quinta-feira, 16 de setembro de 2021

O fantasma do "terceiro período" ainda persegue setores da esquerda brasileira

setembro 16, 2021


Na história do movimento operário, o “terceiro período” significou uma orientação política desastrosa do stalinismo que expressou a degeneração da revolução socialista russa. De acordo com a estratégia da burocracia soviética, a luta de classes adotaria a seguinte trajetória: depois de uma primeira fase de ascenso revolucionário de 1919-1923 e de uma segunda etapa de estabilização relativa do capitalismo entre 1924-1927, a partir de 1928, abrir-se-ia um período de possibilidades revolucionárias imediatas. Tal visão arbitrária e inconsequente deteve-se em 1934, primeiro ano da ascensão do nazismo na Alemanha, e foi deixada no esquecimento pelos estrategistas stalinistas. Hoje, pouco se fala dessa aberração caiada de marxismo. No entanto, suas teses ainda se fazem presentes.

A consequência política da teoria do “terceiro período” foi mais trágica ainda e levada ao limite pelas direções stalinistas: se o período colocava a revolução na ordem do dia, logo, a garantia do domínio burguês seria garantida pela “fascistização da social-democracia internacional” com a qual os comunistas disputavam a direção do movimento operário em vários países. Nesse sentido, a derrota do “social-fascismo” (social-democracia) era uma premissa da revolução, o que levaria imediatamente os trabalhadores social-democratas desiludidos para as fileiras dos comunistas. Então, de 1928 até 1934, nas resoluções e na ação política das organizações comunistas engessadas pelo stalinismo, o combate principal foi contra o “social-fascismo”, isto é, a social-democracia, tratados como “traidores da classe operária”. O resultado clássico dessa política foi a vitória do nazismo em 1933, na Alemanha, o que não era inevitável.

Apesar dos aparatos stalinistas, tal política não foi unânime. Leon Trotsky, dirigente, juntamente com Lênin, da Revolução Russa, perseguido e desterrado da URSS por combater a contrarrevolução stalinista, lutou contra a política do “terceiro período”. Mesmo nas difíceis condições do exílio, Trotsky expressou a continuidade do programa revolucionário marxista defendendo política de frente única dos trabalhadores comunistas e social-democratas contra a ascensão do fascismo, em especial na Alemanha.

Voltando aos dias atuais, no nosso Brasil, verificamos que há, na esquerda, correntes de origem stalinista e até de coloração trotskista que negam o golpe de 2016 e, na prática, elegem Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) como os principais inimigos, os “traidores da classe operária”. Isso, quando temos um governo de extrema direita que procura destruir as conquistas sociais e democráticas dos trabalhadores de acordo com os interesses do imperialismo e da burguesia brasileira.

É preciso levar o fantasma da política stalinista do “terceiro período” de volta para o mundo dos mortos.

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará - UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Sinopse do processo de trabalho e o processo de valorização

setembro 15, 2021


MARX, Karl. O processo de trabalho e o processo de valorização. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderele. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 255-263.

 

O texto em tela apresenta-se dividido em dois tópicos a saber: 1. O processo de trabalho e 2. O processo de valorização. Ao longo desses, Marx se propõe a explicar que o processo de trabalho é uma atividade intrínseca ao homem, fazendo parte de sua constituição enquanto ser e que, por isso, ela permanecerá acontecendo independente das suas condições objetivas, estando situado historicamente ou não dentro do capitalismo. Ou seja, o trabalho acontece não por conta de um determinado modo de produção, mas porque o homem necessita dessa atividade para sua própria reprodução.

Desse modo, encontramos no primeiro tópico do texto a elucidação da categoria trabalho e, em seguida, dos elementos do processo de trabalho. Marx defende a ideia de que o trabalho é, antes de tudo, a relação transformadora entre o homem e a natureza a fim de saciar suas necessidades. Nesta relação o homem é o sujeito ativo, controlando e regulando sua atividade metabólica com a natureza, que é por ele modificada ao mesmo tempo em que ele se automodifica. O trabalho é, portanto, uma atividade desenvolvida exclusivamente pelos homens que resulta na sua própria transformação, seja porque adquiriu novos conhecimentos sobre essa própria natureza ou porque tem agora sua necessidade atendida e novas objetivações para se relacionar, e na transformação da natureza em um bem que servirá ao homem em acordo com sua utilidade.

Operando nas dimensões objetiva e subjetiva da vida do homem, o trabalho lhe funda enquanto ser social desenvolvendo suas potências e colocando em movimento suas capacidades universalizantes, como por exemplo: o conhecer, o comunicar-se e o projetar.

Esta última, nomeada de teleologia, é a capacidade que o homem tem de elaborar idealmente o resultado que almeja chegar ao final do trabalho. Disso decorrem duas questões elaboradas por Marx, a primeira diz respeito à caracterização do trabalho, pois se o homem possui tal capacidade, o trabalho será sempre uma atividade orientada a um fim; segundo que esta capacidade serve para distinguir o homem dos outros animais, visto que estes agem em acordo com seus instintos e executam sempre a mesma atividade e do mesmo modo, enquanto o homem ao projetar o resultado da sua atividade, objetiva-se e transforma-se, executando sua atividade seguinte a partir de objetivações precedentes e elaborando outras formas de executar a mesma atividade.

Além  disso,  nesse  tópico  Marx  destaca  os  elementos  essenciais  ao desenvolvimento do trabalho: objetos de trabalho (matéria-prima), meios de trabalho (instrumentos) e força de trabalho (trabalhador); e sintetiza que o processo de trabalho reúne todos esses elementos, no qual o trabalhador cria ferramentas para mediar sua ação modificadora junto da matéria-prima plasmando um produto que possui valor de uso. Este último é entendido como a funcionalidade característica do produto do trabalho, a qual visa atender às necessidades humanas constituindo-se, assim, em objeto a ser consumido.

Para finalizar o tópico 1, o autor deixa claro que a natureza do processo de trabalho em nada muda ao ser realizado dentro do modo de produção capitalista. Entretanto, o laborar  do  trabalhador  sob  o  controle  capitalista  faz  com  a  força  de  trabalho  seja apropriada pelo capitalista e, consequentemente, o produto final do trabalho será de propriedade do capitalista. Assim, o objetivo final desse processo de trabalho não é mais simplesmente saciar as necessidades humanas, mas produzir mercadorias.

Já no segundo tópico do texto temos a explicação do processo de valorização que se trata da maneira como ocorre a criação do valor de troca necessário à composição do valor de um produto para que este venha a ser mercadoria. A mercadoria é, portanto, o resultado do trabalho apropriado dentro do capitalismo e que possui não só seu valor de uso, mas também de troca; este valor de troca, objetivando a formação e extração de capital pelo capitalista, deverá ser quantitativamente maior que o necessário para a composição dos elementos do trabalho, portanto, ao longo do processo de sua constituição deverá sofrer incremento de seu valor, posto que seu valor final é a junção simples dos valores de uso dos elementos do trabalho.

Marx deixa claro que o capitalista está interessado na produção do mais-valor e que  este  se  origina  na  esfera  da  produção  sendo  realizado  na  esfera  do  consumo. Concernente ao movimento da esfera da produção, entendido como processo de formação de valor, temos dois pontos analisados pelo autor: o primeiro que diz respeito ao Valor da força de trabalho e o segundo que se refere à Valorização da força de trabalho.

A primeira tarefa é calcular o trabalho materializado enquanto valor de uso, ou seja, o tempo de trabalho socialmente necessário para a finalização de um produto. O cálculo do valor de troca da força de trabalho (mercadoria) se expressa pelo valor em dinheiro que servirá de manutenção da subsistência do trabalhador; Marx considera que este valor é equivalente à meia jornada de trabalho. Num segundo aspecto, o autor considera que ao se vender enquanto mercadoria, a força de trabalho possui ocultada seu real valor de uso que gera mais valor do que aquele contabilizado para seu valor de troca. Em linhas gerais, o trabalhador precisaria dedicar uma jornada sua de trabalho para garantir sua subsistência, mas ao realizar outra jornada de trabalho gera um valor que não lhe será revertido e sim apropriado por quem compra sua força de trabalho, posto que aquilo que é produzido pelo trabalhador no modo de produção capitalista não pertence a ele. Aqui encontramos o que Marx chama de “geração de mais-valor”.

Fica claro, portanto, que o texto constrói sua linha de pensamento apresentando o processo de trabalho tanto como produtor de mercadoria (produto final do trabalho) quanto consumidor de mercadoria (elementos do trabalho); e que o consumo de um específico elemento de trabalho (a força de trabalho) gera dispêndio ao ser comprada, mas no seu processo de consumo pelo capitalista gera um valor a mais do que aquele necessário para a sua compra. Dessa forma, para Marx, a geração de mais valor se opera na esfera da produção de mercadorias, as quais encaminhadas para a esfera da circulação são vendidas por um valor acima do necessário para sua produção.

Para finalizar o texto e baseado no que foi exposto, Marx expõe que objetivando a extração do mais-valor, o capitalista controlará todo o processo de trabalho a fim de que não tenha nenhum desperdício do uso da força de trabalho; e chama-nos atenção para o fato de que quanto mais alto é o custo de formação da força de trabalho mais alto será também o seu valor de troca e o mais valor produzido.


Elydiana Pontes

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - PPGE/UECE

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Algumas considerações sobre o amor

setembro 09, 2021

O amor é sempre concreto, pois não existe o amor desencarnado como uma força vital; o que existe são pessoas que se amam. Inicio este ensaio com essa afirmação para demarcar uma postura materialista diante da realidade: não existe nada no mundo humano que não seja produto das relações que os próprios seres humanos estabelecem com a natureza e a sociedade. Essa postura é fundamental para que possamos compreender as categorias espirituais como maneiras de ser da realidade.

 O que debatemos, então, é o conceito de amor. Há um livro bastante interessante de Leandro Konder, filósofo marxista brasileiro, Sobre o amor, no qual ele afirma, baseado em Marx, “O amor como uma ‘maneira universal’ que o ser humano[1] tem de se apropriar de seu ser como um ‘homem total’, agindo e refletindo, sentindo e pensando, descobrindo-se, reconhecendo-se e inventando-se” (KONDER, 2007, p. 21).

O amor visto assim é, ainda, uma manifestação do espírito humano, uma inclinação emocional, uma paixão; mas nada disso é uma potência autônoma exterior ao ser humano e que o controla. O amor não é um poder cósmico que atua de fora dos seres humanos determinando a maneira de agir no mundo, mas é um conceito que reflete ações humanas concretas e concretamente situadas. “Sou contra a discussão abstrata. O marxismo nos reconduz sempre ao concreto” (LUKÁCS, 2020, p. 34).

Concretamente, então, existem seres humanos vivendo relações concretas. O concreto aqui entendido como síntese de múltiplas determinações, ou seja, há várias formas de amar. Posso aqui parecer negar o amor, ao não querer tratá-lo de maneira abstrata, transcendente ou natural, e quase dando margem às acusações de ser o marxismo uma teoria racionalista ao extremo, mas não é disso que se trata. Marx, na Sagrada Família, ao direcionar sua crítica à Bruno Bauer e consortes, é contrário a essa perspectiva da qual este último é representante.

Afirma Marx (2011, p. 31) que a Crítica crítica[2] “precisa desembaraçar-se, antes de tudo do amor” porque “O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão”. Marx está criticando um texto de Edgar Bauer[3] no Jornal Literário Geral no qual ele faz uma crítica a um romance de Von Paalzow[4], afirmando o amor como um deus cruel que deseja possuir o ser humano por inteiro, ficando satisfeito apenas ao consumir o espírito e o corpo do ser humano, por isso “Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio” (BAUER apud MARX, 2011, p. 31).

“O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um ‘deus cruel’, seja dito, ao fazer do homem enamorado, ou seja, do amor do homem, o homem do amor, ao colocar o ‘amor’ à parte do homem como ser, autonomizando-o” (MARX, 2011, p. 31)”. Os destaques em “amor do homem” e em “homem do amor” não são aleatórios, pois destacam o caráter não especulativo da compreensão materialista de Marx acerca das paixões humanas. O amor não é um ser exterior que domina o ser humano e o dirige de acordo com uma vontade própria e potência. Na verdade, é o ser humano que dirige o amor, o amor é do ser humano, não é o amor que possui o ser humano.

Esse movimento transforma as determinações essenciais e todas as manifestações da essência humana em não-essência e em alienações da essência (MARX, 2011, p. 31), ou seja, retira da humanidade seu papel ativo, transformando uma atividade humana em algo exterior que não lhe pertence e, mais, que ganha um poder sobre a humanidade. Estamos tratando aqui do amor, mas poderíamos tratar de diversas outras atividades humanas que retiram do ser humano sua capacidade de pensar e de agir autonomamente.

Dito de outra forma, o ser humano não é objeto do amor; e o amor é objeto do ser humano, na medida em que o próprio ser humano faz do mundo exterior um objeto para si, ou seja, toma consciência desse mundo e, ao fazê-lo, toma consciência de si como um sujeito agente nesse mundo, com capacidade de transformá-lo. Nas palavras de Marx (2011, p. 32),

 

Como poderia a absoluta subjetividade, o actus puros, a crítica pura não ver no amor a sua bete noire, seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?”.  

 

O mundo dos sentidos, o espírito humano não é uma força exterior, mas uma potência real, objetiva, produto das relações reais, concretas do ser humano. Assim,

 

A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior, porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. (MARX, 2011, p. 33).

 

Segundo essa crítica de Marx à Crítica crítica, o que eles querem combater é exatamente toda experiência real, não apenas o amor, mas toda possibilidade de autoconstrução dos seres humanos, inclusive “quando não se sabe o ‘de onde’ e o ‘para onde’” (MARX, 2011, p. 34).

Até aqui, tratei de discutir o amor no mundo dos sentidos, mas não posso deixar de destacar o caráter historicamente situado do amor. Se ele é manifestação de indivíduos reais em situações concretas, a sociedade na qual os amantes vivem determinam, em alguma medida, a maneira de amar, o resultado da relação sensual entre os amantes.

Alexandra Kolontai (2011), marxista russa e membra do Partido Comunista, escreveu e militou a cerca de questões como a sexualidade feminina, a moral sexual e o amor como temas importantes a serem discutidos no processo de transição para o comunismo, com o fito de constituir uma sociedade plenamente livre.

Aqui vale colocar um parênteses para explicar que o comunismo nada tem a ver com a constituição de um paraíso na Terra, ou da eliminação de todos os conflitos humanos. A liberdade plena é uma potência para todos os seres humanos, numa sociedade comunista, porque a alienação do trabalho, instituída na exploração da maioria por uma minoria parasitária não existirá. Libertando o trabalho do jugo do capital, os seres humanos serão livres.

Isso não significa uma sociedade perfeita nem uma sociedade sem conflitos. Certamente, haverá amor não correspondido no comunismo, mas, consolidada uma nova ética humana, na qual a exploração do outro não seja norma, esse conflito não será dominado por sentimentos de ciúmes, de posse, de violência etc., já que estes são valores capitalistas. A ética é também produto da história humana.

Kolontai, então, tratou sobre isso de maneira brilhante, quando pensou sobre como seria uma nova moral sexual. Lembrando que ela estava refletindo a partir de uma situação específica, enfrentando os conflitos de uma sociedade que, vindo de um sistema ainda feudal, lutava pelo socialismo[5]. Segundo a autora (KOLONTAI, 2011, p. 33), os indivíduos da época atual veem a união livre mediante uma psicologia já deformada por uma moral falsa e doentia, quer dizer, a união livre numa sociedade regida por uma moral capitalista não pode encontrar seu pleno desenvolvimento e acaba reproduzindo as alienações de uma sociedade sexista, machista, homofóbica, racista, lgbtqia+fóbica etc.

Não quero, nem o espaço me permite, trazer exemplos singulares para minha argumentação, pois exemplos singulares podem ser encontrados para justificar qualquer teoria. Como argumentei no início deste ensaio, convido os leitores a refletirem sobre situações concretas nas quais se manifestam as alienações capitalistas em relação à união dos amantes e deixo as reflexões livres para dialogarem com meu texto, pensando como situações concretas determinam a forma de amar, principalmente se atravessadas por relações de poder, de gênero, de raça, de classe, de sexualidade.

Outro aspecto da argumentação de Kolontai muito me interesse em termos de pesquisa. Diz a autora (KOLONTAI, 2011, p. 35):

 

A solução para esse complicado problema só é possível mediante uma reeducação fundamental de nossa psicologia, reeducação esta que, por sua vez, só é possível por uma transformação de todas as bases sociais que condicionam o conteúdo moral da Humanidade.

 

A educação de que trata a autora é formal, mas é principalmente informal; é a educação de toda a sociedade que passa a viver novas relações concretas até que essas se generalizem para toda a sociedade. O processo de desenvolvimento dos sentidos humanos é também um processo educativo. Os seres humanos mudam a forma de pensar de maneira mais efetiva se mudam a maneira de agir e se a sociedade não se contrapõe às ideias.

Para a autora (2011, p. 38), concordando com Marx, o amor é uma afirmação da humanidade: “Se a humanidade não tivesse o amor, sentir-se-ia roubada, deserdada e desgraçada”. O amor para se efetivar plenamente precisa ocorrer entre indivíduos livres é preciso que a relação que Kolontai chama de camaradagem supere os atuais princípios de subordinação e de desigualdade.

Aqui não é uma simples questão de escolha. Não podemos escolher ser livres numa sociedade em que a liberdade nos é tomada. Os amantes, os diversos casais, podem – e devem – se esforçar para não reproduzir as desigualdades, mas serão sempre, de algum modo, imersos em situações de desigualdade: um casal homoafetivo não pode expressar plenamente seu amor, uma mulher por mais “empoderada”[6] que seja, em alguns lugares, precisa da autorização do companheiro para decidir sobre sua reprodução, mulheres pretas são tomadas como objetos de livre acesso enfrentam as mais complicadas situações de abuso e solidão etc. Algumas situações irão se impor de fora.

Kolontai está longe de ser pessimista quanto à potência do desejo de mudança da humanidade. Segundo a autora, os seres humanos querem ser amados, a humanidade sonda os novos ideais. Vejam os atuais movimentos pelo amor livre. A humanidade busca uma sociedade em que se possa efetivar o amor verdadeiro.

Quando se discute o conceito de amor, então, os autores trazem os elementos que puderam abstrair de relações concretas reais ou ainda da representação do amor na literatura. Assim, é possível criar diversas compreensões sobre essa paixão humana e nenhuma é mais verdadeira do que a outra, entretanto, o considero falso é dizer que o amor é uma força que nos rege, nos domina, nos sacrifica, como se fôssemos seres passivos diante da realidade.

Para finalizar, trago um poema de Carlos Drummond de Andrade, por meio do qual gostaria de tratar sobre o amor. Trata-se do poema Amor e seu tempo, lido na publicação da editora Companhia das letras, na coletânea Impurezas do branco, com poemas publicados entre 1902-1987. Segue (DRUMMOND, 2012, p. 43):

 

Amor e seu tempo

 

Amor é privilégio de maduros

estendidos na mais estreita cama,

que se torna a mais larga e mais relvosa,

roçando, em cada poro, o céu do corpo.

 

É isto, amor: o ganho não previsto,

o prêmio subterrâneo e coruscante,

leitura de relâmpago cifrado,

que, decifrado, nada mais existe

 

valendo a pena e o preço do terrestre,

salvo o minuto de ouro no relógio

minúsculo, vibrando no crepúsculo.

 

Amor é o que se aprende no limite,

depois de se arquivar toda a ciência

herdada, ouvida. Amor começa tarde.

 

Não objetivo usar o poema como pretexto para confirmar minha argumentação, afinal não é a isso que se propõe a literatura, mas destacar como esse poema me faz refletir a cerca do processo de educação dos nossos sentidos. “Amor é privilégio de maduros” me faz refletir sobre o caminho que se percorre até, para alguns privilegiados, se poder viver uma relação amorosa mais plena, mais segura, cuja relação com a pessoa amada possa ser mais íntima, mais verdadeira.

“Amor é o que aprende” remonta a ideia de educação dos sentidos espirituais humanos, como um acúmulo de sínteses das experiências vividas, nas quais é possível construir um entendimento sobre si mesmo e sobre o outro.

“Amor começa tarde”, mas não começa para todos. Amar também é um privilégio no sentido social, econômico. Há seres humanos que não viverão a experiência de amar durante sua vida e não há outra vida nem um lugar pleno de amor. o capitalismo nos tira a única oportunidade de amar plenamente e de sermos humanamente plenos. O capitalismo, de fato, é inimigo do amor.

 

Karla Costa

Doutora em Educação pela Universidade Estadual do Ceará - UECE

 

Referências

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do branco [O amor e seu tempo]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

 

KONDER, Leandro. Introdução: o que é o amor? In: KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 7-17.

 

KONDER, Leandro. Marx: os revolucionários também amam. In: KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 19-26.

 

LUKÁCS, György. Lukács: retorno ao concreto. In: LUKÁCS, György. Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas (1966-1971). Tradução Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 29-34.

 

MARX, Karl. O amor (Karl Marx). In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. p. 31-34. A sagrada família, ou, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. Tradução Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011.

    



[1] A tradição da tradução de textos filosóficos marxistas usa a expressão ser humano para significar humanidade. Obviamente, vinculado a uma tradição antropológica. Usarei, quando não for uma citação direta, entretanto, a expressão ser humano, numa tentativa de ser mais inclusiva em relação aos gêneros. Por ser humano quero indicar pessoas de todas as identidades de gênero e todas as manifestações da sexualidade, assim como de todas as etnias. A repetição dessa expressão é, então, bastante necessária.

[2] Publicações de Marx e Engels nas quais eles criticam a filosofia – ou o idealismo – especulativa de Bruno Bauer, filósofo, teólogo e historiador alemão; com base nos textos publicados por Bauer e colaboradores no Jornal Literário Geral [Allgemeine Literatur-Zeitung], editado entre 1843 e 1844.   

[3] Filósofo político alemão membro dos jovens hegelianos.

[4] Henriette von Paalzow foi uma escritora alemã de romances históricos.

[5] Não é possível ir adiante na argumentação sobre uma nova moral em Kolontai, por isso indico a leitura de A nova mulher e a moral sexual, da autora. São conhecidos os conflitos entre a mentalidade da população na Rússia soviética e as tentativas de instituição de políticas que dessem condições de liberdade para as mulheres, esses são exemplos que expressão que uma moral capitalista entra em choque com a perspectiva socialista, ainda mais com a comunista.

[6] Atrevo-me a usar essas aspas para indicar que não uso o termo empoderada de acordo com sua devida significação, mas refiro-me à ideia do senso comum de que uma mulher empoderada é aquela que consegue exercer sua liberdade. Para conhecer o debate sobre esse conceito, indico o livro de Joice Berth, O que é empoderamento? (Editoras Letramento e Justificando). Mesmo não tendo acordo com a categoria de Berth, considero que ela explica e critica a ideia do senso comum.  


A posição de Schopenhauer diante da sociedade e da história

setembro 09, 2021

Num texto anterior descrevemos como Schopenhauer tornou-se o primeiro filósofo do irracionalismo burguês e como ele foi um exemplo do escritor que vivia de rendas, fato que lhe permitiu assumir uma posição intelectual de sua livre escolha. Lukács vê nisso alguma semelhança de Schopenhauer com Voltaire que, tendo também independência financeira, pôde adotar uma postura intelectual livremente escolhida. A diferença entre ambos, segundo Lukács, reside em que Voltaire utilizou-se de tal autonomia financeira pessoal para, de forma independente, sem constrangimentos externos, tomar partido intelectual e também político frente a problemas da vida pública, da qual foi um ativo partícipe. Schopenhauer, ao contrário, possui a independência “de um homem teimoso, severamente egoísta, que se serve dela para se retirar inteiramente da vida pública e, principalmente, para, em relação a ela, se ver liberado do cumprimento de todos os deveres[1] De fato, o próprio Schopenhauer afirmou o seguinte: “Pois, ‘eu agradeço toda manhã por não ter de cuidar do Império Romano’[2]  tem sido sempre o meu lema[3], contrapondo-se a Hegel que via na atuação na vida pública, no Estado, uma superior forma de atividade humana. Este desprezo pela atividade política, pelo Estado, não impediu Schopenhauer de deixar seus bens em testamento para “o fundo constituído em Berlim para a assistência aos soldados prussianos que se tornaram inválidos nas lutas ocorridas durante as revoltas e sublevações de 1848-1849 pela manutenção e pelo restabelecimento da ordem legal na Alemanha, bem como aos familiares dos mortos naquela batalha”[4], razão por que Lukács observa que Schopenhauer não desdenhava a atuação estatal voltada para a proteção e garantia da fortuna dos ricos, inclusive da sua própria, em momentos de pânico causado por sublevações populares.

 

Schopenhauer era uma pessoa egoísta no sentido do indivíduo que “se infla até se tornar um fim em si mesmo, absoluto: sua atividade se separa da base social, volta-se para a pura interioridade, cultiva as próprias singularidades privadas e veleidades como valores absolutos.[5] Aqui temos um primeiro elemento do irracionalismo no pensamento de Schopenhauer: a desvalorização filosófica da sociedade, da sociabilidade humana. Nisto ele se difere do burguês do período de ascensão do capitalismo, cujo individualismo econômico, político e cultural constituía uma visão de mundo que conformava as necessidades e interesses da burguesia enquanto classe, com vistas à sua própria emancipação social. A esse respeito Lukács esclarece que “é algo evidente e universalmente conhecido que não pode haver ideologia burguesa na qual o egoísmo não desempenhe um papel importante. Mas enquanto a burguesia, como classe revolucionária, lutava contra o feudalismo e contra a monarquia absoluta, esse egoísmo aparecia sempre intimamente imbricado, embora de modo problemático, com os objetivos progressistas de classe voltados para uma renovação da sociedade.[6]  O individualismo de Schopenhauer é, ao contrário, o encapsulamento do indivíduo em si mesmo bem característico do estágio de decadência política da burguesia que não mais mobiliza o povo para a luta contra as classes reacionárias, contra a nobreza e a monarquia.

 

Já falamos num texto anterior que desde o seu alvorecer o capitalismo industrial provocou várias mazelas sociais. Inicialmente a intelectualidade burguesa considerou tais mazelas como perturbações passageiras e superáveis, sustentando que o capitalismo garantiria por fim a felicidade e o bem-estar da humanidade. Lukács chama esta postura intelectual de apologética direta ao capitalismo. Quando, com o desenvolvimento posterior da economia capitalista ainda no século XIX, foi ficando claro que as contradições sociais não eram transitórias, quando deixou de ser crível que tantos e tão agudos problemas sociais pudessem ser superados, a intelectualidade burguesa passou a sustentar que todos os horrores e misérias da sociedade capitalista eram características imutáveis da vida humana em geral, de todas as sociedades em todas as épocas históricas e que, portanto, não foram causadas pelo fenômeno histórico específico que foi o surgimento do capitalismo industrial. Com isso tornou-se possível a muitos intelectuais a denúncia apaixonada de tudo o que de ruim e de torpe existia no capitalismo sem que tal crítica implicasse num compromisso com uma luta efetiva pela sua superação. Aqui temos um segundo elemento do irracionalismo no pensamento de Schopenhauer: a desvalorização filosófica da história. Tal pensamento não pode deixar de conduzir ao pessimismo mais extremado, já que para ele é absurda e sem sentido uma luta política e social por uma transformação social que por princípio ele entende não ser possível. Lukács qualifica este pensamento como de apologética indireta ao capitalismo posto que, embora benéfico à manutenção do status quo, não faz o elogio direto ao sistema do capital.

 

Neste ponto vale a pena trazer a contraposição de Lukács à desvalorização da sociedade e da história por parte de Schopenhauer:

 

 O pessimismo significa, antes de tudo, uma fundamentação filosófica à falta de sentido de toda ação política, pois essa é a função social desse estágio da apologética indireta (do capitalismo). Para chegar a essa conclusão, o primeiro a se fazer é a desvalorização filosófica da sociedade e da história. Se há um desenvolvimento na natureza, então esse desenvolvimento culmina no homem, em sua cultura (logo: na sociedade), então deriva disso, necessariamente, que até mesmo o sentido da ação mais individual, do modo mais individual de conduzir a vida, precisa estar ligado de alguma forma a esse desenvolvimento da espécie humana. Por mais que essa ligação possa se apresentar distorcida idealisticamente, por mais que ela ainda se concentre em uma atividade puramente ideológica (o pensamento, a arte), é evidente que as atividades do homem, para que tenham sentido, precisam estar ligadas a sua sociabilidade e a sua historicidade (e, portanto, indiretamente, a uma concepção de progresso qualquer)[7]

 

A consequência necessária da desvalorização da ação social e política por Schopenhauer é a criação de “uma visão de mundo na qual toda historicidade (e, com ela, todo progresso, todo desenvolvimento) seja rebaixada a simples aparência, a uma ilusão na qual a sociedade seja apresentada como uma superfície que perturba a essência, que encobre o conhecimento de sua essência, que não a revela, isto é, como uma aparência (no sentido de ilusão e não apenas de manifestação).[8] A aparência de que fala Schopenhauer não é o fato do fenômeno aparecer de determinada forma como manifestação da essência que o condiciona, não é aquela aparição fenomênica imediatamente visível/perceptível pelo homem e de onde partem as ciências particulares e também a filosofia para se encontrar a essência, a lei que rege a coisa estudada, que nunca aparece imediatamente, que sempre fica oculta na mera manifestação fenomênica. Esta aparência típica de cada fenômeno é um fato real a partir do qual as ciências particulares e a filosofia buscam encontrar as leis que regem cada fenômeno estudado, as suas relações com outros fenômenos específicos e com o todo do qual cada um deles faz parte, seja a sociedade humana, seja a natureza. No entanto, a aparência de que fala Schopenhauer é algo contrário a isso pois para ele a aparência é algo inexistente, é simplesmente uma ilusão que encobre a verdadeira essência das coisas. E para ele tal aparência ilusória é justamente a sociedade e a sua historicidade que, sendo algo inexistente, não é passível de intervenção humana para fins de modificação, de transformação, do que resulta a inutilidade de qualquer atuação social ou política neste sentido. Ora, se os fatos e situações históricas, se as sociedades com seus problemas e contradições, são meras ilusões aparentes que enganam os homens e os afastam da vivência da verdadeira essência da vida humana, a eliminação de tais ilusões e o consequente alcance da plenitude existencial e do autêntico sentido da vida se tornam uma tarefa de cada pessoa individualmente, pois é certo que toda ilusão pode ser eliminada pela atividade exclusivamente mental de cada homem ou mulher; e os meios pelos quais cada pessoa individualmente pode eliminar tais ilusões e alcançar a essência das coisas são, segundo Schopenhauer, a fruição estética e a ascese religiosa. Nem seria preciso dizer que tais meios deixam incólume todo o edifício social responsável pela opressão dos trabalhadores. No próximo e último artigo sobre Schopenhauer discorreremos acerca dos traços gerais de sua ética e de sua moral decorrentes dessa sua visão de mundo que tentamos explicitar no presente texto.

 

Sávio Bastos



[1]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 178.

[2]Trecho da obra Fausto de Goethe

[3]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 178.

[4]Schopenhauer: Samtliche Werke, Reclam, Leipzig, t. IV, p. 173 s., citado por Lukács em A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 179.

[5]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 180.

[6]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 184.

[7]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 182/183.

[8]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 183.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A dialética da tecnologia em Álvaro VIeira Pinto

setembro 01, 2021

 

Introdução

 

            Pelo trabalho o homem constrói sua própria realidade. Ele é o modo próprio de ser dos homens no mundo. Nesse sentido, todo ato concreto de trabalho pressupõe uma interação prática com a natureza. Relação esta que tem como unidade fundamental a subjetividade e a objetividade, o pensamento e a realidade. A tecnologia constitui uma expressão dessa capacidade humana socialmente desenvolvida de criar o novo mediante o trabalho. Assim, com base nas ideias do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) podemos entender que os animais inferiores não são capazes de produzir, pois a natureza produz para eles o necessário para sobreviverem. De outra maneira, no homem, não há mais a influência direta da natureza. O desenvolvimento intrínseco de suas peculiaridades fisiológicas e intelectivas lhe possibilitou resolver por si mesmo as contradições com o meio natural. Com plena capacidade de refletir em forma de “ideias abstratas” e “universais” o reflexo da realidade, conseguiu exercer a direção da produção dos meios para superar as dificuldades.

            Tecnologia é uma palavra empregada com muita frequência pelas pessoas. Ela atravessa as discussões dos mais variados campos do conhecimento, da vida social e política, atendendo aos mais diversos propósitos. Sua importância é extremamente decisiva para a compreensão dos problemas da realidade contemporânea. Trata-se de uma noção essencial, contudo, seu uso é por vezes indiscriminado e confuso. Não há uma definição cabal ou inequívoca que a configure de forma absoluta. Mas de acordo com Vieira Pinto (2005) podemos classificar o termo tecnologia em quatro acepções fundamentais. O primeiro significado consiste em conceber a tecnologia como “a teoria”, “a ciência”, “o estudo”, “a discussão da técnica”, incluída aqui a noção de arte, as habilidades, as profissões e os modos de produzir algum objeto. Este conceito inicial é fundamental na interpretação dos demais, pois, a tecnologia surge aqui como uma expressão do logos da técnica.

            O segundo significado de tecnologia corresponde essencialmente à técnica. Certamente, este é o uso mais frequente que as pessoas fazem do termo. Tecnologia e técnica apresentam-se, desse modo, na circularidade do discurso habitual e coloquial desprovido de rigor. A equivalência destes significados provoca uma confusão que será a fonte de interpretações erradas de problemas sociológicos e filosóficos levantados na intenção de entender os fundamentos da tecnologia. O terceiro significado está diretamente ligado ao conceito anterior, no preciso sentido de que a  tecnologia é concebida como um conjunto de todas as técnicas de que dispõe uma determinada sociedade em qualquer fase histórica de seu desenvolvimento. Este exemplo é válido para todas as civilizações humanas no tempo e no espaço. Sua importância reside no fato de ela ser a base para aferir o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma formação social específica.

            O quarto significado de tecnologia corresponde à questão da “ideologização da técnica”, isto é, a palavra tecnologia exprime a ideologia da técnica, como uma espécie de ideologia social que contribui para impedir que os indivíduos (trabalhadores comuns) tomem consciência das suas próprias criações. É propriamente a alienação do trabalhador com relação aos objetos que ele mesmo produz; uma ideologia que dissimula a exploração, a propriedade privada dos meios de produção e as contradições da divisão social do trabalho.

            Nosso objetivo neste breve artigo é refletir criticamente sobre a dialética da tecnologia no pensamento de Álvaro Vieira Pinto, mais especificamente em sua obra O conceito de tecnologia (2005). Esse debate é de extrema importância para problematizarmos os fundamentos e os desdobramentos que o conceito acarreta na reflexão ontológica sobre modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais e culturais de vida, bem como, as características que imprimem à sociedade a partir de suas formas específicas de engendrar o seu próprio modo de ser no mundo que é seu espelho. Com efeito, as contradições do processo histórico-social profundamente marcado pelo conflito entre as classes sociais, sobretudo na sociedade capitalista, faz da tecnologia uma força produtiva decisiva para, de um lado, produzir a riqueza que será usufruída por uma minoria de privilegiados e ambiciosos e, de outro, uma maioria desprovida das condições básicas de existência material, quando não, miseráveis, esquálidos e marginalizados.

 

 

Trabalho, tecnologia e técnica

           

            A capacidade criadora do homem no processo de transformação da natureza, resulta de seu desenvolvimento histórico. É a partir do trabalho enquanto práxis originária que ele cria novas condições de existência material; com o “pôr teleológico”[1] surge a realidade social objetiva. A técnica representa um aspecto dessa realidade. Como um produto da percepção humana, ela se converte em ação concreta no mundo, objetivada em “instrumentos” e “máquinas”, submetida à transmissão cultural pelo processo de educação em sentido lato. Nessa concepção, a tecnologia configura a ciência da técnica, pois incorpora um conjunto de formulações teóricas de conteúdo epistemológico, que visam clarificar os fundamentos das relações sociais que os indivíduos estabelecem ente si como condição para organizaram sua existência concreta, modos de vida, costumes, habilidades, formas de produzir símbolos, representações, imaginário, regras de convívio, leis, linguagens, ideias, sentimentos, pensamentos, atitudes, formas de consumo etc.

            “Essa transmutação ocorreu porque a força técnica criadora povoou o mundo de objetos confeccionados. Mas os objetos surgem e se põem ao alcance do consumidor em virtude do sistema de relações sociais onde se originam e adquirem o conteúdo de valor neles reconhecidos” (PINTO, 2005, p. 224). Dessa forma, o homem somente pode acessar os “fenômenos do mundo físico” pela dinâmica da sociabilidade. Entretanto, existe outro polo dessa reflexão que precisa ser esclarecido para se compreender de maneira correta os fundamentos do conceito de tecnologia:

 

Na qualidade de fundamento, é nas relações sociais que cada indivíduo encontra a possibilidade, ou não, de ter acesso aos bens de consumo que aspira. Cria-se assim uma epistemologia da técnica que, em vez de fundá-la na relação do homem com a natureza, definidora do aspecto essencial, variando unicamente segundo as condições determinadas pelo progresso científico, funda-as nas relações dos homens uns com os outros, que são acidentais, enquanto formações históricas sucessivas […]. O homem, que por essência está destinado a procurar a natureza, para, sobre ela, se constituir a si mesmo, encontra em lugar dela cada vez mais a obra de outros homens. A perniciosidade desta situação reside não no fato em si mesmo, mas em não se saber interpretá-lo dialeticamente, no curso de um processo objetivo em que a realidade do ser humano se constitui em função da mobilidade dos suportes históricos (PINTO, 2005, p. 225).

 

            A crítica de Álvaro Vieira Pinto tem um alvo certo. Ele dirige seus argumentos contra os apologistas da “civilização tecnológica” que asseguram (ideologicamente) o poder supremo do homem no desenvolvimento da tecnologia em face dos interesses de grupos minoritários que detém o poder econômico e a hegemonia política sobre o conjunto da sociedade. Nessa perspectiva a tecnologia se converte em ideologia para justificar a dominação de classe. Todavia, a autêntica consciência crítica é aquela que concebe a relação entre sociedade, natureza e os homens entre si, como uma unidade dialética, apontando para as reais necessidades que impulsionam os indivíduos à produzirem o seu próprio mundo. Para o filósofo, a verdadeira consciência crítica só pode ser “aquela que toma consciência de seus determinantes no processo histórico da realidade, sempre porém apreendendo o processo em totalidade e não considerando determinantes os fatores correspondentes aos interesses individuais privados” (PINTO, 2005, p. 226).

            Cabe aqui um breve dialogo com Octavio Ianni (2019) acerca da “Ditadura do grande capital” no Brasil a partir de 1964, para compreendermos também como o poder político se converte numa técnica (“um procedimento operatório”) que:

Por dentro da doutrina de ‘segurança e desenvolvimento’ a ditadura acionou e aperfeiçoou o planejamento e a violência estatais, como técnicas econômicas e políticas, como forças produtivas complementares. Por dentro da economia política governamental, desenvolveu-se um Estado forte e abrangente, ativo e repressivo, a serviço da grande burguesia financeira, da produção da mais-valia regular e extraordinária (IANNI, 2019, p. 274).

            Ou seja, o planejamento econômico da ditadura brasileira, visou sobretudo garantir as condições favoráveis para a plena acumulação de capital em larga escala. Nestas circunstâncias, as classes dominadas, principalmente, operários e camponeses, foram exploradas ao extremo, o que resultou concretamente no aumento de poder e privilégios dos ricos em detrimento do aumento da pobreza da maior parte da população. O contexto da Ditadura Militar instalada no Brasil, se configurou como uma “longa noite de trevas”. A prisão, o sequestro, o desaparecimento e o assassinato, junto ao arrojo salarial, a ingerência governamental nos sindicatos urbanos e rurais, a abolição das ligas camponesas, a manipulação do boato e do medo, constituíram técnicas de poder que garantiram a hegemonia e ampla reprodução do capital financeiro e monopolista/imperialista

            Para Vieira Pinto (2005) a tecnologia pode se constituir num instrumento de dominação. A desigualdade na distribuição geográfica dos recursos da natureza representa um fator determinante nesse sentido. Certos povos aproveitando-se de circunstâncias materiais e econômicas favoráveis, apropriadas pela consciência de seus segmentos dirigentes, valeram-se de oportunidades abertas para empreender lutas de dominação e subjugação de outros povos com base na conquista de vastos territórios de influência. Foi desse modo que “surgiram ao longo dos tempos os impérios de cada época, dos quais a reconstituição histórica não passa de velado necrológio. Nada há de transcendental, de fatal, de ‘destino’, nem muito menos de ‘anímico’” nesse processo (PINTO, 2005, p. 258).

            As forças que impulsionaram as primeiras tribos conquistadoras, ainda hoje compelem as grandes potências designadas como imperialistas à “conquista” do mundo. Se foram as condições materiais que “permitiram a um grupo tribal sobrepujar, em luta às vezes incerta, os adversários, chegando a subjugá-los, foi possível, em dadas circunstâncias, que esse processo se estendesse a outros grupos étnicos, submetendo-os ao mesmo centro de comando político” (PINTO, 2005, p. 258). Esse processo de expansão imperialista resulta no avanço de técnicas de subjugação política, em processos de exaustão de recursos, meios de transportes, guerras, contatos entre povos, de modo geral, “o progresso do sistema imperialista” enquanto uma dominação técnica em nível global.

            As nações que estendem seus poderes sobre possessões territoriais de outros povos na forma de regime de dominação, necessitam aperfeiçoar constantemente seus mecanismos de controle. Para tanto, desenvolvem tecnologias de exploração da natureza e da força de trabalho destes povos subjugados, pois sem isso, ficam vulneráveis ao ocaso. O florescimento da tecnologia nessas circunstâncias favorece a acumulação de riquezas, o avanço significativo da ciência, bem como, os instrumentos de violência. Assim, as condições de desenvolvimento e consolidação das estruturas imperialistas repousam na necessidade incontornável de expansão dos processos de espoliação cada vez mais intensos da sanha de ação dominadora.

            O “pacto colonial”, por exemplo, imposto pelas nações mercantilistas a partir do século XVI ao redor do “novo mundo”, foi uma expressão bem característica da forma pela qual a burguesia em ascensão se arvorou violentamente da riqueza dos povos autóctones sob o pretexto de expandir o progresso em escala mundial com “o signo da cruz nas empunhaduras das espadas”. Tal desenvolvimento histórico resultou na expansão do sistema capitalista como uma nova fase da “evolução” humana. Entretanto, a violência inerente ao processo de acumulação originária do capital, produziu um mundo eivado de contradições e injustiças históricas profundas, ou, no dizer de Eduardo Galeano (2016) “a pobreza do homem como resultado da riqueza da terra”. A colonização do “novo mundo”[2], é conveniente nunca esquecer, foi uma brutal espoliação das riquezas naturais e humanas cometidas contra os povos originários. Com base no uso de sofisticadas tecnologias de dominação, exploração e aculturação (o ferro e a pólvora, por exemplo), foi perpetrado um dos maiores genocídios da história, tudo em nome do anseio pelo ouro e a conversão das almas.

            O fator econômico é sempre o motivo principal que impulsiona as nações imperialistas na dominação de outros povos. A posse absoluta dos instrumentos tecnológicos constituiu, invariavelmente ao longo da histórica, o lugar central do poder destas nações para sua expansão. O anseio irrefreável por recursos naturais e força de trabalho humana subjugada, foi e é, a finalidade maior da garantia do prolongamento das estruturas de poder dos impérios. Muito embora, o processo social objetivo de acumulação da riqueza tenha produzido circunstâncias históricas contraditórias:

A situação de preponderância da tecnologia de expansão quantitativa era contudo contraditória, porque ao aumentar a força de trabalho escravo subjugada com o propósito de melhorar a técnica, a saber, dar-lhe maior rendimento, o dominador engenhava a mantinha um freio que exatamente iria impedir por longos séculos a expansão da técnica produtiva mais favorável e rendosa, a de natureza qualitativa (PINTO, 2005, p. 261).

 

            Esse processo histórico nos explica a razão pela qual nos regimes escravista, feudal e capitalista (em seus primórdios) o surgimento de uma produção subsumida a um processo tecnológico de acelerada mudança ficou absolutamente atrasado. Ou seja, a precariedade das forças produtivas, o baixo aprimoramento técnico, as péssimas condições de trabalho, favoreceram a permanência de um esquema essencialmente limitado dos processos tecnológicos qualitativos, sobretudo no caso do regime escravista antigo. Mas convém assinalar, que técnica como manipulação de dados da realidade mediante a destreza do homem a partir de seu processo de hominização, foi resultado exclusivamente de suas próprias capacidades criadoras condicionadas pelo trabalho.

            Lukács em relação a essa questão destaca que foi mérito de Engels ter colocado o trabalho como o centro do processo de “humanização do homem”. A investigação que ele desenvolveu acerca das condições biológicas desempenhadas pelo novo papel que o trabalho adquire com o salto do animal ao homem é autenticamente reveladora. A função biológica da mão tem uma função decisiva já nos macacos que a usam “principalmente para pegar o alimento e segurá-lo com firmeza” e para se proteger dos ataques inimigos eles também pegam paus e pedras. De acordo com Lukács:

 

Engels observa, no entanto [...] que apesar de tais preparativos, aqui existe um salto, por meio do qual já não nos encontramos dentro da esfera da vida orgânica, mas em uma superação de princípio, qualitativa, ontológica. Nesse sentido, comparando a mão do macaco com aquela do homem, diz: “O número das articulações e dos músculos e a sua disposição geral são os mesmos nos dois casos, mas a mão do selvagem mais atrasado pode realizar centenas de operações que nenhum macaco pode imitar. Nenhuma mão de macaco jamais produziu a mais rústica faca de pedra” (LUKÁCS apud ENGELS, 2013, p. 45, aspas no original).

 

            O trabalho enquanto um metabolismo entre a sociedade e a natureza possibilitou que os indivíduos desenvolvessem suas capacidades cognitivas, operativas, habilidades, modos de fazer e a consciência do gênero como resultado do afastamento das barreiras naturais, consolidado pela reprodução social enquanto uma totalidade de relações, conexões, interações e processualidade dinâmica. Assim, a constituição da legalidade objetiva da realidade social é um produto da realização de ações singulares que colocam em movimento uma série de cadeias causais sociais em que estão circunscritas todas as dimensões da sociabilidade humana. A tecnologia, que é uma consequência social do desdobramento do trabalho, é uma componente inerente às diferentes formações sociais que se desenvolveram ao longo do tempo.

            Um problema bastante pertinente sustentado por Vieira Pinto (2005, p. 264), é o fato de que os centros imperialistas, ao impôr aos povos subjugados o elemento tecnológico como fator de exploração da empresa colonial não contavam que esse processo se transformaria no “veneno destruidor do sistema inteiro”. Pois:

Ao ter de partilhar, embora na proporção mínima possível e nas tarefas mais simples s de menores reclamos intelectuais, a tecnologia, de que era titular, com os aborígenes, de quem só queria o trabalho pesado, a boca muda e o mercado comprador, na crença de que isso significava cabeça vazia, o patrão imperial desencadeou involuntariamente um processo de mudança qualitativa, no memento apenas de início, porém do qual se pode desde já predizer ter caráter irreversível (PINTO, 2005, p. 264).

 

            Para Álvaro Veira Pinto essa situação histórica representa um momento importante de tomada de consciência por parte dos povos subjugados, no sentido de que eles, começam a compreender a lógica de funcionamento da tecnologia do dominante. Isso, decerto, configura uma ameaça para os dirigentes dos centros de poder. Por isso a premência do “projeto da metrópole visando a tomar urgentes medidas para fabricar e regular a consciência resultante da posse da tecnologia pelas nações espoliadas” (PINTO, 2005, p. 264).

            O poder dos centros imperiais não permitem que a consciência para si do povo subjugado aflore como um instrumento de independência e soberania. A apropriação das tecnologias que visam criar as condições para o pleno desenvolvimento de uma nação, ou são conquistas pelas lutas sociais, ou qualquer forma de concessão por parte da elite dominante será uma migalha vergonhosa. Uma consciência nacional que aponte para horizontes de autonomia e relevância cultural, não pode se submeter às condições impostas pela potência hegemônica sem contestar as razões pelas quais estão assentadas essa circunstância. É necessário passar da admiração alienante para a indagação crítica. Não se pode deixar que a tecnologia se torne um instrumento com o qual o dominador imporá seus valores, ideias, visões de mundo e modelos de vida para o outro das “massas subjugadas”.

 

 

Ideologia e conhecimento: as formas de apropriação da tecnologia

           

            O domínio da tecnologia por parte das grandes potências hegemônicas é, frequentemente, justificada em termos ideológicos, da seguinte maneira: “[…] uma, a de que a tecnologia consubstancia um bem a ser adquirido pelo país atrasado, pagando caro por ele, se quiser progredir; outra, a de que a tecnologia é um produto exclusivo da região dominante, e só aí pode ter origem” (PINTO, 2005, p. 266). A justificação ideológica da dominação tecnológica cumpre um papel decisivo no processo de subjugação dos povos. Ela serve para manipular a consciência social no sentido de legitimar um consenso em torno do monopólio dos poderes imperialistas como sendo algo que resulta, inexoravelmente, do progresso das nações civilizadas que tem a missão histórica de difundir pelo mundo suas conquistas e avanços.

            Para Vieira Pinto, esse exclusivismo tecnológico propalado pelos centros hegemônicos não passa de uma retórica do engodo, pois a tecnologia constitui um “patrimônio da humanidade”. Uma razão plausível para sustentar isso, segundo o filósofo brasileiro, é que tecnologia não é um produto cultural absolutamente originado nos centros mais avançados. Os argumentos que validam a ideia de que a tecnologia é um produto exclusivo das “metrópoles”, suscitam o preconceito ligado a suposição infundada da ausência de capacidade técnica dos povos “menos evoluídos” ou “primitivos”, haja vista que “nenhuma sociedade de seres suficientemente hominizados poderia existir sem técnicas correspondentes ao estado de crescimento de suas forças produtivas. Logo, quando se diz que os povos subdesenvolvidos carecem de tecnologia” produz-se a princípio uma falsidade (PINTO, 2005, p. 267).

            O desenvolvimento das capacidades técnicas de um povo é sempre resultado de um nível de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. E isso está diretamente relacionado às suas formas específicas de socialização dos produtos do trabalho em seus graus mais diversos. O uso tecnológico de certos instrumentos ou processos de organização e produção da vida social, constitui um apanágio de qualquer povo, etnia, comunidade ou nação. Os níveis de habilidade no manejo de tecnologias, resultam da capacidade inerente do homem atuar sobre a natureza a partir de “condições produtivas existentes”.

            O “surto tecnológico” observado em certas regiões mais ricas do mundo em todas as épocas não se deve ao uma “lei da história”, mas a da desigualdade de poder econômico e da difusão cultural na sociedade que instaura as condições concretas dos desníveis tecnológicos. Ocorre que as classes mais abastadas que controlam a totalidade das relações sociais, têm o domínio efetivo do acesso aos “bens do saber e da produção”, que, de modo geral, é um “patrimônio da civilização”. O acesso a esses bens constitui um direito universal dos povos.

            “A ideologia do colonialismo usa neste particular do ardil de revestir com as insígnias de lei da história o que não passa de simples contingência de fato” (PINTO, 2005, p. 268). Com efeito, a consciência do dominador recorre aos artifícios da violência e da ignorância, em relação às descobertas científicas operadas pelas nações menos avançadas, para impor seu controle sobre os recursos naturais e humanos onde seus potentados se instalam. Nesse sentido, um outro recurso de grande poder usado pelos centros dominantes “está em rebaixar ao plano do folclore a invenção artística, por exemplo a obra de artesanato dos povos colonizados, valorizando-a pelo aspecto do exotismo” (Idem).

            A espoliação material provocada pela subjugação dos povos originários constituiu um dos principais mecanismos de conquista usado pelas nações dominantes. As classes abastadas das metrópoles (As investidas colonizadoras de Portugal e Espanha a partir do século XVI em por exemplo) se arvoraram das riquezas dos povos dominados, utilizando-se dos mais variados instrumentos de opressão. Exaltando seus valores como nações civilizadas, mas dissimulando a barbárie cometida em nome do progresso, estas nações avançadas, suplantaram a cultura autóctone cravando em seu solo a cruz e a propriedade privada dos meios de produção como uma condição inexorável da acumulação originária da empresa capitalista.

            O uso da tecnologia no processo de expansão dos mercados e, subsequentemente, da indústria moderna estabeleceu na prática - em termos de dominação, diferenciação e hierarquias -  uma ideologia da superioridade de nações sobre outras, sobretudo no que diz respeito às capacidades técnicas específicas de cada povo. Entretanto

A arte e os produtos de artesanato que os povos pobres elaboram não exigem menos tirocínio tecnológico, menos capacidade de pensamento racional do que as portentosas invenções científicas da ciência moderna e suas aplicações industriais. A diferença consiste em serem feitos em outra base, exígua de conhecimentos materiais, conforme era de se esperar, pois o saber científico e a posse das máquinas fabris por definição foram negados aos povos dependentes, ou lhe são concedidos em doses racionadas, devidamente empacotados num envoltório ideológico, ocultador da própria situação na qual vivem, ao mesmo tempo não os deixando escapar ao controle de um desenvolvimento autorizado (PINTO, 2005, p. 268).

           

            O colonizador com seus privilégios materializados no poder econômico e cultural, seguramente, representa um obstáculo ao pleno desenvolvimento das condições de vida social da maioria dos povos “atrasados”. O domínio das técnicas, enquanto uma forma da “ação produtiva humana”, é, por necessidade, um patrimônio do gênero humano. Nesse sentido, a principal função da técnica consiste em estabelecer vínculos entre os homens no processo de realização das atividades criativas comuns, pois ela

Constitui um bem humano que, por definição, não conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque o único proprietário dele é a humanidade inteira. A técnica, identificada à ação do homem sobre o mundo, não discrimina quais indivíduos dela se devem apossar, com exclusão dos outros. Sendo o modo pelo qual se realiza e se mede o avanço do processo de humanização, diz respeito à totalidade da espécie. Só por uma alienação historicamente real e milenar, porém em essência transitória e explicável, se conserva no estado de apanágio de alguns grupos sociais, em detrimento de outros (PINTO, 2005, p. 269).

 

            A desigualdade social é um corolário do movimento da história como uma expressão do antagonismo de classes. As diferentes formações socioeconômicas que se desenvolveram ao longo do tempo forjaram mecanismos de organização com base no controle e na dominação de uma classe sobre outras. A dominação infligida pelas classes hegemônicas, constitui um processo que dificulta, sobremaneira, a criação tecnológica dos povos subjugados. Os desníveis sociais, econômicos, culturais e políticos produzem condições de inferioridade e superioridade na base dos procedimentos técnicos e tecnológicos que refletem as modalidades sociais do trabalho, o que, objetivamente, resulta em diferenças entre os “graus de humanização” em relação ao conjunto da humanidade.

            A espoliação imposta por segmentos minoritários poderosos ao conjunto das massas trabalhadoras pelo mundo, constituiu um processo que engendrou concretamente uma espécie de atraso endógeno nos povos que foram colonizados. Deixando estes à merce de condições extremamente inferiores no que diz respeito ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Tal realidade histórica, decerto, contribuiu para a obstaculização do pleno avanço da “essência social dos homens” em seu território, região ou comunidade. Com efeito, a difusão das tecnologias superiores em escala global, cumpre um claro objetivo de maximização financeira. Contudo,

Deparamo-nos aqui com uma contradição entre a natureza do fato tecnológico e os interesses dos grupos regentes que o exploram. É imperioso cada vez mais incorporar as massas do chamado “proletariado externo” a formas de trabalho relativamente superiores na escala tecnológica, sob pena de não se criar um razoável mercado interno no país dependente para consumir os produtos diretamente exportados as metrópoles ou indiretamente exportados, isto é, fabricados no local por empresas estrangeiras, que arrecadam, sob mil disfarces financeiros, o tributo da servidão econômica do vassalo subdesenvolvido (PINTO, 2005, p. 269-270, aspas no original).

 

            A tecnologia avançada é o principal fator de desenvolvimento das nações capitalistas centrais. Muito embora, ela se torne também obsoleta em virtude da “lei do progresso” sempre contínuo do conhecimento científico, que ao acumular saber em escala mundial cria necessidades cada vez mais abrangentes e sofisticados processos de inovação produtiva, que contraditoriamente vão colocando em desuso os procedimentos tecnológicos antigos. No caso dos países dependentes que não conseguem acompanhar o pleno desenvolvimento dos países centrais, ficam sempre na esteira do atraso, da desigualdade de oportunidades e baixo nível de produtividade socioeconômica.

Em consequência, porém, das relações espoliativas entre os povos verifica-se a desigual distribuição da ciência e da tecnologia nos diversos grupos nacionais. A região pobre encontra-se prejudicada em razão de um duplo mecanismo: está obrigada, pela pressão das minorias internas dominantes, desejando para si alto padrão de vida, a conceber parte substancial de recursos, sempre minguados, à aquisição dos produtos acabados da tecnologia adiantada exterior […]; em segundo lugar, com isso desfalca-se interiormente dos meios que deveriam ser usados para sua verdadeira ascensão cultural e para a instalação de novas empresas destinadas a levantar o nível econômico (PINTO, 2005, p. 279).

 

            Podemos compreender assim, em geral, a razão pela qual os países dependentes estão condenados à estagnação e até mesmo ao retrocesso. Essa circunstância histórica promove uma distância considerável entre países ricos e países pobres. O Brasil, por exemplo, é um país de enormes riquezas naturais e capacidades humanas criadoras em grande medida, no entanto, apesar de suas dimensões continentais e pleno potencial, é uma nação subdesenvolvida, injusta, profundamente desigual, assolada pelo receituário neoliberal aplicado aqui pelas forças do mercado que controlam o estado e manipulam significativa parcela da sociedade civil.

            Os centros dominantes controlam os recursos, os meios estratégicos, os mecanismos de produção da riqueza, a mídia de massa, as estruturas jurídicas e, sobretudo, os investimentos em educação. Estes centros de poder, distribuídos de acordo com a nova divisão internacional do trabalho, estendem seus tentáculos financeiros em escala planetária. Pois “sabem que precisam mantê-las em constante expansão, porque esta é a condição da possibilidade de conservar a dominação econômica, e portanto a fase histórica superior onde estão situados” (PINTO, 2005, p. 279). É nesse quadro que as elites dirigentes dos países subdesenvolvidos cumprem o papel de conservar as estruturas de subjugação em face dos interesses de dominação externos. A tecnologia nesse sentido, se torna um instrumento de poder econômico, político e ideológico de consolidação dos países de capitalismo avançado.

 

 

Considerações finais

           

            A tecnologia para Álvaro Vieira Pinto consiste num processo inerente à atividade humana criadora. Seus fundamentos estão ancorados na própria forma de socialização dos indivíduos em cada época histórica. O que implica afirmar que só o ser humano plenamente desenvolvido é capaz de elaborar os meios e as condições de reprodução de sua existência material. Neste sentido, tecnologia e técnica tem muito em comum. De modo geral, compreende-se a tecnologia enquanto o conjunto de técnicas que dispõe uma determinada sociedade. Não há civilização, sociedade, nação ou povo que não tenha desenvolvido suas capacidades tecnológicas ou técnicas. Assim, a ideia de que hoje vivemos numa “era tecnológica”, não passa de uma ideologização do conceito de tecnologia, pois a história da humanidade é marcada, fundamentalmente, pela capacidade criadora dos indivíduos de produzirem os bens necessários a sua subsistência.

            A cultura, o poder, as formas concretas de trabalho, a moral e arte de um povo, constituem a maneira pela qual cada sociedade confere valor aos seus processos de existência. A tecnologia cumpre uma função decisiva nesse processo. Ela reflete o desenvolvimento objetivo de uma dada formação social. Contudo, ela também constitui uma ferramenta de dominação e opressão de classe. As nações mais avançadas no decurso da história, estabeleceram como fator de dominação sobre outros povos, a tecnologia enquanto mecanismo de controle, subjugação e diferenciação em escala social de privilégios, hegemonia, acumulação e expansão de suas riquezas.

            A tecnologia desenvolvida pelos diferentes grupos humanos ao longo do tempo é uma expressão de demandas sociais que abrangem os desdobramentos das mudanças estruturais que ocorrem no interior de cada formação socieconômica. Toda tecnologia expressa, portanto, um aspecto do desenvolvimento histórico da humanidade. Esse desenvolvimento é baseado numa dialética que incorpora o contínuo movimento de substituição do velho pelo novo. O conhecimento historicamente acumulado pelos seres humanos, possibilitou objetivamente que cada sociedade produzisse novas maneiras de melhorar sua vida social mediante o uso progressivo de elementos, procedimentos, métodos, habilidades e técnicas ligadas ao saber culturalmente empregado na elaboração de bens necessários a sua reprodução enquanto um gênero consciente de si. Se são os homens que criam a tecnologia a partir de seus saberes acumulados, então isso significa que a tecnologia é um patrimônio da humanidade; uma conquista da capacidade humanamente criadora.

            As diferentes formações sociais deram uma resposta específica aos seus problemas de sobrevivência. Desse modo, todas as transformações advindas da capacidade humana de transformar a natureza através da atividade do trabalho, resultou na introdução de novas formas de produção social, como uso de energias, máquinas, construções, equipamentos, ferramentas, habilidades e conhecimento científico avançado em seu tempo próprio.

            O que a dialética da tecnologia em Álvaro Vieira Pinto nos ensina, é que a diferença de graus de desenvolvimento tecnológico ao longo da história humana reflete profundas desigualdades nos estágios do processo histórico global das diferentes sociedades. A tecnologia é mediação para o progresso social. Os países subdesenvolvidos, dependentes e socialmente injustos, devem tomar consciência de que precisam fazer uso de suas capacidades criadoras, suas lutas e cultura para confrontar “as velhas estruturas de relações sociais” baseada na exploração do trabalho e na propriedade privada. O país dependente, no nosso caso o Brasil, não pode mais viver sob os auspícios da tecnologia inventada pelos centros avançados - que se legitimam como a vanguarda do progresso – pois a luta pela soberania é uma condição imprescindível de conquista do nosso próprio avanço tecnológico. Está mais do que na hora de suplantar a ideia de que um país “cria e pode exportar” e “o outro não cria e tem de importar”.

            

Antonio Marcondes

GPOSSHE/UECE/GEM/UFC

 

Referências

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016

IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. Vol. II. São Paulo: Boitempo, 2013

PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005



[1] O trabalho como pôr teleológico pressupõe que o homem antes de realizar as objetivações sociais, projeta, antecipadamente, de forma ideal na sua consciência, os fins a serem alcançados. Mas, adverte Lukács, não se pode exacerbar de “maneira esquemática” esse aspecto “de modelo do trabalho” em relação às ações humanas em sociedade. Esse metabolismo do homem com a natureza é o modelo originário para se compreender outros “pores socioteleológicos”. Porquanto, o simples fato “de que no trabalho se realiza um pôr teleológico é uma experiência elementar da vida cotidiana de todos os homens, tornando-se isso um componente imprescindível de qualquer pensamento, desde os discursos cotidianos até a economia e a filosofia” (LUKÁCS, 2013, p. 47).

[2]Conforme destaca Eduardo Galeano: “O Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, permitiu a Portugal a ocupação de territórios americanos além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Souza fundou as primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses. Já então os espanhóis, cruzando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado bastante no processo da exploração e da conquista. Em 1513, o Pacífico resplandecia aos olhos de Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que uniram pela primeira vez os dois oceanos e, ao dar uma volta completa no mundo, constataram que ele era redondo; três anos antes tinham partido da ilha de Cuba, na direção do México, as dez naus de Hernán Cortez, e em 1523 Pedro Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco Pizarro entrou triunfalmente em Cuzco em 1533, apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam no Chaco e revelavam o Novo Mundo desde o Peru até a foz do rio mais caudaloso do planeta” (GALEANO, 2016, p. 35).

 

Foto: Diego Rivera, Mural da Indústria Automotriz