte do universo ideológico do fetichismo da mercadoria, mas são coisas distintas

 

Fetichismo da mercadoria é diferente de Consumismo. O consumismo, a compulsão pela compra induzida pelo processo de valorização do capital através da publicidade e marketing, muitas vezes é confundido com o fetiche, mas são elementos distintos, sendo que o consumismo é um ingrediente do fetichismo. O fetiche a que se refere Marx é a incapacidade de se supor uma sociedade baseada em relações para além das estabelecidas pelo capital, pelo valor, pelo dinheiro e pelo crédito. Sendo assim, alguém pode livrar-se da compulsão consumista e ainda assim continuar enfeitiçado pelo capital, sem acreditar que um mundo pós-capitalista, comunista, é possível.

Por conseguinte, muito além de se livrar deste ou daquele odiado governo de extrema direita genocida, o que é preciso fazê-lo sem dúvida, é necessário desenfeitiçar-se, quebrar o encantamento do capital. Isto é parte da materialidade do processo revolucionário de luta pela tomada do poder político pelos trabalhadores, expropriação da propriedade privada e controle da produção por conselhos populares.

É no interior desse processo que se pode livrar do domínio fantasmagórico dos condicionamentos práticos que o capital exerce sobre a humanidade, conduzindo-a para a barbárie e atraindo-a para a morte. Dito de outro modo, o processo social da vida só se livrará desse feitiço fatal quando os homens, associados livremente entre si, retomarem o controle do produto de seu trabalho de forma consciente e planejada. Nesse tempo, será eliminada a contradição entre trabalho social e apropriação privada e os meios de produção serão socializados.

 Érico Cardoso, historiador, mestre em Educação.

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[1] https://www.nytimes.com/interactive/2020/us/coronavirus-us-cases.html?te=1&nl=the-morning&emc=edit_nn_20200701

[2] https://www.brasildefato.com.br/2020/06/14/ansiedade-abuso-de-alcool-suicidios-pandemia-agrava-crise-global-de-saude-mental


quarta-feira, 1 de julho de 2020

A especificidade da arte em Lukács: primeiros apontamentos

julho 01, 2020


O caminho empreendido por Lukács no aprofundamento crítico sobre a essência do estético, com base na perspectiva ontológico-materialista, o conduz a caracterizar a arte como um fenômeno histórico-social, colocando a peculiaridade filosófica da “positividade estética” no centro de suas reflexões. A partir dessa concepção, o filósofo húngaro afirma, que a essência da arte não pode ser caracterizada como uma categoria imutável preexistente, mas sim, como o resultado de determinações sociais empreendidas num longo processo de desenvolvimento histórico.

Dessa maneira, assinala em sua obra, que a produção e recepção estéticas são produtos da subjetividade humana, as quais brotaram no cotidiano, e por isso, efetivam-se nele como um reflexo antropomórfico. Lukács (1966, p. 254) revela, ainda, que os reflexos da magia, da religião e do cotidiano, tal como a arte, realizam-se, de forma antropomórfica, dessa maneira, expõe que na “vida cotidiana los deseos y las satisfacciones se centran según eso en el indivíduo: por una parte, nascen de su existência indiviual, real y particular y, por outra parte, se orientan a una satisfacción real, práctica, de deseos personales concretos. No hay duda de que la conformación artística nace de ese suelo”. 

Esta semelhança dificulta ainda mais, o processo de separação da arte dos demais reflexos, pois, de acordo com o esteta húngaro, mesmo operando, em última instância, através de princípios diferentes, os reflexos antropomórficos efetivaram-se milenarmente de forma unificada no processo prático. Desse modo, Lukács demonstra que

Es mucho más fácil practicar la distinción, conceptualmente al menos,  en las mezclas del principio estético com el científico producidas por la vida social que en el primitivo tronco común de arte y magia, o religión. Pues en el primer caso, […] se contraponen los modos desantropomorfizador y antropomorfizador del reflejo de la realidad, mientras que en el segundo caso se trata de variedades de la antropomorfización (LUKÁCS, 1966, p. 232).

Compreendemos, portanto, que o processo separatório do reflexo artístico foi “muy lento, contradictorio e irregular, discurre, para el arte mismo, com mucha problematicidad y con crisis internas”(LUKÁCS, 1966, p. 232), e apenas, com o desenvolvimento gradual, com um determinado nível de elevação da consciência, este reflexo vai desprendendo-se e elevando-se paulatinamente, enquanto um complexo particular.

Para Lukács a arte se constitui enquanto uma objetivação do ser social, como um momento fundamental e decisivo do processo de autoformação do ser humano; um reflexo antropomorfizador da realidade, ou seja, criado pelo homem; próprio do homem e para o homem. Assim, segundo o autor: “La génesis de lo estético es un análogo desprenderse de la autoconsciencia respecto de la práctica cotidiana, como la gênese de la <<consciência de>> en la independización del reflexo científico de la realidad” (LUKÁCS, 1966, p.253).

A arte em seu processo de “independentização” em relação à magia e à religião, por exemplo, se constituiu, com base no prisma ontológico, numa atividade que surge na vida cotidiana, ou seja, parte dela para em sequência, a ela retornar, “produzindo nesse movimento reiterativo uma elevação na consciência sensível dos homens” (FREDERICO, 2005, p. 110).

O reflexo próprio da vida cotidiana pressupõe para Lukács, um “materialismo espontâneo”, pois, “os homens intuitivamente percebem que o mundo exterior existe de modo independente de sua consciência” (FREDERICO, 2005, p. 113). Mas esse reflexo imediato do homem comum capta apenas a aparência fenomênica das coisas, fazendo com que o homem se relacione com um mundo, com características, descontínuas e heterogêneas. O homem imerso na imediaticidade do cotidiano é designado por Lukács como homem inteiro e o homem que se eleva do seu cotidiano, pela arte, por exemplo, é designado pelo autor como homem inteiramente.

Temos assim, que a arte em contraposição a vida cotidiana oferece ao homem um mundo homogêneo, depurado das “impurezas” e consequências próprias do aspecto heterogêneo do cotidiano. Como assinala Celso Frederico (2005, p. 113, negritos do original):

Na fruição estética, o indivíduo depara-se com a figuração homogeneizadora, mobilizando toda a sua atenção para adentrar-se nesse mundo miniatural, despojado dos acidentes e variáveis que geram as descontinuidades do cotidiano. Essa concentração da atenção, essa mobilização das forças espirituais, produz uma elevação do cotidiano. Nesse momento, segundo Lukács, o indivíduo supera a sua singularidade e é posto em contato com o gênero humano.

Tentando estabelecer um diálogo sobre esse ponto em específico, tomamos emprestadas as reflexões de Leandro Konder (2009, p. 155) que estudando o pensamento estético de Lukács em relação à arquitetura, destaca que esta possui dois tipos de reflexo:

Segundo o filósofo húngaro, existem na arquitetura dois tipos de reflexo: num primeiro momento, a construção reflete determinadas necessidades práticas e o construtor se baseia no conhecimento científico, desantropomorfizador, tanto das funções que a construção deve cumprir quanto dos meios materiais e das normas técnicas adequadas ao processo construtivo. Esse primeiro reflexo se apresenta inexoravelmente a todos os grupos humanos, de todos os tempos e de todos os lugares, pois é possível existir uma sociedade sem pintura ou sem tragédia, mas não sem construções.

Konder enfatiza, ainda, que a partir da construção, é possível um segundo reflexo (antropomorfizador) que constitui a expressão sensível, subjetiva presente na característica física da construção, o que exprime “a sensibilidade espacial” da época o que permite comunicar seus traços históricos, sociais e culturais constituídos no seu devir temporal específico. Dessa forma, ressalta o autor que:

Esse segundo reflexo faz da arquitetura, na terminologia lukacsiana, uma arte de mimese duplicada (gedoppelte Mimesis). É ele que permite às obras-primas da arquitetura produzir um efeito catártico que leva o sujeito da vivência espacial a se elevar bruscamente, no plano da sensibilidade, da sua particularidade como indivíduo, à altura de todo um momento da história da humanidade (KONDER, 2009, p. 156).

                Podemos entender que essa elevação possibilita ao indivíduo enriquecer-se e compreender a sua realidade de forma mais profunda, crítica e, consequentemente, enriquecê-la. O homem nesse processo vai além do que está habituado cotidianamente, supera a superfície dos fenômenos. O reflexo artístico está diretamente relacionado a existência concreta dos homens, apontando sempre para o destino da humanidade, pois

La profunda verdad vital del reflexo estético descansa, no en último lugar, en que, aunque siempre apunta al destino de la espécie humana, no separa nunca a ésta de los indivíduos s que la constituyen, no pretende hacer nunca de ella una entidad existente com independencia de los indivíduos mismos. El reflejo estético muestra siempre a la humanidad en la forma de individuos y destinos individuales. Su peculiaridad [...] se expresa, por una parte, en la modo esos individuos poseen su inmediatez sensible, que destaca de la vida cotidiana precisamente por la intensificación de ambos momentos, y, por outra parte, en el modo como está presente en esos indivíduos, aún sin suprimir su inmediatez, la tipicidad de la especie humana de eso se sigue que el reflexo estético no puede ser nunca una simple reprodución de la realidad inmediatamente dada (LUKÁCS, 1966, p. 259-260).

A arte, neste sentido, educa o homem possibilitando-o ir além de seu cotidiano imediato, fragmentado. Ela se separa inicialmente para depois perfazer o caminho de volta. Esse processo de ida e retorno, produz reiteradamente, um enriquecimento subjetivo do indivíduo. A arte se constitui assim, no dizer de Lukács, “como uma autoconsciência da humanidade”.

Configura uma afirmação fundamental na estética de Lukács que o comportamento do homem no cotidiano é o ponto de partida e o ponto de chegada ao mesmo tempo de toda atividade humana. Deste modo, o cotidiano constitui o solo concreto de onde emergem as necessidades da vida social. A ciência e a arte, por exemplo, se originam e se desenvolvem historicamente a partir do solo da cotidianidade.

Nesse sentido, o desenvolvimento da sensibilidade humana subjetiva, ou mais especificamente, os cinco sentidos tem na historicidade do processo objetivo, real de vida a sua riqueza e o seu modo peculiar de desenvolvimento, pois,

Solo por la riqueza objetivamente desplegada de la esencia humana nace la riqueza de la sensibilidad humana  subjetiva, nace un oído musical, un ojo para la hermosura de la forma, en resolusión, nacen sentidos capaces de goces humanos, sentidos que actúan como energias esenciales humanas,  se forman en parte, en parte se producen. Pues no solo cinco sentidos, sino también los sentidos llamados intelectuales, los sentidos prácticos (voluntad, amor, etc.), en una palabra el sentido humano, la humanidad de los sentidos, nace por la existencia de su objeto, por la naturaleza humanizada. La educación de los cinco sentidos es un trabajo de la entera historia universal (LUKÁCS, 1966, p. 238).

    Para Lukács, o desenvolvimento histórico-social dos sentidos humanos representa, significativamente, a essência do ser como resultado de uma processualidade e, por conseguinte, a educação dos cinco sentidos é um trabalho inteiramente determinado pela história universal. Os problemas discutidos pelo filósofo húngaro, no que tange aos aspectos caracterizadores da separação da arte da vida cotidiana, desembocam nas questões relativas à perspectiva teórica de compreensão e apreensão do que realmente existe, a essência da coisa em-si. Debatendo com a perspectiva do idealismo filosófico, que concebe a realidade como sendo um produto do pensamento Lukács busca na compreensão da existência em-si da coisa, e de sua processualidade histórica o fundamento da determinação objetiva das atividades artísticas humanas e, que isso está diretamente relacionado com a evolução do trabalho e da divisão social do trabalho, nas palavras do esteta:

No se trata de un processo rectilíneo; los ejemplos de Marx muestran cómo las relaciones de produción, la división social do trabajo, pueden ser, incluso a niveles superiores, obstáculos opuestos a las correctas relaciones subjetivas con los objetos. La génesis histórica del arte, en sentido productivo y en le de la receptividad artística, tiene que tratarse en le marco de la génesis de los cinco sentidos, que es el marco de la historia universal. El principio estético se presenta así como resultado de la evolución histórico-social de la humanidad (LUKÁCS, 1966, 240).

Como fica evidente pela citação acima, a evolução dos cinco sentidos se deu nos marcos do desenvolvimento histórico-social da humanidade. A capacidade artística do homem se constituiu lentamente ao longo do processo da história, a arte dessa maneira, tem uma gênese e  desenvolvimentos enraizados historicamente. Na esteira dessa formulação, ressalta Lukács:

La lección que nos ofrecen aquellas ideas de Marx rebasa el simple reconecimiento de la historicidad radical del arte, de la receptividad artística, etc. Al elaborar la interación entre los sentidos humanos y sus objetos, Marx no se olvida de llamar la atención sobre el hecho de que los sentidos, cualitativamente distintos, tienen que poseer relaciones (y, por tanto, interaciones) también cualitativamente distintas com el mundo de los objetos (LUKÁCS, 1966, p. 241).

A arte como um processo de objetivação social resulta de uma interação dialética entre subjetividade e objetividade, ou seja, entre o ser e o mundo externo. Embora, teóricos como Fiedler, citado por Lukács na estética, se nege a aceitar essa possibilidade de interação entre mundo exterior e o ser, não obstante, o caráter idealista de suas interpretações, assim, Fiedler “niega el reflejo de la realidad objetiva por nuestros sentidos y nuestros pensamientos...” (LUKÁCS, 1966).

Fiedler parte de uma análise abstrata a e antidialética, negando a possibilidade do reflexo da realidade objetiva pelos nossos pensamentos e sentidos, pois, o que importa não é o mundo externo, mas, a “subjetividad pura”. Lukács contestando Fiedler destaca que:

La concreta polémica de Fiedler se dirige en esse lugar contra la necesaria deficiência de la expresión linguística respecto de lo concreto de los fenômenos. Y aunque em su crítica no carezca de momentos parciales acertados, pasa completamente por alto el proceso de aproximación indefinida a um reflejo cada vez más adecuado de la realidad, proceso que atraviesa el lenguaje com el pensamiento, e ignora así la complicada interación dialética entre el mundo de los objetos y la subjetividad que se esfuerza por captarlo y dominarlo (LUKÁCS, 1966, p. 242).

Podemos depreender do exposto acima, que o filósofo húngaro rebate teoricamente o subjetivismo exacerbado de Fiedler, uma vez que este, afirma que as imagens do mundo produzidas, não são um reflexo na consciência do sujeito da realidade objetiva refletida pelos seus sentidos. Lukács ainda ressalta que essa perspectiva teórica de Fiedler está relacionada diretamente com o paradigma epistemológico de Kant, que preconiza a prioridade gnosiológica de “uma atividad pura del sujeto”. A crítica de Lukács também aponta para a própria negação de Fiedler e sua posição de negação aos princípios da universalidade e da totalidade.

Lukács apreende a realidade da arte a partir dos pressupostos da concepção dialético-materialista, que rompe exatamente com as premissas teóricas metafísicas e a dedução apriorística das expressões artísticas particulares pelo pensamento puro do sujeito. No percurso dessa reflexão, enfatiza o esteta:

La concepción dialéctico-materialista tiene que romper igualmente con ambos extremos metafísicos, tanto con la deducción apriórica de las artes particulares a aprtir de una supuesta fuente originária, de la <<esencia>> del hombre, cuanto con el rígido aislamiento de ellas, para poder entender correctamente el fenômeno real de lo estético en su deveneir y em su esencia. Por eso aunque en el tratamiento filosófico de la génesis de la arte partimos de una multiplicidad de orígenes reales y consideramos que la unidad de lo estético, lo común de esa multiplicidad, es un resultado de la evolución histórico-social (LUKÁCS, 1966, p. 244).

Do que foi discutido até aqui, podemos concluir provisoriamente, que o reflexo estético da realidade objetiva é resultado de uma evolução histórico-social, sendo o objeto fundamental deste reflexo a sociedade e o seu intercâmbio com a natureza. Este reflexo implica, sempre dessa forma, uma generalização que eleva o indivíduo de sua particularidade ao nível da universalidade humano-genérica, pois, o reflexo artístico sinaliza verdadeiramente para a concreta existência humana; uma manifestação autêntica da evolução da humanidade dada a especificidade da processualidade histórico-social das relações no tempo e no espaço.

 Por Antonio Marcondes - GPOSSHE (UECE)

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Referência Bibliográfica

FREDERICO, Celso. Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica. Natal: Editora da UFRN, 2005.

KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

LUKÁCS, Georg. Estética I: la peculiaridad de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. Barcelona-México, D. F.: Ediciones Grijalbo, 1966.