quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A visão de mundo e a decorrente ética de Schopenhauer

outubro 28, 2021

Para Schopenhauer, aquilo que denominamos realidade (o mundo externo a nós percebido por nossos sentidos) é idêntico à representação que temos dessa mesma realidade, à nossa apreensão subjetiva dela; e tal representação é sempre determinada por nossa vontade. Para ele, toda coisa, todo ser externo ao indivíduo, somente existe enquanto ser percebido por cada indivíduo, ou seja, depende da percepção subjetivo-individual para existir. Por isso Lukács conclui que “para Schopenhauer – assim como, depois, para Mach, Avenarius, Poincaré etc. - o mundo externo não é, de modo algum, uma objetividade independente da consciência individual.[1]

Na verdade, Schopenhauer não nega de modo absoluto a existência da realidade externa a cada indivíduo, mas ele a interpreta como sendo um produto da vontade humana inflada de modo místico-irracional: é a vontade individual que dá origem ao objeto externo ao indivíduo, é ela que gera a objetividade e consequente visibilidade das coisas que compõem o mundo em que vivemos. E esta objetividade, esta visibilidade das coisas, Schopenhauer chama de “Representação”, que compreende portanto o mundo dos fenômenos que nós percebemos e tentamos explicar a partir das formas racionais do conhecimento, a saber, as ciências particulares e a filosofia baseada na razão. Mas, para Schopenhauer, as formas racionais do conhecimento, que só conseguem explicar esse mundo da Representação, não são capazes de explicar a essência das coisas justamente pelo fato de que tal essência é interna ao homem, tem caráter subjetivo, pertence e se identifica com o reino da Vontade humana. Tal essência interna ao homem (subjetiva) não possui espacialidade e temporalidade, sendo, portanto, a-histórica. E é justamente essa essência a-histórica que dá origem e que fundamenta todo o mundo exterior ao homem: Schopenhauer defende que, para explicar tal essência que, repita-se, não existe no espaço e no tempo, seria absurdo e contraproducente valer-se da razão que, segundo ele, só serve como instrumento de descoberta e elucidação dos fenômenos superficiais e inessenciais do mundo objetivo da Representação. Para ele, a razão somente serve como instrumento a serviço das ciências particulares para fins de investigação e descoberta de leis que, a rigor, nada explicam acerca da verdadeira essência do mundo, já que esta, por ser interna ao homem (subjetiva), somente pode ser elucidada através de um instrumento subjetivo: a intuição pura e simples (veja-se aqui que fica desde já excluída a possibilidade, no sistema de Schopenhauer, de verificação da validade de suas descobertas no mundo real das coisas realmente existentes, verificação esta que não pode prescindir da natureza espaço-temporal das coisas, ou seja, de sua historicidade).

De fato, para Schopenhauer, o conhecimento racional serve apenas como um instrumento, um meio para se atingir o conhecimento de fenômenos superficiais e inessenciais cuja elucidação, no entanto, ele entende indispensável para a conservação do indivíduo e da espécie humana. Exemplificando: a descoberta pelo homem da lei da natureza que explique como o guano atua na fertilização do solo serve apenas para incrementar a produção agrícola e de nenhuma forma contribui para o esclarecimento da essência deste fenômeno natural, pois tal fato da natureza tem como fundamento último, como tudo no mundo, a Vontade humana que, como vimos acima, só pode ser explicitada mediante o uso da intuição (e não pela razão). Aqui se revela de forma nítida o caráter irracional do pensamento de Schopenhauer.

Assim, para este filósofo, a essência das coisas é sempre interna a cada indivíduo, tem uma natureza subjetiva. O mundo exterior aos indivíduos tem a característica da superficialidade, da inessencialidade; o mundo exterior é o mundo da forma, não do conteúdo. Isto fica bem claro quando Schopenhauer afirma que “só os processos internos, enquanto concernem à vontade, possuem verdadeira realidade e são eventos reais, pois a vontade é a única coisa-em-si. Em todo microcosmo se encontra o macrocosmo inteiro, e este não contém nada mais que aquele. A multiplicidade é fenômeno, e os processos externos são meras configurações do mundo fenomênico, e por isso não têm, imediatamente, nem realidade nem significado, mas só os possuem de modo mediado, em sua relação com a vontade dos indivíduos[2]

Ora, se para Schopenhauer, como vimos na transcrição acima, os nexos e as leis do mundo exterior a cada indivíduo só têm existência real em sua relação com a vontade e, portanto, com a subjetividade de cada indivíduo, é certo que Schopenhauer destrói, assim, a objetividade das coisas que existem independentemente da consciência humana, assim como nega que as leis que regem tais coisas sejam igualmente objetivas, já que ele torna a existência do mundo externo das coisas reais totalmente dependente da pura vontade humana. Aqui se pode verificar a natureza retrógrada e reacionária da filosofia schopenhaueriana, pois ela vai no sentido contrário ao longo caminho percorrido pelo homem em sua busca pelo conhecimento real do mundo: em sua investigação, o cientista não pode ser guiado por seus preconceitos ou anseios, por exemplo, pela vontade de que suas descobertas científicas confirmem a sua crença religiosa. Para Schopenhauer, o conhecimento real do mundo depende essencialmente da vontade humana, ou, antes, essa vontade é a própria essência do mundo.

E é por isso que Schopenhauer nega que o conhecimento científico tenha qualquer repercussão ou influência na filosofia. E é, também, por isso que as dimensões da realidade objetiva, tais como espaço, tempo e causalidade (trabalhadas e utilizadas na ciência), tampouco tenham uma influência real em sua filosofia. Dessa forma a filosofia de Schopenhauer constitui um fundamento de toda espécie de superstição: anota Lukács que Schopenhauer afirma que a premonição perde “ao menos o seu caráter de absoluta incompreensibilidade, se considerarmos que, o que eu já disse tantas vezes, o mundo objetivo é um simples fenômeno cerebral: porque a ordem e a legalidade fundada sobre espaço, tempo e causalidade (enquanto função cerebral) é, em certo sentido, colocada de lado na premonição sonâmbula”[3] e que “como o tempo não é uma determinação da verdadeira essência das coisas, então, em relação a estas, o antes e o depois não têm qualquer importância, sendo que um evento deve ser conhecido mesmo antes de acontecer, não só depois”[4], de forma que ele justifica, por exemplo, a possibilidade de se exercer a arte da adivinhação e de se fazer profecias através do sonho, da premonição sonâmbula ou de outro modo qualquer, como forma ou caminho “para liberar o conhecimento da condição do tempo”, sendo que “se deve necessariamente admitir como possível também uma ação real dos mortos sobre o mundo dos viventes”. Schopenhauer, assim, antecipa uma tendência que só seria amplamente difundida na segunda metade do século XIX, qual seja, a de se desprezar o conhecimento científico dos fenômenos reais da natureza em benefício da credulidade nos juízos feitos através de meios místicos e dos “fenômenos ocultos”.

Deve ser também salientado que a subjetivação do tempo, do espaço e da causalidade operada por Schopenhauer, que os considera existentes apenas “enquanto função cerebral”, conforme visto no parágrafo anterior, serve-lhe para negar a historicidade da natureza e do mundo dos homens. Salienta Lukács que “Schopenhauer esboça uma imagem do mundo na qual nem o cosmos dos fenômenos nem o cosmos das coisas-em-si conhece um transformar-se, um desenvolvimento, uma história. É verdade que o primeiro consiste em uma mudança ininterrupta, em um aparente devir e perecer… Mas esse devir e perecer é, pela sua essência, algo estático: um caleidoscópio no qual as combinações sempre cambiantes dos mesmos componentes produzem, para o observador imediato, desavisado, a ilusão de uma mudança permanente. E aquele que possui uma verdadeira consciência filosófica deve necessariamente perceber que, atrás desse véu colorido de fenômenos superficiais em permanente alternância, está oculto um mundo sem espaço, tempo e causalidade, em relação ao qual seria sem sentido falar de história, desenvolvimento ou até de progresso. Esse iniciado, diz Schopenhauer, ‘não mais acreditará, como a maioria das pessoas, que o tempo cria algo efetivamente novo e significativo; que, através do tempo, ou nele, algo absolutamente real alcança a existência[...]”.[5]

Lukács mostra, assim, que Schopenhauer nega a existência da história tanto da natureza quanto do homem. Negando o desenvolvimento histórico do mundo dos homens ele nega igualmente a possibilidade e a utilidade de se investigar as direções possíveis desse desenvolvimento no futuro com vistas a uma atuação humana consciente que melhore as condições de existência da humanidade. Por isso, para Schopenhauer, não há diferença entre o pequeno (o indivíduo) e o grande (o gênero humano, a humanidade), entre fatos sem maior relevância histórica e aqueles decisivos para o destino da humanidade. Para ele, conforme salienta Lukács, “real é apenas o indivíduo, o gênero humano é apenas uma abstração vazia”[6]. Na falta de um desenvolvimento do mundo dos homens, de uma história da humanidade, resta apenas o indivíduo isolado num mundo sem sentido. Para Schopenhauer, portanto, esse indivíduo que resta é a única essência realmente existente no mundo e é, por conseguinte, a essência do próprio mundo. Para ele, nada existe para além do indivíduo ou, para ser mais específico, nada existe além da vontade individual. Como essa Vontade inflada de forma mística tem uma natureza subjetiva e existe independentemente dos condicionamentos de tempo, espaço e causalidade, tal essência é, na verdade, o nada, já que, no mundo real, nada existe fora do tempo e do espaço. Lukács anota que esta é a razão pela qual a obra fundamental de Schopenhauer termina com as seguintes palavras: “Antes, reconhecemos: para todos aqueles que ainda estão cheios de vontade, o que resta após a completa supressão da vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real como todos os seus sóis e vias lácteas é – nada.[7]

Assim, Lukács observa, corretamente, que a filosofia de Schopenhauer recusa a vida e lhe contrapõe, como perspectiva filosófica, o nada. Mas teria algum sentido viver a vida humana dessa forma, é possível ao indivíduo viver a sua vida confrontando-se dia após dia com o nada? (Lukács anota que o próprio Shopenhauer rejeita o suicídio como solução para a ausência de sentido da existência). Na verdade, Lukács esclarece que, para Schopenhauer, o nada, a falta de sentido da vida, acaba por fundamentar toda a sua ética, pois é essa ausência de sentido da vida que permite “a libertação do indivíduo de todas as obrigações sociais, principalmente, da responsabilidade diante do desenvolvimento da humanidade que, aos olhos de Schopenhauer, sequer existe. E o nada, como perspectiva do pessimismo, como horizonte de vida, de modo nenhum é capaz, segundo a já referida ética shopenhaueriana, de impedir o indivíduo, ou mesmo de inibi-lo, de conduzir a vida de maneira prazerosa e contemplativa. Pelo contrário. O abismo do nada, o fundo obscuro da ausência de sentido da existência, confere a esse gozo da vida apenas um fascínio picante. Esse fascínio cresce ainda mais na medida em que o aristocratismo fortemente incisivo da filosofia schopenhaueriana eleve os seus sequazes – em seu convencimento – muito acima daquele povo miserável, que se encontra um tanto obtuso par lutar e sofrer por melhores condições sociais. Assim, o sistema de Schopenhauer erige-se como um elegante e moderno hotel, equipado com todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E a visão cotidiana do abismo, entre refeições ou criações artísticas confortavelmente saboreadas, só pode aumentar a alegria desse sofisticado conforto. Com isso o irracionalismo schopenhaueriano cumpre a sua tarefa: impedir que certo setor descontente da intelectualidade dirija concretamente o seu descontentamento com o ‘existente’, leia-se, com a ordem social vigente, contra o sistema capitalista dominante. Com isso o irracionalismo cumpre a sua meta central – e não importa até que ponto o próprio Schopenhauer tivesse consciência disso: fornecer uma apologia indireta da ordem social capitalista.[8]

 

Sávio Bastos



[1]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 199.

[2]Schopenhauer: O Mundo como Vontade e Representação, t. II, p. 520 (ed. bras: O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de Jair Barbosa. São Paulo: Ed. UNESP, 2005, p. modif.)

[3]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 299 s.

[4]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 348.

[5]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 216. a citação de Schopenhauer está em O Mundo como Vontade e Representação, título I, p. 249 (ed. bras.: op. cit., p. 251)

[6]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 217.

[7]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 527 (ed. bras.: op. cit., p. 519, modif.).

[8]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 218/219.


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

[Notas de leitura] Angie, de Leonardo Costaneto

outubro 13, 2021

Um tema intensamente discutido é o das transformações que a literatura viveu na dobra do século XX para o XXI, notadamente nas sociedades dependentes em que temas como globalização e colonialidade, à moda de Quijano, adquirem grande relevância.

Mas não quero fazer aqui um exercício de Sociologia da Literatura. Almejo apenas socializar com o leitor ligeiras notas de uma leitura recente. Trata-se de um livro escrito e publicado na periferia do capitalismo, expressão particular de um espaço geográfico mundial em que globalização e colonialidade se articulam; mas, especialmente, é uma obra que diz respeito a um tipo de literatura que se pratica aqui na dobra do século.

Grosso modo, estamos (eu e você leitor) diante de um pequeno livro que pode nos fornecer elementos para uma compreensão lapidar de um sítio da arte literária do nosso tempo e da Nuestra América, na qual, queira-se ou não, estamos inseridos, aliás, inseridos (sobretudo!) em suas teias e em seus labirintos.

No livro de Leonardo Costaneto, o leitor, de repente, está em Minas e se vê diante da personagem Fátima e da ancestralidade africana, quase a dizer que não tem Brasil sem Angola, o que reforçaria a tese de Lélia Gonzalez centrada na noção de Améfrica ou amefricanidade; mas não demora, as narrativas criam asas - à maneira de uma literatura em trânsito - e viajam até Santiago, Buenos Aires, Colônia de Sacramento etc.

Leonardo Costa Neto - Angie, Belo Horizonte: Caravana, 2021, 62p.

O livro está organizado em dois grandes quadros – Buenos Aires (ambiente urbano em que o protagonista encontra Angie) e Na Margem Oposta – e no seu interior se formam pequenos quadros ou contos (12 ao todo), com prevalência absoluta do narrador em primeira pessoa. Nessa perspectiva, do narrador em primeira pessoa (homodiegético) de O fim de alguma coisa, passando pelo narrador em terceira pessoa onisciente de Marocho, desliza-se para o narrador-protagonista (narrador autodiegético), que domina as narrativas do terceiro ao último conto.

O eixo nodal da obra é o conto Angie, pois depois dele todas as demais narrativas, de algum modo, remete a ele. Em consequência, o leitor há de perceber a coerência entre o título e os contos que compõem o livro.

Juntem-se então as pontas.

Do ponto de vista da linguagem, os textos reúnem marcas da criação literária contemporânea. Assim, a contemporaneidade é um traço da escrita de Leonardo Costaneto. Onde localizar esse traço geral? Em primeiro lugar, na linguagem coloquial, um desenvolvimento da revolução modernista. Sem perder inteiramente a atenção na gramática, o autor renuncia às formalidades que marcaram o período literário pré-moderno. Nesses termos, o despojamento é o signo que define o estilo do escritor mineiro: “A história não durou muito, comentou antes de tomar um longo gole” (Angie, p. 33); “Alto lá! Que bobagem é essa? Que delírio extravagante e sem sentido, pensei respirando fundo” (Gatinho acuado, p. 50).

Mas a sua filiação à contemporaneidade não cessa nesse ponto. Os contos curtos e com finais abertos remetem à persistência de posições modernistas (a exemplo de Joyce em Música de câmara) que, em larga medida, foram mantidas e aprimoradas por autoras e autores contemporâneos. Nas narrativas de Costaneto, o leitor é convidado a ser coautor dos desfechos que, em geral, aparecem em uma configuração distintivamente aberta, sugestiva, carregada de significados. Em suma, os finais são mais sugeridos do que ditos.

Isso pode ser observado no desfecho de O fim de alguma coisa, traduzido na inquirição da mãe: “- Esse é o meu filho?” (p. 22); no epílogo de Marocho, o método narrativo reaparece: “Fascinado, nos olhos de Marocho se acendeu um brilho raro, que encontrou de pronto o palor frio da lâmina afiada” (p. 26); em Corrida urgente, o procedimento se repete: “ – Pra onde você quiser, Leo” (p. 30) . Já No quarto ao lado, a lubricidade - à moda de O quatrilho - é vivamente sugerida: “Dali por diante não me recordo de muita coisa, somente que vimos o dia amanhecer da varanda do quarto ao lado” (p. 39). E assim segue nas demais narrativas. Enfim, o leitor ou leitora pode criar o remate à luz do próprio processo narrativo, no qual as pistas ou indícios são suficientemente robustos.

Em terceiro lugar, ao ressaltar aspectos típicos da sociedade globalizada, o narrador exibe referências características dos tempos atuais: “Foi ali, num lampejo, que me veio a ideia de cadastrar meu carro na Uber” (Corrida urgente, p.27); “ (...) me pagou por transferência e mandou o comprovante para o meu WhatsApp” (Corrida urgente, p. 28); “Eu a conheci em um site de encontros entre sugar babies e sugar daddies (Angie, p. 31). Enfim, um bom número de situações indica o cotidiano da história em sua contemporaneidade eivada de globalização, novas subjetividades, relações dissolutas, precariedade, neoliberalismo e alusões às novas tecnologias.

Registram-se, também, questões que vão além desse panorama histórico, dentre as quais pode-se ressaltar a retomada dos arquétipos (que começa com a mãe do primeiro conto e quase encerra os relatos com a memória do pai), e identidades (latinoamericanidade e ancestralidade africana – essa última expressa nas personagens de Maria de Fátima e Dandara). Nesse escopo, os pequenos textos que conformam Angie versam sobre impressões pessoais, evocações familiares, paisagens latino-americanas e outros indicadores que estruturam os elementos de subjetividade que, em geral, marcam o que há de genuíno em uma obra literária.

Outro aspecto a lembrar, o conto Angie divide águas no plano narrativo. É como se as estórias se dividissem antes e depois dele. Desse modo, é como se o encontro do protagonista e a moça que “adorava viajar” representasse uma margem, ao passo que o que vem depois constituísse a sua margem oposta. Geograficamente, essa passagem se concretiza em viagem: Buenos Aires é o que ficou para trás. Colônia do Sacramento representa a busca de uma viragem, tendo em si o alvo de uma reabilitação amorosa. Quem sabe, o início de uma nova aventura (no sentido mais amplo do termo).

O texto enxuto, conciso, direto, praticamente sem rodeios, convida a uma leitura rápida, de um só gole, e, paralelamente, mostra não o escritor maduro de longa trajetória (que não é seguramente o caso), com cada coisa em seu lugar (na hipótese de isso existir), mas um criador com inúmeras tensões, reticências e hesitações. É desse material instável, nascente, às vezes impreciso, que o novo se faz. Até onde irá o moço de Minas é uma questão que não cabe ao presente. “Quem viver, verá”.

 

Fábio Queiróz

Professor do departamento de história da Universidade Regional do Cariri - URCA

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Bertrand Russell: Trotsky sobre nossos pecados

outubro 04, 2021

 

Polêmica entre Bertrand Russell e Leon Trotski sobre a revolução socialista na Inglaterra

 

Em 1925, Leon Trotski, um dos principais líderes da revolução de outubro de 1917 na Rússia e, à época, destacado dirigente do governo soviético, escreveu o livro Para onde vai a Grã-Bretanha?, cuja edição em inglês provocou viva controvérsia, a começar pelo prefaciador, H. N. Brailsford, que o acusou de não compreender as tradições democráticas e religiosas não-conformistas do movimento trabalhista britânico e o “instinto de obediência para com a maioria, gravado na mentalidade inglesa”. (Isaac Deutscher, O profeta desarmado, p. 241).

 

Dirigentes do Partido Trabalhista britânico, como Ramsay Macdonald, e diversos intelectuais do chamado socialismo fabiano tomaram parte no debate, apresentando objeções às análises e prognósticos do livro. Trotski respondeu a todos. Talvez a parte mais interessante da controvérsia seja o confronto com o filósofo e matemático Bertrand Russell, já então uma celebridade intelectual dentro e fora do país. Russel escreveu no The New Leader de 26 de fevereiro de 1926 um artigo intitulado Trotsky sobre nossos pecados. A resposta de Trotski, intitulada Mais uma vez sobre pacifismo e revolução, está no seu livro Trotsky’s writings on Britain, ainda não traduzido no Brasil. O texto de Russel é publicado a seguir pela primeira vez entre nós. A resposta de Trotski será publicada na próxima coluna. (Auto Filho, editor da coluna).

 

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Bertrand Russell: Trotsky sobre nossos pecados

 

O novo livro de Trotsky é um dos mais interessantes que leio há muito tempo e, até certo ponto, extraordinariamente penetrante. Existem certos erros de fato, mas eles não são importantes – por exemplo, que Joseph Chamberlain deixou Gladstone na questão protecionista, e que os atuais constituintes parlamentares são prejudicados para se dar uma grande vantagem aos Conservadores.

Sobre a política do Movimento Trabalhista Britânico, Trotsky é notavelmente bem informado. Muitas de suas críticas são, a meu ver, bastante convincentes. Deixo de lado seus comentários desairosos sobre os líderes, que serão apreciadas ou odiadas conforme o leitor não gostar ou gostar do líder em questão. O que é mais importante é sua reclamação de que o Partido Trabalhista carece de uma perspectiva teórica coerente. Veja, por exemplo, a questão do republicanismo. Ele cita pronunciamentos trabalhistas britânicos de que a autoridade real não causa dano e que um rei é mais barato do que um presidente. Ele argumenta que, em tempos de conflito crítico, a burguesia pode fazer uso da autoridade real com grande sucesso, como o ponto de concentração de todos os extraparlamentares, isto é, as verdadeiras forças dirigidas contra a classe trabalhadora … Proclamar um programa socialista, e ao mesmo tempo declarar que a autoridade real “não atrapalha” e funciona mais barato, é absolutamente o mesmo que, por exemplo, reconhecer a ciência materialista e fazer uso do encantamento de um feiticeiro de dor de dente, sob o fundamento de que o feiticeiro é mais barato.

Esperar alcançar o socialismo sem republicanismo é o tipo de coisa que só poderia ocorrer entre pessoas de língua inglesa; dificilmente seria possível para homens com algum conhecimento profundo da história, ou qualquer compreensão dos vínculos econômicos e psicológicos entre as diferentes instituições. Apesar da observação do Sr. Brailsford em contrário na introdução, eu deveria concordar com Trotsky em dizer o mesmo das Igrejas. A religião pessoal é um assunto privado; mas a religião organizada, no mundo moderno, deve ser uma força reacionária, mesmo quando seus adeptos desejam ardentemente o contrário.

“Mas”, me dirão, “quantos membros trabalhistas você colocaria no Parlamento se atacasse a monarquia e antagonizasse as igrejas?” Aqui nos deparamos com uma falácia desastrosa. Pensa-se que o importante é conseguir que os socialistas sejam eleitos para o Parlamento por bem ou por mal, mesmo que, para serem eleitos, tenham de deixar claro que se absterão de cumprir grande parte do programa socialista.  Garantir um governo composto de socialistas professos não é o mesmo que garantir o socialismo; isso foi provado em muitos países europeus desde a guerra. O socialismo nunca será realmente estabelecido até que os líderes o desejem seriamente; com isso, quero dizer não apenas que eles devem favorecê-lo em abstrato, mas que devem estar dispostos, por sua causa, mas que eles deveriam estar dispostos, por sua causa, a renunciar às vantagens pelo sucesso burguês, que são desfrutados por políticos trabalhistas de sucesso, contanto que eles se abstenham de abolir os privilégios burgueses.

Outro ponto importante é ilustrado pela analogia de Cromwell, sobre a qual Trotsky se detém um pouco. Cromwell, ao contrário da maioria dos homens do Parlamento, expressou preferência por soldados convencidos da justiça da causa, em vez de “cavalheiros”, e só assim conseguiu obter a vitória, apesar da oposição de seus oficiais superiores. Em nossos dias, na Inglaterra, parece não haver quase ninguém cuja crença em alguma coisa seja suficiente para torná-lo indiferente ao “cavalheirismo”; certos líderes trabalhistas são constantemente levados à fraquezas pelo desejo de que seus oponentes os considerem cavalheiros”. Eles não parecem perceber que o ideal de um “cavalheiro” é uma das armas das classes proprietárias; impede os truques sujos contra os ricos e poderosos, mas não contra os pobres e oprimidos. Essa fraqueza é peculiarmente britânica. Nada alcançaremos até que desejemos o socialismo mais do que a aprovação de nossos inimigos, que só pode ser conquistada pela traição, consciente ou inconsciente.

Nossa paixão britânica pela inconsistência e falta de filosofia está levando o Movimento Trabalhista ao erro. Cromwell tinha uma filosofia completa, por mais absurda que nos pareça; o mesmo aconteceu com os benthamistas que criaram o Partido Liberal e todo o movimento democrático do século XIX. Os comunistas russos alcançaram o que jamais poderia ter sido alcançado por homens que se contentaram com uma mistura de sentimentos amáveis. É inútil fingir, por exemplo, que o socialismo é meramente o cristianismo consistentemente executado. O Cristianismo é uma religião agrícola, o Socialismo é industrial; não é tanto uma questão de sentimento, mas de organização econômica. E nós, britânicos, como o jovem que tem grandes posses, somos impedidos de pensar com clareza pela vaga percepção de que, se o fizermos, teríamos de abandonar nosso imperialismo; não é apenas por uma hábil confusão que o Partido Trabalhista pode atacar os imperialistas, ao mesmo tempo em que cuida de reter o Império e de levar adiante a tradição de opressão, como fez o último governo na prática.

Vamos, pelo menos para fins de argumentação, admitir toda a acusação de Trotsky ao nosso movimento; o que, então, devemos dizer de seu programa para a Grã-Bretanha? Eu digo que é um programa que só poderia ser defendido por um inimigo ou um tolo; e Trotsky não é um tolo. Sua opinião é que, quando finalmente tivermos um governo trabalhista com uma clara maioria parlamentar, os atuais líderes, tanto de direita quanto de esquerda, estarão tão desamparados quanto Kerensky e serão varridos por homens de ação decididos.

A polícia, o judiciário, o exército e a milícia estarão do lado dos desorganizadores, sabotadores e fascistas. O aparato burocrático deve ser destruído, substituindo os reacionários por membros do Partido Trabalhista. [Mas tais medidas escassas] irão extraordinariamente aguçar a oposição legal e ilegal da reação burguesa unida. Em outras palavras, este é também o caminho da guerra civil… Em caso de vitória do proletariado, seguir-se-á a destruição da oposição dos exploradores por meio da ditadura revolucionária.

É estranho como o realismo de Trotsky falha nesse ponto. Muito de seu livro é usado para provar como nossa posição econômica se deteriorou e como nos tornamos dependentes dos Estados Unidos. No entanto, quando ele fala de uma revolução comunista, ele sempre argumenta como se fôssemos economicamente auto-subsistentes. É óbvio que aviões franceses (se não britânicos) e navios de guerra americanos (se não britânicos) logo poriam fim ao regime comunista; ou, no mínimo, um bloqueio econômico destruiria nosso comércio de exportação e, portanto, nos privaria de nosso suprimento de alimentos.

Existem algumas frases bombásticas sobre a simpatia que se espera da Rússia Soviética. Mas até que a Rússia Soviética possa colocar uma frota no Atlântico mais forte do que a da América, não está claro o que devemos ganhar com simpatia, por mais entusiástica que seja. Para garantir a independência econômica sem supremacia naval, deveríamos ter que reduzir nossa população para cerca de vinte milhões. Enquanto isso estava sendo feito pela fome, sem dúvida a simpatia de Trotski seria um grande conforto; mas, no geral, a maioria de nós prefere permanecer vivo sem ele do que morrer com ele.

O fato é que Trotsky odeia a Grã-Bretanha e o imperialismo britânico, não sem uma boa razão, e, portanto, não merece confiança quando dá conselhos. Por causa de nossa dependência de alimentos estrangeiros, tornamo-nos tão desesperadamente enredados na política mundial que é impossível avançarmos a um ritmo que a América não tolerará.

O próprio Trotsky diz: “Na luta decisiva contra o proletariado, a burguesia britânica contará com o apoio mais poderoso da burguesia dos Estados Unidos, enquanto a classe trabalhadora se baseará principalmente na classe trabalhadora da Europa e nos povos oprimidos das colônias britânicas”. Dificilmente é crível que ele suponha que nosso suprimento de alimentos continuaria sob tais circunstâncias. Receio que, como o resto de nós, ele seja um patriota no que diz respeito ao aperto: uma revolução comunista na Inglaterra seria vantajosa para a Rússia e, portanto, ele a aconselha sem considerar imparcialmente se seria vantajosa para nós. Os argumentos contra ela, longe de serem sentimentais ou visionários, são estratégicos e econômicos. O pacifismo de que ele não gosta no movimento trabalhista britânico é imposto pela dependência da América, que resultou de nossa participação na Grande Guerra. Se ele realmente deseja a difusão do comunismo, e não apenas o colapso da Inglaterra, é hora de voltar sua atenção para a Federação Americana do Trabalho.

 

Do The New Líder, 26 de fevereiro de 1926 

 

Auto Filho

AUTO FILHO é professor de Filosofia e Economia Política da Universidade Estadual do Ceará. Foi editor literário do jornal Gazeta de Notícias e Crítico de Arte do jornal Unitário.

 

Nota

1. Bertrand Russell (1872-1970). Famoso filósofo e matemático  britânico, pacifista e radical de longa data que, muito tarde, assumiu uma posição de esquerda, combatendo a Guerra do Vietnã.