quinta-feira, 21 de maio de 2020

O papel do nazifascismo na história I

maio 21, 2020


Muito se tem discutido sobre as origens, consequências e aspectos fenomenológicos do fascismo. Intento, neste texto, abordar o tema com outra perspectiva que, no momento, apenas suponho estar além da multiplicidade de abordagens investigativas já realizadas. Nesse sentido, procuro demonstrar que essa forma de governo foi engendrada como um protótipo de dominação de classe que, universalizada pela eventual vitória na Segunda Grande Guerra, poderia permitir a salvaguarda do capitalismo com a eliminação progressiva da massa humana excedente ao processo produtivo, um efetivo domínio sobre a classe trabalhadora e o rigoroso controle de natalidade que impediria a expansão da miséria e o melhoramento racial da espécie humana.


1 O fascismo

Na Itália, após a Primeira Guerra, o colapso econômico depauperou substancialmente a classe média, que não tinha ainda expressão política importante até então na história italiana. O desemprego e os baixos salários ampliavam o sofrimento dos trabalhadores, cujas organizações eram disputadas pelos partidos social-democrata e comunista, que promoviam agitações frequentes. Paralelo a eles, o partido fascista surge como uma alternativa de poder, que condenava a dispersão das organizações políticas e a fraqueza e equívocos de seus dirigentes, na condução do país.

     A composição social do movimento fascista era majoritariamente a pequena-burguesia, ex-combatentes, camponeses e membros da classe média. Sua ideologia era o antiliberalismo e o anticomunismo, aos quais seus ideólogos atribuíam a crise social e moral que se abatiam sobre o país. Defendiam a união da nação e princípios socialistas (pleno emprego, salários justos e proteção ao trabalho), advogando também uma política econômica que rompesse o liberalismo e conduzisse o país à prosperidade. Mas era intransigente com relação a manutenção da sociedade do capital, dado que aspiravam à sua ascensão social. O radicalismo pequeno-burguês atraiu a burguesia industrial e financeira, posto que viam naquele partido a possibilidade de domesticação dos trabalhadores e de maximização de seus lucros. A burguesia agrária do sul do país também aderiu ao partido, pois aspirava à eliminação dos conflitos agrários que ameaçavam suas propriedades.

A vitória dos bolcheviques na Rússia pairava como uma sombra ameaçadora às burguesias europeias, em função da crise econômica que assolou o continente após a guerra. Por isso, mesmo que, em princípio, a proposta dos fascistas pudesse causar alguma suspeita à burguesia liberal, pela aparente proximidade conceitual do projeto do partido com algumas ideias socialistas, o setor mis reacionário da classe burguesa percebeu a real essência daquele, e passou a financiá-lo e defendê-lo.

Em 1920 ocorre o ápice do movimento operário na Itália, com a ocupação de várias fábricas e manifestações nas ruas dos centros industriais do país. No sul da país, várias propriedades rurais foram ocupadas por camponeses insurretos. Mas faltava uma direção política às manifestações, que conduzisse o movimento à tomada do poder de Estado. O partido social-democrata italiano, que estava à frente do movimento, negava-se a propor as diretrizes políticas que eram exigidas pelo movimento das massas trabalhadoras, e recuou, ante a disposição dos trabalhadores. E o partido comunista italiano não tinha a influência social que lhe permitisse dirigir o movimento da classe trabalhadora. Este vácuo político permitiu a ascensão do fascismo.

Os fascistas criaram o movimento Fasci di Combatimientto (os “camisas-negras”), que começou a atacar as manifestações públicas e os órgãos dos partidos de esquerda. Os enfrentamentos ocorreram com a conivência do Estado. À tática do ataque direto aos partidos de esquerda somou-se o da exaltação do mito fascista, (no caso italiano, o do “Duce” Mussolini), como instrumento de educação das massas que eram seduzidas pelo ideário fascista. O grande líder haveria de impor as ideias propagadas pelo partido ao conjunto da sociedade italiana, superando as diferenças de classe e promovendo o desenvolvimento nacional, o que traria a grandeza da pátria italiana.

Ao ataque sistemático aos partidos de esquerda e aos movimentos dos trabalhadores seguiram-se os ataques ideológicos, através da imprensa e de panfletos, até o assassinato de lideranças trabalhadoras vinculadas ao movimento operário e camponês e aos partidos de esquerda. Esses ataques iniciaram em Bolonha, no dia 21 de novembro de 1920, quando, em um comício da social-democracia, um grupo armado disparou contra vereadores e o prefeito recém-eleitos, matando dez pessoas e ferindo mais de cem. Logo depois, atacaram as redondezas de Bolonha, agredindo camponeses partidários da esquerda, com o apoio da burguesia latifundiária. E, fortalecidos pelo sucesso dessas empreitadas, começaram a agir nos centros industriais do país.  Surge o partido fascista.

Sobre os equívocos da social-democracia italiana naquele período, Leon Trotsky afirmava,

“[...] É verdade que o proletariado, mesmo após a catástrofe de setembro, foi capaz de travar lutas defensivas. Mas a social-democracia objetivava apenas uma coisa: retirar os trabalhadores do combate às custas de uma concessão atrás de outra. A social-democracia esperava que a conduta dócil dos trabalhadores pudesse restaurar a opinião pública da burguesia contra os fascistas. Além disso, os reformistas até apostaram fortemente na ajuda do rei Victor Emmanuel. Até a última hora, eles contiveram os trabalhadores de todas as formas de travarem o combate com os bandos de Mussolini. Isso de nada lhes valeu. A coroa, junto com a elite burguesa, pendeu para o lado do fascismo [...]” (Trotsky, 1932) – Tradução livre. *

 

Para atrair os trabalhadores, o novo partido fascista propunha a centralização e controle rígidos da economia e a superação da luta de classes, com a construção da unidade nacional pelo progresso e pela grandeza da nação, para os quais as concessões e a adesão incondicional de todas as classes eram exigências irrenunciáveis.

Os discursos belicosos, que propunham a inserção da Itália no rol das grandes nações do planeta já antecipavam o desfecho da ascensão daqueles princípios, no final da década seguinte. Esse arroubo de nacionalismo imperialista pode-se mensurar no discurso do deputado fascista Baldo, transcrito no jornal Corriere della Sera, de 12/5/1932,

 “[...]As criações originais da história e da civilização italiana, desde o dia em que ressurgiu da letargia secular até hoje, se deveram ao voluntariado da juventude. O bando sagrado de Garibaldi, o heroico intervencionismo de 1915, os camisas-negras da Revolução Fascista deram unidade e poder à Itália, fizeram de um povo disperso uma nação. Às gerações que hoje se apresentam à vida sob o signo do Litório cabe a tarefa de dar ao século novo o nome de Roma[...]” (Gramsci, 2002, p. 51)

 

A burguesia sabia, pois, da pretensão de conquista militar de novos mercados, postulada pelo fascismo. A ocupação da Etiópia pelo exército fascista recebeu o apoio incondicional de empresas monopólicas italianas, interessadas em novos mercados consumidores.

Nos primeiros anos de governo, o governo fascista adota uma política econômica de privatização e de controle político da atuação das empresas privadas, subsidiadas por ele. Congelou os salários e destruiu os sindicatos, substituídos por corporações, cujos líderes eram indicados pelo governo, por sugestão dos grandes industriais. As greves foram criminalizadas e os partidos políticos foram banidos, com exceção do partido fascista.  A livre iniciativa era apoiada financeiramente, mas tinha que se ajustar à política de desenvolvimento nacional proposta pelo governo. Depois da grande depressão, já nos anos 30, o governo fascista adota uma política de mercado interno, em substituição às importações. Isso alavanca a economia, e o governo cria indústrias estatais ligadas à guerra, para facilitar o poderio bélico do país. Algumas empresas privadas se somam à produção bélica, aumentando seus lucros com os investimentos estatais.

Essa política de privatização, no início do governo fascista, tinha a intenção de assegurar o apoio do grande empresariado italiano, como o demonstra no Abstract de seu artigo o economista Germà Bel:

“[...]O primeiro governo fascista da Itália aplicou uma política de privatização em larga escala entre os anos de 1922 e 1925. O governo privatizou o monopólio de vendas de jogos, eliminou o monopólio estatal de seguros de vida, vendeu a rede estatal de telefonia e serviços para empresas privadas, reprivatizou a maior indústria de máquinas de metal e autorizou concessões para empresas privadas construírem e administrarem estradas. Essas intervenções representam um dos primeiros e mais decisivos episódios de privatização no mundo ocidental. Apesar de que considerações ideológicas possam ter tido alguma influência, as privatizações foram usadas principalmente como instrumentos políticos para gerar confiança entre os industriais e ampliar o apoio ao governo e ao partido nacional fascista. As privatizações também contribuíram para equilibrar o  orçamento, que era o objetivo central da política econômica fascista em sua primeira fase[...]” (Bel, Germà, THE FIRST PRIVATIZATION: SELLING SOEs AND PRIVATIZING PUBLIC MONOPOLIES IN FASCIST ITALY (1922-1925), (disponível em http://www.ub.edu/graap/bel_Italy_fascist.pdf) – Tradução livre*

 

 A política econômica de governo centrou no apoio aos grandes grupos econômicos em atuação no país, consoante com a concepção de darwinismo social, comum à época e adotada também por aquele como política social: os mais fortes sobrevivem; os mais fracos devem perecer. Essa ideologia foi a justificativa para a pilhagem sobre os judeus, que, segundo uma pesquisa da professora Ilaria Pavan, da Scuola Normale Superiore de Pisa, na Itália:

“[...] entre 1943 e 1945, quando o governo italiano estava sob supervisão direta da Alemanha, o roubo de propriedades de cidadãos italianos judeus e refugiados que tinham chegado à Itália na esperança de obter proteção totalizou quase US$ 1 bilhão de dólares, em valores atuais[...]”  (disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/11/estudiosos-revelam-outra-faceta-da-italia-com-judeus-na-primeira-guerra.html)

 

Portanto, os grandes industriais italianos já conheciam as propostas de governo fascista em sua amplitude e a elas não só aderiram, como foram recompensados por seu apoio. E não apenas sabiam do interesse de conquista militares daquele governo, como esperavam tirar proveito das ações bélicas por ele implementadas.

 Maurício Oliveira

Professor da Secretaria de Educação do Ceará e do Município de Fortaleza

 

BEL, Germà,  THE FIRST PRIVATIZATION: SELLING SOEs AND PRIVATIZING PUBLIC MONOPOLIES IN FASCIST ITALY (1922-1925) Universitat de Barcelona (GiM-IREA) & Barcelona Graduate School of Economics,  disponível em  http://www.ub.edu/graap/bel_Italy_fascist.pdf

GRAMSCI, Antonio, Cadernos do cárcere v.5, Rio de Janeiro, civilização Brasileira, 2002.

TROTSKY, Leon, Selected Writing:  How Mussolini Triumphed, 1932, disponível  em: https://www.marxists.org/archive/trotsky/works/1944/1944-fas.htm

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Polícia Federal: memórias pouco sentimentais de uma instituição de Estado

maio 18, 2020


Neste artigo, partindo de conexões entre a história em seu sentido de uma onda mais longa e a história imediata, examino a ideia da polícia federal como uma instituição de Estado, judiciária e administrativa, pondo sob um crivo crítico o ponto de vista de analistas burgueses, que, em geral, manejam essa ideia quase à título de um bezerro sagrado.

 

A PF, o Estado e o governo

 

Quando Marx e Engels escreveram que o governo moderno é uma instituição para gerir os negócios da burguesia, muitos liberais torceram o nariz. Passados mais de 170 anos, os apóstolos da neutralidade do Estado moderno seguem reafirmando a sua tese capital e a máquina do Estado aparece, nessa óptica, como um conjunto de instituições isento e equânime.

Quando essa discussão se estende à polícia federal, os comentaristas liberais reforçam e refinam, ainda mais, os seus argumentos de suposta neutralidade, e esse órgão do aparelho estatal aparece em sua pureza mais absoluta. A conclusão lapidar é: a polícia federal é uma instituição de Estado e o debate finda aos pés dessa síntese republicana.

Até que ponto se deve aceitar a ideia - à primeira vista, irrestrita e irrefutável - de uma polícia judiciária, administrativa e republicana? Até que ponto a imagem de uma polícia que age com isenção e desembaraço, doa a quem doer, deve receber o aval que se atribui a uma posição inatacável?

Seguramente, não há dúvida de que as disputas no interior do governo, envolvendo o então ministro Sérgio Moro e o presidente Jair Bolsonaro, giraram em torno do controle da polícia federal. Não há dúvida, também, que na célebre reunião ministerial de 22 de abril, o que estava em questão era o comando da instituição. Do mesmo modo, não há por que duvidar que o presidente buscava proteger a si, aos parentes e aos amigos. Por fim, não há qualquer dificuldade em reconhecer de que ambos, Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro, representam variantes autoritárias de poder, e por isso o domínio de uma instituição investigativa e de repressão, como a PF, é um problema-chave.

Ao longo de 1 ano e 4 meses, praticamente, Moro protegeu o presidente e o seu entorno familiar, conforme se pode observar no episódio das fakes news, no qual não só o ministro da justiça socorreu o seu chefe imediato, mas, igualmente, contou com o beneplácito da ex-procuradora da república Raquel Dodge e do ministro Lewandowski. Acontece que os inumeráveis embustes contornando o clã, em larga escala, dificultava o trabalho do ex-chefe da lava-jato. Doutro lado, não pareceu prudente ao chefe do executivo ter o seu futuro nas mãos de um aliado com pretensões políticas, inclusive quanto ao posto presidencial.

E qual o papel da PF em todo esse processo? Por que o silêncio sepulcral de quase ano e meio? Será que a reconstrução e análise concreta dos fatos não evidenciam que a abstração de uma polícia quimicamente neutra se perde diante das exigências da luta política? Não é exatamente a luta política, expressão matizada da luta de classes, o que determina a autonomia e os limites da ação da polícia federal?

 

O que é a PF: um pouco de história

 

Na sua estratégia, a PF é um órgão que se estende além dos
botões de camisa inteligentes, dos sensores de GPS e das microcâmeras. Modernamente, a sua história começa em 1944, na agonia do Estado Novo, e sua feição atual é antecedida do papel que desempenhou ao longo de 21 anos de ditadura bonapartista (1964-1985), quando, sob o comando do exército, atuou na repressão aos movimentos de resistência política à autocracia militar, e desenvolveu atividades na esfera da Divisão de Censura de Diversões Públicas.

Com a Constituição de 1988, os encargos correntes da Polícia Federal são mais satisfatoriamente definidos, embora a instituição, nos anos posteriores, seguisse como um apêndice da Central de Inteligência Americana (CIA), inclusive dependente dos EUA no terreno financeiro. No Governo FHC, ela se mostrou palco de intensas disputas, internas e externas, o que ensejou a nomeação de 5 diretores gerais ao longo de oito anos de gestão tucana, um deles, o delegado apontado como especialista em pau de arara, à época da ditadura, João Batista Campelo. No exame desse período, ficaram sem respostas, por parte dos federais, imputações de compra da reeleição pelo governo de FHC e privatizações cavernosas de empresas estatais.

De certo modo, é nos governos petistas que a aura da PF como órgão moderno, republicano e de Estado (não de governo) se afirma e se consolida, até mesmo financeiramente. Mas, de maneira paradoxal, é nesse exato momento que a instituição se transforma em um espaço notável de exacerbação da luta política, e à medida em que o condomínio petista parecia, eleitoralmente, irremovível, a oposição burguesa se apoia nas operações da lendária polícia do Estado para travar um combate sem quartel, até pelo menos a derrocada final da frente popular, em 2016, ou, para ser preciso, até a eleição de 2018

Curiosamente, o PT se retirou do palácio do planalto tecendo loas à polícia federal como instituição do Estado. A questão é: até que ponto se deveria asseverar que a sua ação cotidiana estaria em inteira concordância com uma política de Estado?

 

Lava-jato, polícia federal e golpe parlamentar

 

A lava-jato usou e abusou de lances pirotécnicos, com o apoio da PF e da mídia. A tática era simples: a polícia federal investigava, Moro conduzia e os resultados das devassas, em geral, eivados de ilegalidade, eram divulgados nos jornais (Folha, Estadão, Globo etc.), revistas (Veja, Época, Isto É e outras) e ganhavam amplo alcance por meio do jornal nacional (Globo). Nesse processo, integrantes da PF – Márcio Adriano Anselmo, Érica Marena, Maurício Valeixo, só para citar alguns – se tornaram “heróis” da mídia empresarial.

Os vazamentos seletivos se converteram, então, em mecanismos de desqualificação dos adversários políticos da direita que, com a derrubada de Dilma Rousseff, se organizou com o firme propósito de voltar ao palácio da alvorada. O que não estava previsto no script da velha oposição burguesa era que o capitão Bolsonaro assumisse a ponta da disputa eleitoral. Consolidada essa tendência, os empresários, a operação lava-jato e a mídia comercial aderiram, de mala e cuia, ao candidato das fake news. Os candidatos da oposição burguesa – com Dória à frente – foram juntos. Ciro Gomes viajou para a Europa. Assim se decidiu o segundo turno da eleição.

Para que o escrutínio pudesse ter o resultado pretendido, Sérgio Moro não se acanhou de “dar uma mãozinha”, lançando ao mundo, mediante o eco da mídia, a delação sem provas de Palocci, resultado do “criterioso” trabalho da polícia federal (aliás, a delação premiada do ex-ministro petista Antônio Palocci, para parecer conscienciosa, abarcava 86 páginas e 39 anexos). Na ocasião, a impagável Cristiane Lobo, comentarista da Globo News, declarou, sem corar: “a delação premiada de Palocci é um tiro de canhão na estrutura do PT”. Com efeito, era um tiro de canhão, mas na instável e frágil democracia eleitoral brasileira.

Não por acaso, a respeito do conluio lavajatista - Moro-procuradores-PF - nas eleições de 2018, o insuspeito ministro do STF, Gilmar Mendes, confessou em entrevista que “se discute a correição ética desse gesto”. O que mais se poderia acrescentar? No máximo, cabem duas indagações: os vazamentos da PF-Operação Lava-Jato é parte da natureza de uma polícia judiciária e administrativa? A atuação da PF não se deu sob a forma de uma órgão fanático a serviço da restauração burguesa à moda antiga?

A eleição do capitão Jair Bolsonaro, certamente, não era a finalidade preliminar de muitos de seus adeptos tardios. Ao fim e ao cabo, se sentiram constrangidos a apoiá-lo, embora, em espírito e consciência, de fato, desejassem o domínio burguês clássico (estilo PSDB-DEM). Mas enquanto vagueava para longe o espectro da velha alternativa, todos se agarraram à carne de atleta do capitão sangrado e vingado. Essa firme decisão de ontem ressurge, a cada dia, das reminiscências daqueles que a viveram.

 

O que os novos fatos querem nos dizer sobre a polícia do Estado?

 

Manifestamente, se o ponto de partida é a Constituição de 1988, Jair Bolsonaro deve ser afastado de maneira imediata do governo. Não só ele, mas o seu vice. Esse governo precisa ser deposto sem mais demora. Com efeito, não deveria sequer ter existido.

Quando vieram as revelações da vaza-jato, se o parlamento, a procuradora geral e o supremo decidissem cumprir minimamente as suas funções constitucionais, a sério, era para terem adotado posições e medidas que culminassem na deposição do governo neofascista.

Na vaza-jato ficou nítido o papel pouco republicano da polícia federal. Como não recordar o ativismo judicial da lava-jato e da PF no contexto do pleito que trouxe Jair Bolsonaro ao lugar que hoje ele ocupa? Teríamos essa atual configuração no parlamento e nos governos estaduais à margem desse ativismo judicial-policial? Como não recordar, também, do patusco delegado Luciano Flores rindo do fato de Moro deferir uma busca que não foi pedida por ninguém, mas que ele, mesmo assim, iria ajeitar? O delegado Flores “ajeitou” tanto que, ainda hoje, os Bolsonaros deveriam agradecê-lo.

Pior: quando vieram as revelações do intercept, o que fez a PF, a não ser abrir quatro inquéritos com o fito de inibir as denúncias que enchiam de vergonha os que apoiaram a lava-jato e ainda traziam na pele e na alma o mínimo de pudor? Sérgio Moro proclamou que tudo não passava de um "monte de bobajarada". E aí é preciso perguntar de novo: o que fez a polícia federal além dos quatro inquéritos que, manifestamente, visavam afrontar os denunciantes? Mais do que isso: o que fez o trio Moro-ministério da justiça-PF com as revelações do laranjal do PFS e do bolsonarismo? O presidente recebeu ou não informações sobre o inquérito, que tramitava sob segredo?  São muitas as perguntas.

Como se isso não bastasse, Paulo Marinho, suplente do senador Flávio Bolsonaro, relatou que o filho do presidente recebeu informação privilegiada de um delegado da polícia, dando conta de investigação contra Fabrício Queiroz, no interregno entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018. Nessa ordem, a Operação “Furna da Onça” era momentaneamente imobilizada (sendo deflagada menos de duas semanas depois do segundo turno) para não prejudicar a eleição do pai de Flávio à presidência. Alguém pode imaginar algo mais republicano e de Estado? O fato é que a repressão ao desvio de recursos públicos e a prática de corrupção entrou em stand-by até que o candidato neofascista se elegesse, em segundo turno, presidente da república.

As analisar, ainda que de modo rápido toda essa história que, em última hipótese, repousa na ideia de uma polícia judiciária e administrativa autônoma, não há como não evocar uma conversa na qual uma pessoa tentava persuadir a uma outra de que era politicamente independente, a que a segunda indagou: independente de quem? Partindo desse episódio, o resumo da ópera cabe em uma frase interrogativa: para quem vale a independência dessa polícia de Estado?


Fábio José de Queiroz

Photo by Jacob Morch on Unsplash


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Estratégia e tática na linguagem marxista

maio 15, 2020

Estratégias e táticas são expressões que se consolidaram no vocabulário militar. Se considerarmos as analogias históricas entre o mundo da guerra e o mundo da política, é compreensível o uso de elementos desse vocabulário na análise das classes sociais e de suas lutas.

Posto isso, a exposição que irei desenvolver analisa as determinações gerais em que se inscrevem as noções de estratégias e táticas na linguagem marxista.


Marx: a massa popular dominada e a estratégia das revoluções de maioria

Marx escreveu em As lutas de classe na França que todas as revoluções até hoje (refere-se ao século XIX) resultaram no desalojamento de uma determinada classe por outra: todavia, todas as classes que até agora dominaram eram pequenas minorias em face à massa popular dominada. (2008, p.43). Desse ponto de vista, qualquer discussão estratégica, no âmbito marxista, deve partir dessa tese fundamental do arsenal marxiano. Levada a estes termos, uma compreensão digna de ser reputada como marxista parte do princípio oposto das velhas revoluções, i.e., de que a necessária transformação social decorre do desalojamento de pequenas minorias em face à massa popular dominada. Devido a essa estratégia, todo o demais é absolutamente tático.

Todas as revoluções vitoriosas do passado, que precedem à indústria burguesa e ao proletariado, são revoluções que subtraem o poder do jugo de uma minoria social determinada e o entregam ao domínio de uma nova minoria dirigente. As insurreições escravas e de servos, em geral, acabaram em banhos de sangue que nutriram o poderio de uma minoria e sufocaram as maiorias que lutavam em nome da liberdade. A sociedade industrial burguesa cria as condições que ensejam o aparecimento de uma massa popular dominada, mas, para o infortúnio das classes dominantes, tremendamente concentrada. Os levantes de massa existiram, ao longo do século XIX, como ensaios de revoluções vitoriosas de maioria. As suas derrotas provisórias sinalizaram para a possibilidade de triunfos duradouros, o que, seguramente, desde o primeiro instante, acenderam o sinal de alerta nas hostes burguesas. O esmagamento da Comuna de Paris, por meio de métodos brutais e inapeláveis, demonstrou que a classe dos capitalistas e a ordem que se ergueu à volta de seus interesses, com efeito, não estavam dispostas a contemporizar em face à massa popular oprimida e a sua estratégia revolucionária.

As revoluções nos Países Baixos, na Inglaterra e na França, entre os séculos XVII e XVIII, embora dramáticas e comoventes, conduziram ao poder, em última análise, pequenas minorias em face à massa popular dominada. A derrota das minorias anacrônicas não elevaram ao poder a ampla massa da população, mas minorias que, à época, apoiaram-se em um programa florescente e adiantado.

É neste contexto que emerge a estratégia de uma revolução que, pela primeira vez, pode conduzir a massa popular oprimida a um protagonismo que lhe permita engendrar uma situação na qual a maioria inculque o seu poder em face às pequenas minorias. Essa estratégia marcou as revoluções do século XX, e o retrocesso dos Estados Operários, primeiros degenerados e depois abatidos, representa não mais do que um episódio da história e o não o fim dessa busca de protagonismo da massa trabalhadora.

Se as revoluções do passado restauraram o poder da minoria sob a forma de uma nova minoria, as revoluções da época do capitalismo imperialista instauram o domínio e a autoridade de uma maioria social: a moderna classe trabalhadora. As suas organizações carregam um história de erros e hesitações, mas a estratégia proletária é a única que pode apontar para além das restaurações de minorias.


A estratégia e as táticas em Marx

Já é possível adentrar naquilo que é essencial: para que a estratégia da classe trabalhadora seja bem sucedida, e consequentemente, a vitória seja duradoura, os trabalhadores precisam ganhar para o seu estratagema a grande massa do povo. Estudando a experiência francesa do século XIX, essa é uma das conclusões do Marx. Quando se referia à grande massa do povo, ele pensava, principalmente, nos camponeses. No Brasil atual, talvez devêssemos pensar nos camponeses, também, mas, igualmente, nos sem-terra e nos pobres que se aglomeram nos grandes núcleos urbanos.

Aqui, já é possível enunciar três aspectos fundamentais desse debate. O primeiro deles é que a luta de classes não é um campo de choques puramente espontâneos. Ela se manifesta vivamente em disputas tático-estratégicas. O segundo aspecto a ser considerado é que as noções de tática e estratégia são bastante relativas. O terceiro aspecto, e o mais importante deles, é que a emancipação da classe trabalhadora é a estratégia que orienta a ação que se ampara no marxismo. Aliás, para Marx, esse era o segredo revelado da revolução do século XIX. A questão é que esse segredo ultrapassou as fronteiras do século XIX. Esse fato fez com que as posições marxistas, ao longo de todo século XX, sofressem uma repressão contínua da burguesia e do aparelho do Estado. A retórica bélica do neofascismo, em pleno século XXI, contra o marxismo, de certo modo, indica que o segredo do século XIX, alcançou o XX e chegou ao XXI, o que sinaliza o grau de atualidade desse debate estratégico. Por trás dele está a luta pela manutenção ou destruição da ordem burguesa, conforme sugeriu Marx em Luta de classes na França (2008, p.92).

Nessa luta, a organização sindical para resistir aos ataques do capital e do Estado é uma tática imediata, necessária e insubstituível. Mas essa tática se liga a uma tática preferencial: converter o movimento dos trabalhadores num movimento histórico livre e autônomo, como indica Marx (idem, p. 171). Essa conversão se realizaria mediante a organização política independente dos trabalhadores. Daí o empenho de Marx de dotar a classe trabalhadora de um programa – o Manifesto Comunista – e de uma ferramenta política: a I Internacional ou Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Assim, a tática preferencial - movimento histórico livre e autônomo - é uma estratégia em relação à tática sindical, mas é uma tática em relação à estratégia da emancipação. Como se observa, a aplicação dos termos é muito viva e não cabe numa simples receita técnica.

É necessário, aqui, abrir um parêntese.

Há quem no interior da esquerda não se canse de tomar como estratégico aproveitar os limitados espaços de liberdade propiciados pela democracia representativa. Nos anos 1970, à luz do eurocomunismo, cresceu a ideia da democracia parlamentar, não como dotada de um valor de classe, mas de um valor universal. A recomendação de Marx, em A guerra civil na França, era outra: "Que (os operários) aproveitem, calma e resolutamente, as oportunidades da liberdade republicana, para o trabalho da sua própria organização de classe" (2008, p.373). Assim, a liberdade política, embora respeitável e inescusável, não possui um fim em si mesmo. Ela é útil na medida em que possibilita o trabalho político e organizativo da classe trabalhadora. Por esse motivo, em um raciocínio marxista, há diferenças entre uma ditadura aberta da burguesia - como as ditaduras fascistas nos anos 20 e 30 do século passado ou de um regime autocrático como o de 1964, no Brasil -, e uma democracia parlamentar, na qual o trabalho político e organizativo dos trabalhadores, malgrado os limites, possuam liberdade de funcionamento.

Concluído o parêntese, é possível afirmar que essas questões definem o lugar da tática e da estratégia no legado marxista. As táticas são meios necessários que calçam o trabalho estratégico. Se não temos em vista esse trabalho, as táticas podem se tornar nós cegos no meio do percurso. Marx não se contentou com a mera emancipação política, embora jamais a tenha desprezado. Nunca, no entanto, renunciou à emancipação social como alvo estratégico. Para ele, emancipação política e emancipação social eram momentos de um mesmo processo, mas o primeiro era meio para se alcançar o segundo: um autogoverno dos produtores.

Mas, para alcançar esse fim, Marx, novamente em A guerra civil na França (2008, p.408) sublinhava que a classe trabalhadora "terá de passar por longas lutas, por um série de processos históricos", e, em cada luta e em cada processo histórico, há de empregar uma  infinidade de táticas, isto é, de meios para alcançar o seu alvo estratégico: a própria emancipação.

Tendo a sua estratégia em mira, as arranjos e disposições da classe trabalhadora devem fazer usos de meios concretos de obter às condições mais vantajosas e as posições mais favoráveis. Isso implica criar ações de solidariedade de classe, realizar assembleias, articular movimentos grevistas, participar de manifestações públicas, escrever moções e protestos, efetuar o trabalho de propaganda, enfrentar as forças oficiais de repressão e os grupos paramilitares, usar o parlamento, levantar-se contra os seus senhores etc. Todos esses meios são válidos se não se dissipa do horizonte atingir a sua finalidade.

Em suma, a orientação aos fatos atuais corresponde às táticas que, cotidiana e concretamente, uma formação marxista deve aplicar. A luta sindical é uma tática, a ação parlamentar é outra tática e assim sucessivamente. Essas lutas não têm um fim em si. Por isso, fala-se de tática. 


Tática e estratégia depois de Marx

Moreno (2008) considerava que, para um marxista, só existem duas estratégias fundamentais: construir o partido revolucionário e a mobilização permanente da classe trabalhadora até a conquista do poder por organizações dessa mesma classe. Se isso é assim, tudo o mais pertence ao terreno do arsenal tático. Nessa perspectiva, o que é estratégico pertence ao tempo de longa duração, e o tático diz respeito ao tempo breve, à sucessão de eventos. Quanto à essa questão, Moreno é bastante sucinto e categórico: "O objetivo estratégico é de longo prazo; as táticas são os meios para chegar a esse objetivo" (2008, p.193). Nessa lógica, para ele "Todas as táticas são válidas se se adaptam ao momento concreto, presente, da luta de classes e, portanto, servem para ajudar a mobilizar as massas e construir o partido" (p. 194).

Moreno busca se apoiar no marxismo clássico. Por isso, aqui, cabe um retorno à Lênin. As suas concepções estratégicas se espalham ao longo de todo de um trabalho de cerca de três décadas de militância. Considerando o que escreveu Marx, Lênin o aprofunda e o enriquece à luz das experiências do século XX, com as suas guerras, revoluções e lutas políticas próprias, notadamente ao oferecer uma definição de tática, que influenciará vigorosamente toda gramática marxista:

Por tática de um partido entende-se a sua conduta política ou o caráter, a orientação e os métodos da sua atuação política. O congresso do partido adota resoluções táticas para definir de modo preciso a conduta política do partido no seu conjunto em relação com as novas tarefas ou em vista de uma nova situação política. (LÊNIN, 1978, p. 16). 

Numa frase: a tática é a conduta política que se adota, concretamente, frente a uma determinada situação política, delineando as tarefas daí correspondentes. No caso de mudança da situação política, seguramente, mudam as tarefas, mudam as táticas. Diferentemente das estratégias, que são válidas para toda uma época histórica, as táticas são sempre provisórias. Desse modo, as táticas são válidas para períodos curtos, respondem às tarefas imediatas e atuais, até que mudanças imponham uma reorientação. Já a estratégia só perderia o seu sentido à medida em que a época histórica que ensejara a sua existência, finalmente, se achasse sobrepujada.

Indo mais longe na reflexão, se a tática responde a uma análise política concreta, ou, como prefere Lênin (1978), se apoia nos fundamentos dos fatos, a estratégia responde a uma análise científica histórica, isto é, a uma análise de maior longevidade.

Isso expresso, caberia um questionamento: por que para os marxistas esse tema parece tão caro? Talvez Trotsky ofereça uma pista a esse enigma no livro Em defesa do marxismo, quando escreveu que "O socialismo não se realiza por 'si mesmo', mas como resultado da luta das forças vivas: as classes e seus partidos" (s/d, p.46). Até por essa razão, Trotsky nunca considerou a Revolução de Outubro como um acidente. Logo, seria impossível entendê-la sem considerar uma série de condições e referências históricas e políticas, dentre elas a situação objetiva da Rússia Czarista, a situação internacional, a guerra, as táticas e estratégias esgrimidas por Lênin e os bolcheviques etc.

Partindo dessa linha de raciocínio, são as táticas e as estratégias que conduzem ou não ao socialismo, até porque não há um caminho natural até uma sociedade socialista.

Agora mesmo, no terreno da crise na qual o Brasil está engolfado, as classes e os partidos ajustam as suas táticas e miram os seus objetivos estratégicos. Não há um caminho natural para superação da crise. A solução será o resultado da luta das forças vivas.

Se "A tática é posta à prova nos momentos críticos e de responsabilidade", como escreveu Trotsky (1979, p. 308), o momento atual é propício a esse teste de fogo.  Para que não se entre no labirinto sem o necessário fio de Ariadne, esse esforço de explicitação dos conceitos tem a sua relevância, até para que o empirismo taticista não constitua um dique ante os delineamentos estratégicos.

Fábio José de Queiroz

Professor da Universidade Regional do Cariri – URCA e militante da Resistência.

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Referências

LÊNIN, V.I. Duas táticas da social democracia na revolução democrática, Lisboa: Editorial Avante, 1978.

MARX, Karl. As lutas de classe na França, in: A revolução antes da revolução, São Paulo: Expressão Popular, 2008.

__________. A guerra civil na França, in: A revolução antes da revolução, São Paulo: Expressão Popular, 2008.

MORENO, Nahuel. O partido e a revolução, São Paulo: Sundermann, 2008.

TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo, São Paulo: Proposta Editorial, S/D.

_________. Revolução e contrarrevolução na Alemanha, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.


quarta-feira, 13 de maio de 2020

Por que o bolsonarismo idolatra torturadores?

maio 13, 2020


A tortura é quase tão antiga quanto a humanidade. Com o surgimento das classes sociais passou a ser um instrumento constante de repressão, opressão e exploração. A prática de tortura era comum em todas as antigas civilizações da Ásia, África e Europa, inclusive na América Pré-colombiana. Entre os romanos, a tortura era legalizada.

Na Idade Média, a Inquisição católica possuía regulamento com detalhes sobre diversos recursos para extrair confissões dos acusados pelos Tribunais do Santo Ofício. Devido ao humanismo iluminista e ao processo de revoluções burguesas, em especial, a Revolução Francesa, a tortura foi condenada e abolida, pelo menos formalmente, na Europa. Com o colonialismo, a tortura foi utilizada como instrumento de dominação.

No século XX, foi generalizada por fascistas e nazistas e, também, por stalinistas na União Soviética contra dissidentes. Com a Guerra Fria entre países imperialistas e Estados operários, voltou a ser utilizada “cientificamente” por órgãos policiais e serviços de inteligência dos Estados Unidos e países europeus, além dos órgãos de repressão de nações atrasadas.

Apesar da condenação figurar na Declaração Universal dos Direitos, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, as denúncias vêm crescendo no ritmo das guerras éticas, golpes de Estado e crises econômicas.

No Brasil, a tortura faz parte da própria história. O escravismo colonial, que só terminou no final do século XIX, institucionalizou a prática da tortura como forma de controle social. A Abolição não a extinguiu. Passou a patrimônio comum das delegacias polícias em todo o país. Nos tempos de exceção, como o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985), passou a arma de luta política contra opositores, sempre acompanhada de um típico produto nacional, o “pau-de-arara”.

A ditadura militar, enaltecida como um passado mítico pela ideologia bolsonarista, a aplicou amplamente contra presos políticos indefesos e indefesas: nas masmorras dos DOI-CODs, centros militares e Deops de São Paulo. A tortura política é forma grotesca de alienação que busca destruir a integridade do indivíduo. O psicanalista Hélio Pellegrino assim a analisa em texto clássico.

A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações. Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta [...] a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente [...] Através da tortura, o corpo se torna nosso inimigo, e nos persegue. É este o modelo básico no qual se apoia a ação de qualquer torturador [...] A tortura destrói a totalidade constituída por corpo e mente, ao mesmo tempo que joga o corpo contra nós, sob forma de um adversário do qual não podemos fugir, a não ser pela morte. A tortura transforma nosso corpo - aquilo que temos de mais íntimo - em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos torturam [...] O corpo, na tortura, nos acua, para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos, fiéis aos valores que compõem nosso sistema de crenças. Ele se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma capitulação que, uma vez consumada, nos degradaria [...] Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma - e assume - uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacíficos do seu corpo . A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo [...] quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa desgraçada - e degradada - espectadora de sua própria ruína [...] o torturado não pode falar, embora esta seja uma exigência quase sobre-humana. Sua não-fala, ou a fala do despistamento, constituem, na tortura, o discurso do herói [...] Se o torturado não fala, pode morrer fisicamente. Se fala, e confessa, sucumbe a uma discórdia fundamental e morre como pessoa [...] O torturador, este não tem saída nenhuma. Quando consegue êxito - e esta é a sua melhor hipótese -, o torturador, à semelhança da hiena, passa a alimentar-se de um cadáver. A confissão do torturado significa o seu assassinato enquanto pessoa. O torturador vitorioso tem, portanto, nas garras e nos dentes, os despojos massacrados de um sujeito humano. Ele vive da morte - e na morte[1].

 

Bolsonaro e seus adeptos idolatram o Coronel Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-CODI do II Exército, torturador condenado. Depois de participar de manifestações neofascistas contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, no domingo (3/5), o presidente recebeu, como “herói”, na segunda-feira (4/5), o tenente-coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura. “Curió”, segundo a Comissão Nacional da Verdade, teve atuação direta em execuções, sequestros, prisões ilegais, tortura e desaparecimento de pessoas. Na quinta-feira (7/5), a Secretária Especial da Cultura, Regina Duarte, minimizou a ditadura militar, as torturas e as mortes pelo novo coronavírus, chegando a cantarolar a música “Pra Frente Brasil”, usada politicamente no governo do general Emilio Garrastazu Médici (1969-1974).

Tal enaltecimento da ditadura militar com seus métodos de repressão e tortura é comum não só aos membros do governo de extrema direita de Bolsonaro, mas também é hegemônica em sua base parlamentar, nas forças armadas, nas polícias militares e civis estaduais, no clero das igrejas pentecostais e neopentecostais, em movimentos  neofascistas (monarquista, integralista, “Endireita Brasil”, Movimento Brasil Conservador, supremacistas brancos, católicos tradicionalistas entre outros).

De fato, a principal corrente do neofascismo brasileiro, ou seja o bolsonarismo, é um amálgama de posições díspares (monarquismo, liberalismo, corporativismo fascista, neonazismo, defensores da ditadura militar, olavismo) que possuem pontos de convergências: destruição das organizações do movimento operário-popular, restrição das conquistas democráticas, aumento da superexploração do trabalho, racismo, opressão da mulher, lgbtfobia. Essa plataforma, para ser implementada, exige um aumento exponencial do nível de repressão contra as massas trabalhadoras. Por isso, a defesa de torturadores e da herança maldita da ditadura militar.

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.



[1] PELLEGRINO, Hélio. A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1989, p. 19-21.

sábado, 9 de maio de 2020

O que a história do nazismo ensina sobre Weintraub, o inimigo da educação brasileira

maio 09, 2020


No dia 10 de maio de 1933, há 87 anos atrás, Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da propaganda de Hitler, compareceu à Opernplatz[1] em Berlim, para uma cerimônia grotesca e planejada detalhadamente: a queima de livros destinada a demonstrar a rejeição da Alemanha nazista à cultura intelectual “subversiva” e “degenerada” da República de Weimar. Uma multidão de cerca de 40 mil pessoas apoiou esse ritual simbólico de purificação da cultura alemã. Estudantes nazistas lançavam livros de autores judeus e de esquerda numa imensa fogueira, acompanhados por canções patrióticas, marchas e aplausos efusivos. A barbárie não parou aí. Manifestações similares foram realizadas em cidades universitárias por todo Reich. Boa parte dos livros entregues às chamas era de bibliotecas das universidades, mas ocorreram casos em que cidadãos particulares também levaram seus exemplares para os crematórios da cultura.

A queima de livros fazia parte de um movimento coordenado e subordinado à denominada Glechschaltung (mudar na mesma direção, linha ou corrente), com o objetivo de produzir uma Volksgemeinshaft (comunidade nacional ou do povo) uniforme, harmoniosa e militante baseada na afinidade cultural e “racial”. Esse projeto nazista retirou a autoridade dos governos e parlamentos estaduais, provocou expurgo no serviço público e levantou a necessidade de “despolitizar” a educação, com o afastamento de acadêmicos e pensadores dissidentes e/ou judeus sob a falsa alegação de liberdade de investigação e expressão.

De volta ao Brasil dos dias atuais, a barbárie apresenta-se com novos atores e roteiro. País de capitalismo periférico, com passado escravista colonial recente, sob um governo de extrema direita. O bolsonarismo possui uma Glechschaltung neofascista e fundamentalista que visa aumentar o grau de superexploração do trabalho, destruir as organizações das massas trabalhadoras e dos movimentos sociais, transformar o Brasil numa colônia dos Estados Unidos e aniquilar as conquistar democráticas arrancadas na luta contra a ditadura militar.

Nesse contexto hediondo, de crise econômica e pandemia, a incompetência do ministro da Educação Abraham Weintraub, de fato, é um projeto de destruição da educação pública, tanto básica como superior. Contingenciamento de recursos, erros no ENEM e no SISU, escolha do criacionista Benedito Guimarães Aguiar Neto para dirigir a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), redução de bolsas de mestrado e doutorado para programas de pós-graduação, ataques ao PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), proposta do Future-se contra a Universidade Pública, tudo na perspectiva de combater o suposto “marxismo cultural” e incentivar a privatização da educação pública.

O conjunto dessas medidas contra a escola pública são inseparáveis das diversas facetas do governo Bolsonaro. A reivindicação de “Fora Weintraub!” é inócua e equivocada na atual conjuntura. O centro deve ser a extirpação do governo Bolsonaro e de seu projeto da vida nacional. A retirada de Ricardo Vélez Rodríguez do Ministério da Educação trouxe-nos Abraham Weintraub, outro beócio e discípulo do astrólogo Olavo de Carvalho. Apesar de seu histórico de reprovação, seus erros de português e de matemática, Weintraub cumpre bem sua função no projeto bolsonarista. E há precedentes na história da perversão nazista.

Bernhard Rust (1883-1945), demitido anteriormente do cargo de mestre-escola provincial por debilidades mentais, foi elevado à Ministro da Ciência, Educação e Cultura Nacional entre 1934 a 1945, por sua amizade por Hitler e seu fanatismo.

A defesa da educação, hoje, contra Weintraub e possíveis imbecis que possam substituí-lo, passa pelo: Fora Bolsonaro e Mourão! Militares nos quartéis! Eleições gerais!

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

Photo by Fred Kearney on Unsplash



[1] Hoje Bebelplatz, onde encontram-se a Ópera de Berlim, edifícios da Universidade Humboldt e a Catedral de Santa Edwiges, a igreja católica romana mais antiga da cidade.