domingo, 28 de maio de 2023

Cérebro humano e aprendizado: uma relação fundamental à prática docente

maio 28, 2023

O texto abaixo é produto de um ensaio que propus às alunas e aos alunos da disciplina Psicologia da Educação, na Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA), que ministro neste semestre. Évilly e Lucas são alunes dessa disciplina e escreveram um texto que demonstra uma maturidade intelectual e posição crítica admiráveis. Espero que aproveitem, assim como eu aproveitei a leitura.

Profa. Dra. Karla Raphaella Costa Pereira

Cérebro humano e aprendizado: uma relação fundamental à prática docente

Não é de hoje que a sociedade debate acerca do processo de aprendizagem humana e busca entender como ela funciona, sobretudo dentro das salas de aula. Contudo, parece que mesmo com o avanço da neurociência e com o conhecimento que já se tem sobre o cérebro humano, os mesmos métodos de ensino de séculos passados continuam sendo, majoritariamente, replicados pelos professores dentro dos espaços educativos.

Mas por que, caro leitor, mesmo com os resultados negativos na educação sendo explicitados dia após dia, os educadores continuam replicando métodos ineficazes? Vos apresento a resposta mais direta para tal pergunta: grande parte dos educadores não está a buscar conhecer o cérebro humano e sua relação com o aprendizado. Por isso, acabam tratando as salas de aula como um processo culinário em que se aplica uma receita previamente definida. Tal ato, nega o fato de que a relação entre o desenvolvimento cerebral e a aprendizagem é indissociável e que cada indivíduo possui particularidades psicológicas, históricas e culturais que influenciam diretamente no modo em que aprendem e se desenvolvem.

Primeiramente, para compreender melhor sobre o que falamos, tomemos como ponto de partida a importância de se compreender como o cérebro humano funciona quando o assunto é aprendizagem. É sabido que a evolução da nossa espécie nos proporcionou diversos feitos e descobertas, incluindo nossa capacidade de reconhecer situações de perigo e/ou desenvolver soluções para estas. Isso se dá graças à plasticidade cerebral, que é a capacidade que o cérebro humano tem de adaptar-se. Podemos englobar inúmeros exemplos de como a plasticidade cerebral é influência ativa na evolução da espécie humana, como aprender a andar sobre duas pernas, manusear objetos com uma mão só, pedalar e etc.

Assim, dentro do aprendizado, o nosso cérebro conta com artifícios e ferramentas que, inferidos pela plasticidade cerebral, nos permitem reorganizar o mundo externo dentro da nossa mente, criando uma projeção interna do que está à nossa volta, e é isso que atribuímos o nome de aprender. Um desses artifícios é destacado dentro da pedagogia pelo que Dehaene chama de “os quatro pilares do aprender”. O cérebro humano conta com processos que contribuem e fazem toda diferença na hora de absorver uma nova informação/experiência, e estes processos estruturam os quatro pilares da aprendizagem, que são atenção focada; o envolvimento ativo, o feedback de erros e repetições diárias que resultam na consolidação do aprendizado.

Dessa forma, como pode um educador aplicar práticas educativas efetivas se desconhecer a forma como os alunos absorvem o que é ensinado e tornam isso um conhecimento real? É impossível utilizar de maneira acertiva uma máquina sem que tenhamos o conhecimento de como ela trabalha e de quais mecanismos ela precisa para que seu funcionamento aconteça de maneira eficaz. O mesmo acontece com o educador e o conhecimento do funcionamento do processo de aprendizagem.

Além disso, não basta conhecer o cérebro e o seu funcionamento pelo olhar puramente físico e científico. Se faz necessário também reconhecer os papéis dos indivíduos inseridos no processo de aprendizagem e a relação desses indivíduos com o ambiente que o cerca. Se falamos anteriormente que aprender é ajustar os parâmetros captados do mundo exterior e criar a partir dele projeções internas, é possível inferir que todo e qualquer indivíduo possui inúmeros parâmetros já absorvidos do meio no qual está inserido, mesmo antes de adentrar no espaço de uma sala de aula.

Diante disso, até mesmo um ser isolado em uma floresta, longe da humanidade, como acontece na ficção “Tarzan”, possui conhecimentos que foram constituídos a partir de padrões observados do seu exterior, como conhecimentos de sobrevivência, de padrões naturais, etc, que se consolidaram e foram ajustados formando um conhecimento, que não é escolar, mas é absorvido mediante o meio à sua volta.

Dessa maneira, teorias como a do estudioso Piaget são facilmente refutadas. Tal autor desconsidera o aprendizado que o educando traz do seu meio social e cultural, tratando-o dentro da sala de aula como uma folha em branco, na qual o conhecimento será absorvido apenas a partir dali. Tal pensamento desconsidera a singularidade dos educandos e coloca-os dentro das mesmas possibilidades educativas, que acabam sendo eficazes para uns, mas ineficazes para outros, o que culmina na produção de práticas ineficazes, pois se não funcionam para todos, não foram efetivas.

Por outro lado, enquanto educador, é preciso adotar uma postura que considere aspectos histórico-culturais do educando, isto é, considere o estudante como um ser que já entra na sala de aula dotado de conhecimentos que foram ajustados mediante os aspectos que este absorveu do meio social, cultural e psicológico no qual está inserido. Assim, o educador age sobre as diferenças, criando possibilidades educativas distintas que possam suprir necessidades e particularidades distintas.

Contudo, reconhecemos, caro leitor, que essa não é uma tarefa fácil, principalmente em uma sociedade construída sobre anos e anos de uma educação tradicional, pautada na formação de indivíduos que atuem como máquinas de uma sociedade capitalista que enxerga o aprendizado apenas como meio pelo qual o indivíduo pode produzir e ser “útil” ao sistema. Mas é necessário tentar, persistir e buscar criar possibilidades educativas que ajam a partir do educando e não apenas sobre ele.

Portanto, a partir do que foi discorrido aqui, é possível perceber que a relação entre desenvolvimento cerebral e aprendizado é inseparável, como propõe o estudioso Vygostky com sua teoria dialética acerca da aprendizagem e desenvolvimento. Além disso, a construção dessa relação é impossível sem que se considere os fatores histórico-culturais que cercam os indivíduos envolvidos no processo, desfazendo-se totalmente da noção de que o aluno é uma folha em branco. Reconhecer a trajetória e a carga de conhecimento do aluno é o primeiro passo para que se possa criar possibilidades, de fato, educativas, uma vez que para se criar senso crítico e seres humanos ativos na sociedade é preciso ir além do tradicional; é necessário que cada situação seja vista com um olhar pedagógico.

Assim, possibilidades educativas eficazes requerem educadores que ajam mediante a perspectiva de que cada educando precisa ser considerado individualmente, de educadores que pensem o aprendizado em todas as suas vertentes funcionais, humanas e sociais, não apenas como uma ferramenta de manutenção capitalista.

Évilly Anik de Oliveira Gomes
Graduanda em Letras UFERSA
Lucas Jeorge Alves da Costa
Graduando em Letras UFERSA

REFERÊNCIAS
DEHAENE, Stanislas. Introdução. In: ______. É assim que aprendemos: por que o cérebro funciona melhor do que qualquer máquina (ainda...). São Paulo: Editora Contexto, 2022. p. 9-28.

DEHAENE, Stanislas. O que é aprender? In: ______. É assim que aprendemos: por que o cérebro funciona melhor do que qualquer máquina (ainda...). São Paulo: Editora Contexto, 2022. p. 29-59.

VYGOTSKY, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: LEONTIEV, Alexis [et al.]. Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem. São Paulo: Centauro, 2005. p. 25-42.

LURIA, A. R. O cérebro humano e a atividade consciente. In: ______. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10. ed. São Paulo: Ícone, 2006. p. 191-228.

Contra o trabalho escravo: expropriar e estatizar as empresas da burguesia escravocrata

maio 28, 2023

O Brasil conviveu com o trabalho escravo por mais de 350 anos. Em 1888 ocorreu a “Revolução Abolicionista” que extinguiu o modo de produção escravista colonial. Um ano mais tarde, 1889, caiu a superestrutura que garantiu durante 67 anos a escravidão no Brasil independente: a monarquia escravista foi substituída pela república oligárquica. No entanto, o trabalho escravo, junto com outras formas de trabalho compulsório, permaneceu nas franjas do capitalismo periférico brasileiro. A escravidão acabou na lei, mas permaneceu nas relações de trabalho, como na atividade de imigrantes que vieram ao Brasil com a promessa de uma vida melhor.

Hoje, em pleno século XXI, observamos que o trabalho escravo não é algo ligado à regiões atrasadas e/ou setores marginais da economia capitalista. Mas, é algo presente no modo de ser do capitalismo brasileiro.

Em levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com 327 ocorrências entre 2003 e 2020, o estado do Pará é o campeão nacional, com cerca de um quinto (10.427) do total de 49.076 pessoas libertadas de servidão involuntária no período. Em Minas, Goiás e Mato Grosso se encontraram em torno dos 4.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Já Tocantins e Bahia ficaram na casa dos 3.000, e Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de janeiro e Maranhão, na dos 2.000. O trabalho escravo não está presente só no campo (incluindo o garimpo), mas, também, em áreas urbanas (32,7%). E isso, é só a ponta do iceberg. É só o indício de uma realidade mais grotesca.

O aprofundamento da crise do sistema imperialista, em particular a partir de 2008, e a desconstrução de direitos sociais pelo governo golpista de Temer (“Reforma Trabalhista” de 11/11/2017) estimularam formas mais monstruosas de exploração da força de trabalho no Brasil. Isso foi ainda mais estimulado por 4 anos do governo de extrema direita de Bolsonaro. Além do processo de precarização das relações de trabalho, ficou cada vez mais fácil para empresários burlarem direitos como jornada de trabalho, idade e remuneração mínima, além de férias, assistência na doença e na velhice. A destruição desse regime de proteção social ocorre em nome da modernidade, do mercado e da competitividade econômica. Resultado: precarização, fome, miséria, desemprego e diversas formas de trabalho forçado.

As últimas denúncias estão ligadas a empresas capitalistas sólidas no mercado de vinho, mas, também, em fazendas de arroz, todas no Rio Grande do Sul.

O que os trabalhadores podem fazer diante de formas cada vez mais aviltantes de exploração?

Além da luta e da denúncia, é preciso defender a expropriação (sem indenização) e imediata estatização de empresas e fazendas com trabalho escravo. Nas contas dos modernos escravocratas capitalistas multas e indenizações já estão incluídas como produto do mais-valor expropriado dos trabalhadores no processo de trabalho. É chegada a hora de expropriar os expropriadores.

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

A questão não é só de gênero, é também de classe

maio 28, 2023

Nunca deve ser esquecido que o Brasil é um país capitalista periférico, com um passado escravista colonial. Prova disso é que apenas agora está sendo votado o Projeto de Lei sobre Igualdade Salarial entre homens e mulheres. Imagine o lucro ganho por conta dessa forma de opressão sobre as trabalhadoras brasileiras.

O que está sendo noticiado, no entanto, são os trinta e seis parlamentares da extrema direita que votaram contra o projeto, na última quinta-feira (4), dos quais dez são mulheres. A maioria desses defensores da superexploração do trabalho feminino são do Partido Liberal (PL) do neofascista Bolsonaro.

Essas dez deputadas que votaram contra as trabalhadoras expressam uma tendência do capitalismo periférico de aumentar a taxa de exploração para retardar a queda mundial das taxas de lucro. Representam, ao lado dos outros vinte e seis deputados, uma alternativa política para as classes dominantes diante da crise capitalista.

O Partido Novo orientou sua bancada a votar contra o texto. O deputado Gilson Marques (Novo-SC) disse que a Lei acabaria por “nivelar os salários por baixo”. Esse argumento é antigo e típico de nossas classes dominantes.

Deixo aqui uma citação interessante da obra do historiador Edgar Carone. Trata-se da posição de Morvan Figueiredo (1890-1950), industrial e dirigente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), contra a igualdade de salário entre homens e mulheres, de 1939. Tais ideias, muitas vezes, são reproduzidas, ainda hoje, em diversos ambientes, mesmo quando milhões de mulheres são chefes de família ou ganham mais que seus cônjuges.

[...] a “mulher... geralmente não ganha para manter o seu lar. Ganha para ajudar a melhorar as condições de vida desse lar, isto é, gasta o dinheiro “em vestuários, enfeites, diversões e passeios. Não contribuem para a manutenção do lar. Apenas trabalham para tornar possível maior conforto nele, porque o que o chefe de família teria de despender com elas é aplicado em melhor conforto e elas podem ter oportunidade de serem mais felizes, vestindo-se melhor e divertindo-se, sem pesar sobre o orçamento doméstico”. Diante da igualdade do salário, a oportunidade da mulher desaparece e “qual será então a situação do lar trabalhador sem essa ajuda?” O comércio e a indústria, enjeitando o encarecimento momentâneo da mão-de-obra, terão de despedir as mulheres, que deixarão de contribuir em casa e “ficarão privadas das roupas, enfeites e diversões a que já estão habituadas ou criarão uma situação de miséria em um lar antes confortável” (CARONE, 1977, p. 119).

Morvan Figueiredo, em 1946, foi nomeado ministro do Trabalho, Indústria e Comércio e Previdência Social no reacionário governo do general Eurico Gaspar Dutra. Por incrível que pareça, essa ideologia ainda está presente entre liberais, religiosos e na média do pensamento empresarial brasileiro. Vemos, então, uma conexão entre machismo e exploração capitalista.

Referências
CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1977.



Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Abolição: a revolução social vitoriosa do Brasil

maio 17, 2023

 


Em memória de Clóvis Moura, Jacob Gorender, Robert C. Conrad e Theo L. Piñeiro, defensores intransigentes do sentido radical da Revolução Abolicionista. 

 

Neste 13 de maio, transcorre mais um natalício do fim da escravatura no Brasil. Nosso país foi uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão colonial. Dos 523 anos de história do Brasil, mais de 350 transcorreram sob o látego da ordem escravista. Apesar da superação do escravismo ter sido a única revolução social vitoriosa no Brasil, constituindo o mais glorioso e significativo sucesso de passado nacional, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido. O 13 de Maio seguirá sendo combatido e destratado, até mesmo por muitos dos que deviam saudá-lo com orgulho e emoção. 

A Abolição foi data magna celebrada sobretudo pelos que a viveram e compreenderam sua dimensão histórica. Nas últimas décadas, ela tem sido caluniada e objeto de verdadeira conspiração de silêncio. Paradoxalmente, a desconstrução da Abolição foi lançada, em 1988, por dirigentes do movimento negro que, ao contrário, deveriam desdobrar-se na celebração e discussão da sua importância, servindo-se de sua memória na luta da pela segunda abolição, agora social, em aliança com todos os explorados e oprimidos 

 

Brasileiro cordial 

O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro foi um dos grandes mitos nacionais. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição medonha motivara lutas fratricidas. Nos EUA, a Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, causou seiscentas mil vítimas. No Haiti, em 1804, quando foram consolidadas a independência e a destruição da ordem negreira, pelos trabalhadores escravizados, na mais violenta guerra social das Américas, não restava na ilha um ex-escravista. 

No Brasil, ao contrário, a transição ao trabalho livre teria sido efetuada sem violências, devido a instituições sensíveis ao progresso dos tempos, a líderes esclarecidos e à humanitária alma das chamadas elites. Neste cenário de paz e de concórdia, destacaria-se a imagem fulgurante de Isabel, a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros feitorizados e despreocupada com a sorte do trono, a regente imperial  assinou, com pena de ouro, o diploma que pôs fim ao cativeiro e, dezoito meses mais tarde, à monarquia. 

 

Sociedade Fraterna, Pátria da Democracia Racial 

Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras de raças e de classes. As desigualdades remanescentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira, ancorada por uma concórdia estrutural vivida por ricos e pobres; por brancos, negros e pardos; pelos descendentes dos colonizadores e pelos povos originais. Ao menos, era o que se sugeria e, não raro, se afirmava. 

Acontecimentos pátrios referenciais — a Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889, o fim da ordem oligárquica-federalista, em 1930, para não falar da Redentora, de 1964—, teriam como denominador comum terem ocorrido sem traumas, ou quase, devido ao caráter nacional, pacífico e consensual do povo brasileiro. Apresentou-se também o caráter patriarcal e transigente da ordem escravista como a grande construção de uma natureza magnânima nacional que quebrantava contradições de  raça, credo e classe 

Desde os anos 1930, as origens de uma escravidão feliz, de um mundo estranho ao racismo, de um brasileiro transigente foram explicadas por Gilberto Freyre, o mais brilhante – e cabotinointelectual produzido nessa chamada Terra dos Papagaios, em  Casa-Grande & SenzalaLiteralmente chancelado pelo Estado brasileiro, esse ensaio, no início quase magrelo, ganhou páginas sobre páginas, não raro contraditórias, até o atual volume de dimensão XGG, esperando talvez o autor que a sua extensão soterrasse as sandices propostas 

 

Escravidão feliz 

Em 1985, o Brasil viveu  “redemocratização”, sob o permanente controle das classes dominantes, em que os bandidos da véspera mantiveram seus privilégios e foram anistiados em seus crimes. Entretanto, nos anos anteriores, a mobilização crescente dos trabalhadores das cidades e dos campos e o surgimento de entidades negras combativas haviam desnudado a triste realidade subjacente ao discurso da “fraternidade brasileira”, da “democracia racial”, de um país sem contradições de classe. 

As narrativas laudatórias sobre a Abolição, sobre o caráter  patriarcal e consensual da escravidão, sobre a fantasiosa democracia racial, sobre a ausência de contradições, oposições e ódios sociais e de classes se trincavam definitivamente contra a triste realidade contemporânea, que o movimento social desvelava em toda a sua extensão e profundidade. 

Em fins dos anos 1970, diante dos mais míopes, desnudava-se situação onde a população negra encontrava-se opulentamente  representada entre os segmentos populares mais explorados e marginalizados. Revelava-se, mais e mais, uma realidade onde a pele negra dificultava comumente o acesso ao trabalho, favorecia salários ainda mais escorchantes, constituía um verdadeiro passaporte para a prisão e, mesmo, para o cemitério. 

 

A Luta pela Memória 

Fora longa e dura a luta pela recuperação dos sentidos e realidades do passado escravista do Brasil. Inicialmente, prevaleceram as propostas pacificadoras e apologéticas de um escravismo neo-patriarcal, consagradas por Gilberto Freyre, como vimosApenas nos anos 1950, o trotskista francês Benjamin Péret e o comunista Clóvis Moura assinalaram de forma incontornável o caráter escravista da antiga formação social brasileira, o domínio da contradição opondo escravizados e escravizadores, a necessidade da destruição da escravidão para o avanço da antiga formação social brasileira 

Aquelas leituras revolucionárias foram literalmente canceladas, permanecendo sem desdobramentos imediatos no mundo das representações sobre o passado. Nos anos seguintes, as descrições benignas da escravidão e a “democracia racial” foram refutadas por sociólogos