quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A historicidade da irracionalidade do capital

fevereiro 24, 2021

 

Foto: Marcel Strauß

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Silva Jardim

 

O homem, para se manter individualmente e enquanto espécie, precisa se relacionar com a natureza, retirar dela o seu sustento. Nessa relação com a natureza, cada homem atua em associação com outros homens, razão por que essa relação homem/natureza se dá no âmbito de uma determinada forma social que sempre surge historicamente, ou seja, que é formatada pela própria atividade humana de forma não intencional, já que os homens não “planejam” determinada forma social de se relacionar com a natureza com o objetivo de viver e de se reproduzir. O homem, assim, faz mas não sabe que faz, conforme disse Marx.

O capitalismo assim surgiu historicamente como fruto da própria atividade humana, razão por que pode desaparecer em razão dessa mesma atividade humana. E por que ele deve desaparecer? Marx viu que o capitalismo, desde os seus primórdios, produziu um grande desenvolvimento das forças produtivas humanas, do comércio, da indústria, da ciência, da tecnologia, mas também produziu uma grande miséria para as grandes massas populares, inclusive na Inglaterra, berço da Revolução Industrial.


Engels, em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, registra que no período final da Revolução Industrial (as décadas de 1830 e 1840), podia-se encontrar crianças de 4 anos de idade trabalhando nas fábricas, mulheres e crianças realizando trabalho pesado no fundo das minas, crianças de 7 anos passando 24 horas por dia no subterrâneo. O capitalismo também produziu a escravidão dos negros africanos utilizados nas plantations de algodão na América do Norte ou de tabaco e cana-de-açúcar nas Antilhas e na América do Sul, tendo sido o escravismo moderno fundamental para a consolidação e expansão da florescente indústria européia, o que pode ser ilustrado pela produção de algodão nos EUA para uso das indústrias de fiação e tecelagem inglesas no século XIX.


É também digno de nota que nos séculos XIX e XX países capitalistas europeus conquistaram e administraram colônias a ferro e a fogo para obterem matérias-primas baratas para suas indústrias, com um alto custo humano para os povos dominados: no Congo belga morreram 10 milhões de homens, mulheres e crianças congolesas durante o reinado de Leopoldo II na Bélgica, em fins do século XIX e início do século XX. E nos Estados Unidos da América não foi diferente: a expansão para o Oeste e a consequente descoberta do ouro californiano no século XIX, tão importante para o capitalismo nessa época, foi feito sobre a base do genocídio indígena.

O capitalismo, assim, consolidou-se através da exploração de grandes massas humanas, genocídios e do saqueio de povos coloniais, em benefício de um punhado de grandes capitalistas de poucos países europeus, dos EUA e, mais tardiamente, já no século XX, do Japão. Não é desarrazoado, assim, perguntar como há quem sustente que um sistema que surgiu escorrendo lama e sangue por todos os seus poros pode ser “suavizado”, melhorado, reformado de forma a que atenda as necessidades das grandes massas populares que, já em sua origem, ele espoliou, explorou e massacrou. A mera análise empírica baseada no exame superficial dos grandes fatos e acontecimentos históricos dos últimos 250 anos, era de pleno domínio do capital, prova que, após todo esse tempo, persistem a fome, a miséria, as guerras, os genocídios e as crises humanitárias como a dos refugiados.

Mas o entendimento meramente empírico acerca da impossibilidade de reforma do capitalismo não mostra de que modo ele pode ser superado e o que colocar em seu lugar. Também não demonstra cientificamente a impossibilidade de reformá-lo e, portanto, a necessidade de destruí-lo. Daí a necessidade de que fosse produzida uma ciência que pudesse explicar o modo de funcionamento do capital. Afortunadamente apareceu na cena histórica um indivíduo genial que realizou essa monumental tarefa: este homem foi Karl Marx. Os problemas que a humanidade vive hoje, a fome, a miséria, o desemprego, as guerras, a destruição ambiental em níveis tais que espera-se a destruição de inúmeras espécies de seres vivos ainda neste século XXI, o aquecimento global que ameaça devastar as condições de sustento de inumeráveis populações humanas, tudo isso se torna explicável a partir do modo de funcionamento do capitalismo explicitado por Marx. As indestrutíveis exigências de uma sempre maior acumulação de capital, de maiores lucros a cada ano, de expansão desenfreada da produção e, portanto, do imperativo da produção pela produção e não para a satisfação das necessidades humanas, tornam o reino do capital mortífero para a humanidade e destrutivo para a natureza.

O sistema do capital conduz a tal irracionalidade e inumanidade que, hoje, em plena crise do coronavírus no Brasil, com 250 mil mortos de acordo com a contagem oficial, a vacinação se dá em passos de tartaruga e tramita no Congresso Nacional proposta de emenda constitucional do Governo Federal para eliminar a exigência de aplicação de percentual mínimo de recursos públicos nas áreas da educação e da saúde.

Marx demonstrou que a solução definitiva e satisfatória das grandes desgraças do mundo é o aproveitamento das condições materiais e culturais criadas pelo capitalismo numa forma social superior em que os homens livremente associados planejam e executam a produção de acordo com as necessidades de todos os trabalhadores. Algumas dessas condições existentes já no capitalismo são a produção cada vez mais amplamente social, a cooperação e interdependência dos trabalhadores a nível mundial, o elevado grau de tecnologia alcançado pela humanidade, a grande produtividade do trabalho, o avançado desenvolvimento científico, enfim, condições que numa forma social superior poderiam ser utilizadas racionalmente para permitir a todos uma vida digna de ser vivida porque se garantiria a nível coletivo as condições materiais necessárias à vida e o acesso pleno à cultura e à ciência produzidas pela humanidade, possibilitando ao indivíduo o desenvolvimento integral de suas capacidades e uma vida rica de significado, sem exploração de qualquer tipo e, assim, condizente com a condição humana.


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domingo, 21 de fevereiro de 2021

173 anos do Manifesto Comunista

fevereiro 21, 2021

Photo: Workers peel papers off a wall as they re-paint the Chinese Communist Party flag on it at the Nanhu revolution memorial museum in Jiaxing, Zhejiang province May 21, 2014. REUTERS / Chance Chan

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Eudes Baima

Professor do curso de pedagogia da FAFIDAM/UECE

 

        Gestado e parido no contexto da Primavera dos Povos, revolução de alcance Europeu que sacudiu sobretudo a França e a Alemanha (mas não apenas), cujo epicentro foi o ano de 1848, o Manifesto do Partido Comunista completa, neste 21 de fevereiro, 173 anos. Sua edição original, em alemão, foi, todavia, impressa em uma oficina na Rua Liverpool, em Bishopsgate, Londres, na Inglaterra, dada as leis prussianas opressivas que vigiam na Alemanha.

        As bases sociais e econômicas onde está apoiado seguem vigentes e suas linhas fundamentais continuam atuais. Um guia para a ação, e não um receituário revolucionário, o Manifesto foi solicitado a Marx e Engels pela Liga dos Justos, doravante Liga dos Comunistas, organização proletária de caráter internacional que antecedeu a I Internacional.

        O Manifesto rompe uma tradição na história do pensamento: longe de apresentar um sistema ideal, na linhagem dos reformadores sociais do Iluminismo, decorria de uma reflexão sintética que buscava expressar o movimento real da vida social e, a partir daí, indicar as linhas gerais da organização dos trabalhadores em sua luta de classe pelo poder.

       Seu aparecimento corresponde, assim, às grandes mobilizações revolucionárias de 1848, quando, como depois Marx assinalará em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a classe operária, pela primeira vez, adentrava ao cenário político como força independente.

        Nos 173 anos de sua primeira edição, em meio à maior ofensiva contra a existência mesma da classe trabalhadora, sob o pretexto do combate à pandemia, a famosa divisa do Manifesto está dramaticamente atual: Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Live dos grupos 2021.1

fevereiro 12, 2021

No dia 17 de fevereiro de 2021, às 18h30, daremos início às atividades dos grupos de estudo do GPOSSHE.

Participantes: Frederico Costa, Karla Costa, Marcondes Pereira, Maria Aires e Juscilene Oliveira.

Na ocasião, daremos mais informações sobre participação.

Caso você tenha interesse em já ir conhecendo quais são os nossos grupos e qual é o nosso calendário de 2021.1, v
ocê pode acessar o folder na nossa pasta compartilhada clicando aqui.


Você encontrará o link na nossa BIO do Instagram também.

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sábado, 6 de fevereiro de 2021

O capitalismo não se preocupa com a vida das pessoas: o exemplo do Bradesco

fevereiro 06, 2021

 

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Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará - UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO.


Em 2020, o Bradesco fechou 1.083 agências físicas e demitiu 7.754 pessoas do quadro de funcionários com o objetivo de conter os custos e reduzir as despesas. Em dezembro, a instituição contava com 3.395 unidades em todo o país, e um quadro de 89.575 trabalhadoras e trabalhadores. Os valores são, respectivamente, 24,2% e 8% inferiores aos números registrados no mesmo período de 2019. Tais medidas adotadas possibilitaram uma redução de R$ 3,2 bilhões ou 6,6% das despesas operacionais. Com isso, a eficiência operacional foi de 46,3% em 12 meses, omelhor desempenho da história do banco.

Já em dezembro de 2020, numa teleconferência, Octavio de Lazari Júnior, presidente do Bradesco, afirmou que no 4º trimestre ele terminava de “cortar o mato alto”, em alusão às demissões em massa que o banco vinha fazendo nos últimos mese.

Em plena crise, o Bradesco teve o maior lucro entre as empresas de capital aberto listadas na América Latina no primeiro semestre de 2020. Segundo levantamento da Economatica, somando o primeiro e segundo trimestres, o banco teve um resultado de US$ 1,26 bilhão (R$ 6,85 bilhões), com queda de 59% em relação aos seis primeiros meses de 2019. A referida queda foi causada pelo forte aumento de reservas para cobrir eventuais “calotes, em consequência dos danos econômicos da pandemia. Apesar disso, o setor bancário éo que mais lucra dentre as companhias da América Latina.

Esse lucro todo, apesar da crise, não vem do nada, é fruto da atividade de trabalhadores e trabalhadoras bancárias, que fazem parte do proletariado. Esse trabalho não produz mais-valia, mas sua utilidade reside no pressuposto da transferência de mais-valia para o ramo do capital financeiro. Assim, milhares de trabalhadores do Bradesco possibilitam a transferência de uma quota-parte da mais-valia industrial para os banqueiros, além de manter o funcionamento geral do sistema financeiro. Então a base dos lucros exorbitantes do setor financeiro, em particular o Bradesco, é o trabalho não-pago de operários produtores de mais-valia e de bancários, que recebem seus salários de uma parte dessa alíquota de mais-valia.

Esses trabalhadores têm uma função essencial na acumulação capitalista: seu trabalho útil possibilita o processo de valorização do capital pela apropriação de uma parte da mais-valia pela burguesia financeira. No entanto, as tendências de centralização e concentração de capital, a crise econômica, a superexploração do trabalho, a reestruturação produtiva e as dificuldades na organização da resistência operário-popular favorecem demissões massivas como essa do Bradesco. O interessante é que para o capital, os trabalhadores, suas famílias e suas necessidades de existência não passam de “mato alto” a ser cortado em nome da eficiência lucrativa, da concentração de riquezas e dos privilégios de uma minoria cada vez menor. Diante disso, é urgente a necessidade do debate em torno da estatização do sistema financeiro sob o controle de trabalhadores e trabalhadoras.

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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dez dias que abalaram o mundo

fevereiro 05, 2021

Foto: Steve Harvey

Fabrício Rocha
Bancário, Bahia


A linguagem é uma das maiores e mais belas capacidades humanas. Fruto de um longo e árduo processo evolutivo que, entre outras coisas, permitiu ao homo sapiens se diferenciar e se sobrepor aos demais hominídeos e ao conjunto da natureza, a linguagem, devido a ação do tempo, somado a interação do homem com seus semelhantes e com os diversos ambientes geográficos, se complexou de tal maneira que surgiram inúmeros idiomas, dialetos, línguas e com toda esse amálgama, a forma escrita.

A possibilidade de ordenar as palavras para nos comunicarmos, para descrever um ambiente, um fato, contar uma estória ou descrever a história, produzir conhecimento é algo mágico. São infinitas as emoções e reações que a leitura pode nos causar. A depender da forma como as palavras são conectadas para expressar um sentido e significado, podemos dar vazão ao melhor da nossa humanidade mas também expressar aquilo que o ser humano possui de mais vil e abjeto. Podemos também viajar, conhecer o mundo independentemente das coordenadas de latitude e longitude, a qualquer época, século, década, ano etc. É impressionante como podemos, por exemplo, nos sentir parte vivente de um determinado momento histórico, é como se fossemos protagonistas do evento, vivenciado as emoções, as dores e alegrias em tempo real.

Pois bem, foi essa a sensação que eu tive ao ler o livro “Dez dias que abalaram o mundo, história da revolução russa” do jornalista norte-americano John Reed. Nascido nos Estados Unidos, Reed foi um ativista e jornalista formado por Havard que atuou como correspondente no México, Europa e na Rússia. Presenciou e escreveu sobre a revolução mexicana, sobre a primeira guerra mundial e por fim, sobre a revolução russa. Morreu bastante novo, aos 43 anos, de tifo em 1920 na Rússia.

Dez dias que abalaram o mundo é um relato, senão o maior e melhor, da Revolução Russa. Clássico da literatura política, este livro inicia um marco no mundo da narrativa jornalística. Basicamente nos relata os 10 dias que se seguiram ao 25 de outubro de 1917 - no calendário juliano, ou 7 de novembro - nos termos do calendário gregoriano.

John Reed descreve nos três primeiros capítulos os antecedentes e os preparativos para a gloriosa revolução de outubro. Em seguida temos todos os detalhes dos primeiros dias de vida da recém nascida revolução socialista, do primeiro governo operário e camponês da história moderna. O leitor se vê envolvido nas tramas, nas discussões entre os diversos atores individuais e coletivos. A sensação que temos é que estamos presencialmente acompanhando Reed na participação de todos os eventos que ele descreve, tanta é a minúcia em que as ruas, os prédios e seus componentes internos são descritos; tamanho são os detalhes em que o ambiente social, político e econômicos são relatados. Em diversos momentos me encontrei como espectador dos debates apaixonados e tensos que ocorreram nas ruas de Petrogrado, no Smolni, na Dulma, em Moscou e cidades vizinhas, nos sovietes, no front de guerra, nos quarteis e outros ambientes.

Da derrubada do governo provisório à tomada do palácio de inverno, das primeiras batalhas contra a reação formada por todas as forças hostis ao novo governo, Reed dá voz por meio de sua escrita, do seu relato aos mais diversos personagens, desde os eminentes líderes de todos os partidos e facções políticas envolvidos nos atos da revolução, aos camponeses, aos operários, soldados, homens e mulheres do povo com seus sonhos, suas visões de mundo e perspectivas.

Num momento revolucionário, de crise social, de radicalização, setores conservadores, sujeitos vacilantes se apropriam de termos e símbolos até então demonizados com dois objetivos: manter as estruturas conservadas e para que as mudanças inevitáveis se deem em limites bem controlados. Palavras como socialismo, revolução e governo operário faziam parte do repertório de reformistas e revolucionários, dos mencheviques, socialistas moderados, socialistas revolucionários, mas somente os bolcheviques, com Lenin e Trotsky a frente, foram capazes de levar até as últimas consequências as demandas dos operários, soldados e camponeses e conjuntamente com um programa político bem definido ultrapassarem os limites da conciliação e de fato concretizar o caráter socialista da revolução na tomada do poder político e estatal.

Desde o início dos seus primeiros dias de vida, nada foi fácil para o governo operário e camponês. Para garantir a sobrevivência da revolução, bolcheviques tiveram que lutar tanto contra os inimigos externos - o governo provisório derrubado pela revolução de outubro manteve a Rússia imersa na primeira guerra mundial- quanto com os inimigos internos. Todos os representantes da velha ordem, latifundiários, capitalistas, monarquistas e a esquerda reformista se uniram, inclusive em armas, para destruir o recém governo saído da revolução e corroborado pelo Segundo Congresso de Sovietes dos Deputados Operários e Soldados.

Para aqueles que acham que a fakenews é um problema contemporâneo, ficará surpreso ao constatar como a mentira é um instrumento de arma política utilizado em circunstâncias de crises e rompimento do tecido social de uma ordem carcomida como foi o exemplo da revolução russa. Os inimigos do governo revolucionário utilizaram sem pudor desse expediente para espalhar mentira em todas as direções e provocar confusão com o objetivo de fazer a balança pender para o lado da contrarrevolução.

O estudo da revolução russa sempre será um poço de exemplos, de conhecimento intermináveis para a esquerda revolucionária. Aqueles que abandonaram a perspectiva da transformação radical sempre se esforçaram para deixar a revolução russa circunscrita aos limites do início do século XX, mas é inevitável, ao ler o livro Dez dias, fazer paralelos, levando em consideração a diferença temporal, entre o caleidoscópio político e a conjuntura da Rússia revolucionária e atual conjuntura brasileira. O debate entre a reforma e revolução sempre esteve por trás das mais diversas realidades sociais desde que o capitalismo se constituiu enquanto um sistema mundial dominante.

O livro termina no momento em que a união dos operários e camponeses é ratificada pelo congresso dos sovietes dos camponeses de toda Rússia. Em seguida a cidade de Petrogrado é tomada por um turbilhão pessoas, trabalhadores de todas as atividade econômicas, soldados, mulheres dos mortos que defenderam a revolução dos ataques, filhos e filhas destes últimos fizeram uma grande homenagem aos verdadeiros heróis do povo e ao mesmo tempo comemoraram a consolidação do novo regime representado pela união dos operários e camponeses. Este foi um dos poucos momentos em que a revolução respirou, por menor que fosse, com um pouco de alívio. O pior ainda estaria por vir.

Quer ter a sensação de vivenciar o maior acontecimento do século XX? Leia Dez dias que abalaram o mundo.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Eu não assisto BBB, mas vou falar sobre ele

fevereiro 04, 2021

 


Não posso começar esse texto sem dizer para os leitores que eu não assisto ao Big Brother Brasil, sob pena de ter cancelada a minha carteirinha de intelectualAcontece que, na chamada era digital, é muito difícil não receber uma informação que não te interessa, então, sou obrigada a acompanhar o BBB 21 quando pipocam notícias sobre o que acontece na casa mais vigiada do Brasil”. Admita: você também já enjoou dessa nomenclatura, mas não resiste em dizê-la. 

Tenho estado afastada das redes sociais e acompanhado apenas aplicativos e sites de notícias e fico impressionada com a importância dada às maiores banalidades que acontecem naquela casa: quem chorou, quem bebeu na festa, quem deu o primeiro beijo etc. Há muito de publicidade, claro, masse o jornal veicula, há leitores interessados. 

Na edição passada, vimos o desenvolvimento de uma narrativa que se utilizou de temas em alta como o antirracismo e o feminismo, assuntos que alavancaram o interesse das pessoas pelo ocorria na convivência dos participantes. 

Nesta edição, as notícias em destaque tem relação com o tal do cancelamento e, aparentemente, por serem famosos, os participantes se preocupam demasiadamente com a imagem que projetam para fora. Karol Conká tem estado na maioria das notícias que leio e causado muita revolta por seu comportamento dentro da casa e pela prática de bullying com outro participante, Lucas Penteado. Confesso que não conheço Lucas e, Karol, só de nome. 

Vale a pena usar o BBB para pensar a construção da opinião média brasileira, para compreender o nível de desenvolvimento cultural da nossa sociedade, sem esquecer que o contexto da pandemia pode gerar mais audiência para o programa vinda de pessoas que buscam uma fuga da própria realidade. 

Tenho apontado como algumas categorias feministas têm sido aplicadas pelo feminismo liberal e causado mais alienação do que emancipação. O comportamento de Karol Conká é um exemplo disso. Parece-me que a rapper aplica a noção de empoderamento de forma equivocada, como o exercício de um poder opressivo sobre o outro, sobre o agente da opressão, o homem. Feito de maneira irrefletida, sem qualquer intencionalidade emancipatória, sem escopo, um comportamento sem uma finalidade cuja agressividade é um fim em si mesma. 

Ora, muitas tem sido as críticas dirigidas à rapper, inclusive, por ela ser negra e o alvo de sua agressividade ser um homem negro. Algumas artistas que se afirmam feministas, inclusive homens, tem se manifestado nas redes sociais para reprovar o comportamento de Karol e eu entendo o porquê dessa indignação, mas preciso apontar que ela esse tipo de desdobramento era absolutamente esperado vindo desse feminismo que a mídia veiculada, de vertente liberal, ou ainda radical, porque não direcionam a luta para a causa essencial da opressão da mulher: o capitalismo, mas ficam na superfície do fenômeno, centram-se em ações individuais, colocam os homens (sem distinguir uma série de mediações) como os principais inimigos, esquecem as relações institucionais e estruturais. 

Esses feminismos apontam como uma das soluções para a opressão justamente esse comportamento de Karol Conkáatire antes de ser atingida, comporte-se como os homens se comportam, mulheres poderosas humilham os homens, os subjugam, façam com eles o que eles fazem conosco. Por mais tentador que possa parecer, assumir esse comportamento não soluciona a opressão, ao contrário, causa mais alienação, pois mascara para onde devemos direcionar nossas ações: a luta organizada e coletiva com o capitalismo que, sem dúvida, vai exige de nós, mulheres, muitas disputas com os homens, mas essas disputas não são vazias nem um fim em si mesmas. 

comportamento de Karol tem muito da própria personalidade dela, sem dúvida, mas ele é um produto natural de uma compreensão equivocada de feminismo, por isso essa indignação das famosas e dos famosos que defendem o mesmo tipo de feminismo é, no fundo, hipócrita porque, eles ajudam a construir essa imagem distorcida. 

Vejam a normalização do comportamento da “empresária agressiva", no documentário "Anitta: made in Honório" da Netflix, da cantora Anitta que precisou assumir um modus operandi masculino para se fazer respeitar no mundo dos negócios. Uma mulher, em ambientes masculinos, precisa de uma atitude mais agressiva sim, qualquer uma das leitoras que viveu essa experiência no mundo do trabalho ou na Universidade sabe que é verdade, mas chamar isso de feminismo é problemático porque não é uma atitude emancipatória, mas uma conformação ao jogo capitalista. 

O feminismo liberal não emancipa as mulheres porque nos subjuga às regras do sistema capitalista machista e só saem vencedoras aquelas mulheres que aprendem as regras e não sem perdas na sua humanidade. Estão aí os exemplos para comprovar. 

 

Prof. Dra. Karla Costa (GPOSSHE)

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