segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A face capitalista da fome: 65 milhões de brasileiros com alimentação insuficiente

outubro 19, 2020

 


Na quinta-feira (15/10), no ciclo de conferências virtuais “Reflexões sobre o Brasil em Tempos de Pandemia”, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, José Graziano da Silva, agrônomo, professor e ex-presidente da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) da Organização das Nações Unidas (ONU), afirmou : “As projeções mostram que devemos estar em um número hoje, em 2020, no começo da pandemia, com 15 milhões de pessoas passando fome e 30% da população brasileira não comendo o suficiente, o que levaria a um número assustador de 65 milhões de pessoas”[1].

Essa tragédia não é só brasileira. Segundo dados do relatório “State of Food Security and Nutrition – SOFI” (O estado da segurança alimentar e nutrição no mundo 2020)[2], “Considerando o total de afetados por níveis moderados ou graves de insegurança alimentar, cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo não tiveram acesso regular a alimentos seguros, nutritivos e suficientes em 2019”.  Ainda acrescenta: “Prevê-se que o COVID-19 piorará as perspectivas gerais para a segurança alimentar e nutricional. Bolsões de insegurança alimentar podem aparecer em países e grupos populacionais que não foram tradicionalmente afetados. Uma avaliação preliminar sugere que a pandemia pode adicionar entre 83 a 132 milhões de pessoas ao número total de desnutridos no mundo em 2020, dependendo do cenário de crescimento econômico (perdas que variam de 4,9 a 10 pontos percentuais no crescimento do PIB global)”.

Os dados foram levantados em 2019, ou seja, a tendência é que o quadro atual seja pior do que o esperado. O capitalismo agrava exponencialmente o problema da fome.

É sabido que a fome é uma chaga que acompanha a história humana.  Antes da sociedade moderna a fome explodia na crises pré-capitalistas, que resultavam da destruição dos produtores diretos ou dos meios de produção, ocasionada por desastres naturais ou por catástrofes sociais. A consequência imediata dessas crises era uma carência generalizada dos bens necessários à vida social, isto é, uma crise de subprodução de valores de uso que gerava, entre outras mazelas, a fome.

Já no capitalismo a destruição material dos elementos de produção são consequência da crise. Há ampliação do desemprego, da miséria e da fome porque há crise. A fome se instala nos lares porque a crise estala, uma crise de superprodução de valores de troca. Explica-se tal crise, dentre outras coisas, pela insuficiência da capacidade de pagamento do comprador. Uma abundância relativa de mercadorias não encontra seu equivalente no mercado, não pode realizar seu valor de troca, o que resulta invendável e arrastando seus proprietários à ruína. Noutras palavras, no capitalismo, passa-se fome em meio a abundância de alimentos. De fato, há comida para todos, porém os mais pobres não têm capacidade monetária para comprá-la, gerando insegurança alimentar, má nutrição, desnutrição, subnutrição e fome[3].

Muitas vezes, de acordo com Caparrós (2016), o termo técnico “segurança alimentar”, mascara a realidade concreta de cerca de 2 bilhões de seres humanos, que, às vezes, comem o suficiente, mas nunca têm certeza se vão conseguir comer – e, às vezes, não conseguem. Para eles, comer ou não comer é um vaivém: basta que haja uma mudança ínfima em suas condições de vida, a perda de um trabalho, um conflito, uma eventualidade climática, para que uma pessoa – ou milhões de pessoas – fique sem saber se vai conseguir se alimentar no dia seguinte.

No Brasil, país com raízes no escravismo colonial, no latifúndio e numa posição subordinada na divisão internacional do trabalho, a insegurança alimentar é estrutural. O que se agrava na atual crise econômica, acrescida pela pandemia do Covid-19 e sob o governo de extrema direita de Bolsonaro. Se, ainda somarmos, por exemplo, a desigualdade social crescente, a concentração absurda de riqueza, o volume de alimentos exportados, o desperdício e a política de destruição da agricultura familiar, veremos que uma economia de mercado centrado no lucro e não na vida humana possui, objetivamente na atualidade, uma orientação genocida.

Diante disso, a reversão de tal quadro e a busca de políticas públicas compensatórias devem estar subordinadas a uma estratégia socialista de tomada do poder político pelas massas trabalhadoras da cidade e do campo. A história demonstra que a expropriação da burguesia, a economia planejada e o controle do comércio exterior, com todas as contradições de regimes burocráticos, trouxeram soluções efetivas para a superação de problemas em torno de moradia, alimentação, saúde e educação para as grandes maiorias.

Frederico Costa - IMO/GPOSSHE/UECE

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Referências

CAPARRÓS, Martín. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.



[3] Insegurança alimentar, situação de quem não tem garantia de acesso a quantidades suficientes de comida saudável e nutritiva para seu desenvolvimento normal, causada pela inexistência de comida à disposição, falta de poder aquisitivo para a compra de alimentos ou uso inadequado da comida em casa, podendo ser crônica, temporária ou transitória; má nutrição, condição fisiológica anormal, causada por consumo inadequado de nutrientes (inclui desnutrição); desnutrição, condição de absorção deficiente de nutrientes causada por repetidas doenças infecciosas; subnutrição, estado de incapacidade em obter comida suficiente para atingir os níveis mínimos de energia necessários para uma vida saudável e ativa; fome, termo sinônimo de subnutrição crônica, ou seja, quando o estado de subnutrição dura por mais de um ano (fonte: https://mpabrasil.org.br/noticias/mundo-produz-comida-suficiente-mas-fome-ainda-e-uma-realidade/, consultado em 17/10/2020).

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Os subterrâneos das eleições estadunidenses: democracia fake e imperialismo

outubro 15, 2020

 


Os Estados Unidos (EUA) têm um projeto para si e para o mundo sintetizado na expressão full spectrum dominance (dominação de espectro total), cujo objetivo é estabelecer, manter e expandir a hegemonia e os lucros das corporações estadunidenses, sob a falsa ideologia de defesa de valores universais e democráticos. Essa perspectiva ora é coordenada por governos republicanos, ora por governos democratas. A depender do contexto nacional e internacional, está sempre condicionado pela luta de classes, o que faz com que a orientação imperial dos EUA sofra momentos de cooperação, acomodação, tensão, subversão, confrontos e conflitos armados com outros países. Em última instância, isso explica as posturas agressivas do imperialismo estadunidense ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, à Síria, à Venezuela, à Cuba, à Coreia do Norte, à Bielorrússia, à Rússia e à China.

O importante a ser destacado é que, apesar do contexto e das contradições, a perspectiva das frações da classe dominante estadunidense é manter e aprofundar sua dominação interna e externa sobre trabalhadores, povos e nações, como uma “delegação divina”.

Por isso, o que está em jogo na atual disputa eleitoral entre a direita (Joe Biden, democrata) e a extrema direita (Donald Trump, republicano) é qual a melhor forma de manter os objetivos estratégicos do imperialismo estadunidense: 1) manter sua hegemonia militar em todas as regiões do mundo por meio da presença de forças militares (terrestres, aéreas e navais) capazes de inibir a emergência de Estados rivais com capacidade militar de dissuasão dos EUA de utilizarem o uso de força, o que inclui a tentativa constante de desarmar Estados periféricos; 2) conservar sua hegemonia sobre os sistemas de comunicação e de informação, controlando a elaboração e a difusão de conteúdo pelos meios de comunicação como agências de notícias, cinema, rádio, televisão e internet que formam posturas subjetivas dos setores dominantes e das massas de distintos Estados e formações sociais; 3) consolidar sua hegemonia nos organismos econômicos internacionais, como a Organização Mundial de Comércio-OMC e o Fundo Monetário Internacional-FMI, que elaboram normas internacionais reguladoras das relações entre Estados e as impõem por meio de programas para enfrentar dificuldades de balanço de pagamentos  e de financiamento de investimentos; 4) expandir seu controle sobre recursos naturais no territórios de outros países e de suas vias de acesso, o que é essencial para a economia estadunidense e suas mega empresas multinacionais, assim como de outras potências imperialistas; 5) preservar sua hegemonia política através do controle, tanto quanto possível, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, único organismo internacional que autoriza a aplicação de sanções e o uso da força militar contra qualquer Estado, menos contra os membros permanentes, com o apoio incondicional da França e da Inglaterra, reservando-se o direito de agir unilateralmente quando o interesse do imperialismo estadunidense assim o exigir; 6) continuar na vanguarda do desenvolvimento científico-tecnológico em termos de aplicações civis e militares, condição para seu domínio em outras áreas; 7) deixar abertos os mercados de todos os países para seus capitais e para seus bens e serviços.

Essa é a moldura da fake democracia da terra do Tio Sam, ou seja, as eleições atuais não ocorrem num vácuo, mas num cenário local e global de profunda crise econômica agravada pela pandemia do coronavírus. O acirramento da disputa entre as frações dominantes nos EUA abre uma brecha para a intervenção das classes subalternas estadunidenses e para a ascensão das lutas anti-imperialistas.

Frederico Costa - GPOSSHE/IMO/UECE

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Para mais informações sobre o imperialismo, ouça este podcast da Rádio Gposshe:


terça-feira, 13 de outubro de 2020

As eleições estadunidenses são democráticas?

outubro 13, 2020

Em 4 de novembro, ocorrerão eleições presidenciais nos Estados Unidos da América (EUA), o país imperialista mais poderoso do mundo. Os EUA vendem-se ideologicamente como os guardiões da liberdade e democracia no mundo. Mas será que, realmente, os EUA sustentam-se num regime político que expressa os interesses da maioria da população?

Nas eleições de 2000, num contexto de crise, o republicano George W. Bush, após uma polêmica apuração na Flórida, foi eleito presidente com 50.456.987 votos populares e 271 votos dos delegados dos estados, enquanto o democrata Al Gore ganhou, no voto popular, 51.003.926 votos, mas só obteve 266 votos no Colégio Eleitoral[1]. Com isso, o caráter não democrático das eleições estadunidenses veio à tona. 

Tal distorção ocorreu novamente, em 2016, na eleição do republicano, Donald Trump, em que milhares de pessoas foram às ruas questionar o resultado das urnas. Trump conquistou 62.979.636 votos populares e 306 votos dos delegados dos estados, suficientes para ser eleito presidente. Porém, a democrata Hillary Clinton obteve 65.844.610 votos populares, mas apenas 232 votos no Colégio Eleitoral[2].

Isso não foi uma novidade. Já ocorrera antes.

Em 1824, o candidato John Quincy Adams conquistou 113.122 votos populares, enquanto seu adversário, Andrew Jackson, ganhou, no voto popular, 151.271. Como ambos não alcançaram o mínimo de votos no Colégio Eleitoral, a decisão de quem ocuparia a presidência foi tomada pela Câmara dos Representantes que elegeu Quincy Adams como presidente[3].  Mais de cinquenta anos depois, em 1876, o candidato republicano, Rutherford B. Hayes, que teve 4.036.298 votos populares, obteve 185 votos dos delegados de um total de 369 votos no Colégio Eleitoral. Seu adversário, o democrata Samuel J. Tilden venceu no voto popular com 4.300.590 votos, mas só alcançou 184 votos no Colégio Eleitoral[4].  Nas eleições de 1888, o candidato republicano, Benjamin Harrison, conquistou 5.439.853 votos populares e 233 votos dos delegados, elegendo-se presidente. Seu concorrente, o democrata Grover Cleveland, ganhou no voto popular com 5.540.309 votos, mas só obteve 168 votos no Colégio Eleitoral[5].

Depois dos exemplos acima, vimos que no complexo sistema eleitoral do imperialismo americano, é possível ser eleito presidente sem ter a maioria dos votos populares, o que viola o princípio democrático formal de uma pessoa, um voto. Por quê?

Nos EUA, o presidente e o vice-presidente não são escolhidos diretamente pelos cidadãos aptos a votar. Os eleitores escolhem os delegados de um Colégio Eleitoral, que é composto atualmente por 538 provenientes de todos os 50 estados, incluindo a capital Washington D.C. Cada estado tem um mínimo 3 delegados, como é o caso de Delaware, 853 mil habitantes. Já a Califórnia, estado mais populoso do país com 36 milhões de habitantes, possui 55 votos; enquanto Nova York, com 19 milhões de habitantes, tem 31 votos. Então, os eleitores de cada estado elegem os delegados que votarão para a presidência dos EUA. Vence a eleição quem obtiver, pelo menos, 270 votos, isto é, metade mais um do Colégio Eleitoral. No caso improvável de que nenhum dos candidatos obtenha 270 votos no Colégio Eleitoral, o encarregado de decidir o vencedor é a Câmara de Representantes que deve escolher o novo presidente a partir dos três candidatos com mais apoio. Da mesma forma, o Senado, por sua vez, deve realizar um processo similar para eleger um vice-presidente entre os dois candidatos mais votados. Como vimos, isso ocorreu em 1824.

Bem, depois que os cidadãos votarem no seu candidato presidencial em 4 de novembro deste ano, os votos serão contabilizados em nível estadual. Em 48 estados e em Washington DC vigora o sistema de "o vencedor leva tudo", isto é, o candidato que obtiver a maioria dos votos populares em um estado fica com todos os delegados atribuídos a esse território. A exceção são os estados de Maine e Nebraska, onde os votos são divididos. No estado do Maine, por exemplo, duas das cadeiras no colégio eleitoral vão para o vencedor no Estado, e as outras duas vão para o vencedor em cada um dos distritos do Estado.

De acordo com a Constituição dos Estados Unidos, os delegados não são obrigados a votar de acordo com a vontade dos cidadãos. Embora, em alguns Estados, sejam livres para apoiar o candidato que quiserem, enquanto noutros são obrigados a votar no candidato que prometeram apoiar.

Assim, o voto nominal tem peso relativo, de acordo com cada estado, ocorrendo distorções que acabam privilegiando um pouco regiões mais rurais, e estados
menos populosos são sobrerepresentados. Tal sistema eleitoral tem seus fundamentos na Constituição de 1787. As classes dominantes, ou seja, as elites rurais, escravistas e conservadoras temiam o voto popular por sua possibilidade de confrontar-se com a ordem expressando os interesses da maioria.

O sistema eleitoral estadunidense constituiu-se como a forma política para o escravismo, o racismo, o expansionismo agressivo e, por fim, o imperialismo mais poderoso na atualidade. Com a crise capitalista atual e o acirramento da luta de classes, aumenta suas contradições como estrutura de dominação. A última palavra será dada pelos trabalhadores e trabalhadoras mobilizados.

Frederico Costa - UECE/IMO/GPOSSHE

Photo by annie bolin on Unsplash



[4] https://www.presidency.ucsb.edu/statistics/elections/1876, consulta em 12/10/2020.