sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Alcance e limites das tendências desantropomorfizadoras na Antiguidade

agosto 28, 2020

 


Fiz este texto para me ajudar a entender e a fixar o pensamento de Lukács. Não o considero, pois, um artigo, mas espero que ele possa contribuir para o debate no grupo. As páginas referidas em parênteses referem-se à “Estética” de Lukács, na tradução em castelhano da Editora Grijalbo.

Nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade há uma tendência a produzir formas de pensamento que não conseguem ultrapassar as formas ingênuas e espontâneas, necessariamente antropomorfizadoras, características do pensamento cotidiano que, portanto, não refletem autenticamente a natureza e o mundo social dos homens.

Engels explica que este fato é a fonte da proliferação e domínio da religião nos primeiros estágios de desenvolvimento do gênero humano e que o paulatino avanço da ciência, ou seja, do conhecimento real da natureza e do mundo formatado pela humanidade vai desembocar, na Idade Moderna, no deslocamento dos deuses de sua posição dominante na concepção de mundo dos homens, pelo menos no nível da teoria (filosofia), mediante a afirmação gradual de que a natureza e o mundo dos homens são regidos por leis naturais e sociais, e que a sociedade é produto da atividade dos próprios homens, não havendo, portanto, desígnios divinos na criação e evolução da natureza ou da sociedade.

Segundo Lukács, foi na Grécia antiga que, pela primeira vez, o homem tornou-se consciente desse embate entre as concepções antropomorfizadoras e desantropomorfizadoras, ou seja, científica. O pressuposto do desenvolvimento da metodologia científica na Grécia residiria na sua estrutura socioeconômica: a existência de paridade entre os proprietários de terras e de escravos e o fato dessa propriedade ser fundada no pertencimento à comunidade; não havendo a escravidão do tipo que ocorria no Oriente (o Estado como proprietário dos escravos), que impunha regimes tirânicos, a democracia política pôde florescer e se estender ao campo religioso, razão por que pôde haver um desenvolvimento próprio da ciência sem uma interferência decisiva das necessidades sociais e ideológicas da religião; no antigo mundo grego não foi, assim, possível fazer da filosofia e da religião uma só coisa e, muito importante, a religião não logrou formar uma casta separada do povo que fosse detentora exclusiva do saber e da fé e, portanto, também do conhecimento. É a primeira vez, portanto, que a humanidade faz a separação clara do reflexo científico em relação ao reflexo cotidiano e ao religioso.

Lukács destaca que a filosofia grega estabeleceu os problemas decisivos acerca da especificidade do reflexo científico da realidade, sendo que, em muitos casos, também os clarificou; também esclareceu a função social do reflexo científico de estar a serviço da vida, o de sempre regressar à vida para enriquecê-la (p. 153), aduzindo, no entanto, que isto ocorreu com maior envergadura no terreno do conhecimento social, como na ética, do que na metodologia das ciências da natureza, isto porque o modo de produção e reprodução da vida do antigo povo grego impossibilitou a aplicação das leis da natureza então descobertas ao mundo da produção, haja vista que a escravidão acarretava o desprezo social pelo trabalho produtivo. Plutarco cita, por exemplo, que Platão foi violentamente contra as leis da geometria serem usadas para a criação de máquinas produtivas, pois, em seu entender, seria uma humilhação para a geometria a sua utilização prático-mecânica, ao mundo corporal e sensível. Arquimedes só autorizou a utilização prática de suas descobertas científicas para fins militares, de defesa de Siracusa, ou seja, motivado por um superior sentimento patriótico. A consequência desse fato é de que, na Grécia antiga, a ciência não deu uma contribuição efetiva à produção e vice-versa. Isto acarretou o fato de que, nas posteriores etapas de desenvolvimento da filosofia da natureza, haverá a influência decisiva de reflexos antropomorfizadores.

A despeito disto, Lukács assinala que a linha fundamental do pensamento grego antigo é a fundação de uma objetividade real do conhecimento, cuja construção deveria ser feita sem a influência de elementos da subjetividade humana, o que seria atingido através da crítica das ilusões perceptivas dos sentidos, dos paralogismos (raciocínios falsos feitos com boa fé), da imediatez do pensamento cotidiano que produz todos esses erros. Destaca ainda que a filosofia dos pré-socráticos é um ponto de involução na história do pensamento humano neste sentido de ser um esforço de ultrapassagem decisiva da “subjetividade humana, com seus limites, deficiências e preconceitos” (p. 154), com vistas a refletir com a maior fidelidade possível a realidade tal como ela é. O ponto culminante neste desenvolvimento são o pensamento de Demócrito e Epicuro, para quem “todo o mundo fenomênico humano se considera tal como o produto, segundo leis, das relações e dos movimentos das partes elementares da matéria” (p. 154). Os antigos gregos, assim, descobriram o modelo metodológico correto para lograr conhecer a realidade, mesmo que não o tenham aplicado de forma sistemática nos estudos particulares dos fenômenos naturais.

Lukács conclui então que “se se analisam os fundamentos metodológicos conseguidos desde Tales até Demócrito-Epicuro, é possível assentar duas informações básicas: em primeiro lugar, que uma captação verdadeiramente científica da realidade objetiva não é possível mais do que mediante uma ruptura radical com o modo de concepção personificador, antropomorfizador. O tipo científico do reflexo da realidade é uma desantropomorfização tanto do objeto quanto do sujeito do conhecimento: do objeto, ao limpar o seu ser-em-si de tudo o que é aduzido pelo antropomorfismo (na medida do possível); do sujeito, ao fazer com que o comportamento deste a respeito da realidade consista em criticar constantemente suas próprias intuições, representações e formações conceituais para evitar a penetração de atitudes antropomorfizadoras que deformaram a objetividade na captação da realidade. O desenvolvimento concreto será resultado de uma fase posterior; porém, os fundamentos metodológicos estão já assentados na cultura grega: que o sujeito do conhecimento tem que imaginar seus próprios instrumentos e modos de proceder para fazer, com sua ajuda, que a recepção da realidade seja independente das limitações da sensibilidade humana e para automatizar, por assim dizer, o seu autocontrole.” (p. 154)

Lukács destaca que a evolução do pensamento desantropomorfizador na filosofia grega não se deu apenas contra o pensamento religioso, mas também contra o pensamento do cotidiano. Na filosofia posterior à dos gregos, a crítica ao pensamento cotidiano desemboca num idealismo religioso ou semirreligioso; isto porque, contraditoriamente, o paulatino avanço do conhecimento científico, no período que vai do fim da Antiguidade ao fim da Idade Média, é menos capaz de impedir o comportamento cognoscitivo geral antropomorfizador do que a ciência menos desenvolvida da Grécia antiga, o que indica de forma clara que o decisivo, neste problema, foi a diferença da organização social conformadora da polis grega, mais democrática em relação à Europa feudal e cristã da Idade Média; Lukács refere inclusive que Hegel percebeu isso, ao ver uma diferença entre o ceticismo antigo, que critica a antropomorfização do pensar resultante da apreensão da realidade pelos meros sentidos humanos, portanto subordinado à subjetividade do sujeito cognoscente, e o ceticismo moderno, que combate a objetividade do pensamento científico e filosófico que se fez possível pelos avanços do pensamento desantropomorfizador.

Para a filosofia grega, ressalta Lukács, o conhecimento se baseia no reflexo correto da realidade objetiva. No entanto, a questão do reflexo para os gregos não transita da interpretação filosófica da realidade objetiva para o predomínio das questões epistemológicas (teoria do conhecimento); por mais diverso que seja o reflexo da realidade para Platão e Aristóteles, nem um nem outro nega a sua importância central; ocorre que, como vimos, a própria filosofia grega postula a necessidade de conhecer a realidade em si (essência) que é diversa daquela que percebemos pelos sentidos (fenômeno); para Platão, a resposta ao “como” se chegar à essência das coisas é dada em sua teoria da formação dos conceitos que, iluminando a intuição sensível e as representações, devem refletir da forma mais fiel possível a realidade objetiva.

Quando a filosofia posterior à grega assenta a predominância das questões epistemológicas em relação à elaboração filosófica da realidade objetiva, encontra, nesta teoria dos conceitos de Platão, a base para tal transição, esquecendo que para Platão o conceito é o reflexo o mais próximo e correto possível da realidade objetiva. Ao se esquecer disto, a filosofia se torna idealista, ou seja, as ideias deixam de ser um “mero” reflexo da realidade e passam a ter existência própria, autônoma e, por vezes, superior em relação à própria realidade objetiva. Há uma autonomização e, portanto, uma separação do mundo das ideias em relação ao mundo real.  Portanto, como diz Lukács, “com esta inflexão em direção à teoria do conhecimento se empreende, ao mesmo tempo, o caminho do idealismo.” (p. 160)

Com o idealismo o sujeito cognoscente passa a ter que refletir em sua mente o mundo das ideias, portador das essências das coisas, e o mundo empírico, que compreende a realidade objetiva como simples manifestação fenomênica das ideias. E essa duplicação do reflexo, observa Lukács, constitui um sério risco ao reflexo correto da realidade objetiva, ao aduzir que “a separação entre o mundo ideal e a realidade, a realidade autêntica – metafísica - que Platão atribui ao primeiro, conduz o pensamento humano – como viu Aristóteles claramente desde o primeiro momento e o criticou resolutamente – ao nível já superado do antropomorfismo.” (p. 160)

De fato, Lukács explica que Aristóteles, em sua crítica a Platão, informa que este considera que a essência de uma coisa tem a mesma constituição da coisa que é perceptível pelos sentidos humanos; a diferença está em que uma é eterna (a essência da coisa) e a outra é perecível (a coisa perceptível pelos sentidos). Aristóteles informa que esse caminho conduz ao antropomorfismo e, por conseguinte, à religião, e o explica da seguinte forma: “Assim se fala do homem em si, do cavalo em si, da saúde em si, sem que com isso se tenha nenhuma outra alteração do objeto; igual que quando se afirma a existência dos deuses, porém imaginando-os completamente iguais aos homens. Pois não se tem feito assim mais que predicar aos homens o predicado da eternidade, e naquele outro caso não se tem feito mais que imaginar ideias, iguais aos objetos sensíveis, porém com o predicado da eternidade.” (citado na p. 161)

Assim, para Lukács, “a antropomorfização do mundo das ideias nasce diretamente do fato de que a filosofia idealista atribui à essência uma existência própria junto a – ou melhor dizendo por cima da – do mundo fenomênico. Esta nova existência própria tem que dotar-se, naturalmente, com traços próprios, e como esses traços não são refigurações do mundo material,  o que podem ser senão extrapolações do ser humano?” (p. 161, grifo meu).

E a forma dessa extrapolação do ser humano, de antropomorfização incidente sobre a refiguração do mundo material, tem sua origem no processo de trabalho, onde parte-se da ideia do que se vai construir para poder-se efetivamente construir algo; primeiro o homem imagina a coisa que ele vai construir, a sua forma, os materiais e as ferramentas que vai utilizar, tudo em conformidade com o objetivo final que tem em mente; passa então a realizar o trabalho até dar aos materiais escolhidos a forma final imaginada em sua mente. Esse momento intelectual passa a ser predominante em relação à execução material do trabalho. Aristóteles realizou a clara separação entre a gênese natural (dos objetos da natureza) e a gênese artificial (oriunda do trabalho), sendo que essa clara distinção “[…] possibilita o conhecimento da essência do trabalho e impede, ademais, uma errônea generalização da mesma, a acrítica aplicação de suas categorias à realidade extra-humana.” (p. 162) Assim disse Aristóteles: “Pela arte se origina tudo aquilo cuja forma está previamente na alma… assim vai procedendo o pensamento até chegar à última condição que pode produzir um mesmo (uma coisa, ou no caso do exemplo de Aristóteles, a saúde); o movimento que sai deste ponto e que leva à saúde se chama então uma produção. Assim resulta que, em certo sentido, a saúde se origina da saúde, uma casa se origina de uma casa, a casa material de uma casa imaterial. Pois a arte do médico e a arte do construtor é a forma da saúde no primeiro caso, e da casa no segundo.” (p. 161/62)

Lukács diz que é essencial ao trabalho que as propriedades da matéria apareçam ao trabalhador como possibilidades diante da consecução do objetivo a que ele se propõe no processo do trabalho; essas possibilidades são concretas e delimitadas; Plotino, epígono de Platão, as considera no entanto de forma abstrata e absoluta, portanto ilimitadas, e as contrasta com o elemento intelectual do trabalho, aqui também considerado de modo abstrato e absoluto e não de modo concretamente determinado, como de fato é no processo do trabalho; com essa abstração e absolutização do elemento intelectual do trabalho (que assim não é delimitado pelas características e propriedades da realidade objetiva), abre-se a possibilidade de pensar que a realidade extra-humana dos produtos naturais (extratrabalho) também pode ser criada “intelectualmente”, ou seja, subjetivamente por um “ser”.

Plotino considera ainda que “o potencial nunca poderia passar à atualidade se o potencial tivesse a primeira classificação, posição, no reino do ente (do criador); […] pois não pode por-si a si mesmo em movimento, por isso que o atual tem que existir antes dele (antes do potencial); […] Pois certamente não engendra a matéria a forma, o sem qualidade a qualidade, nem nasce da potencialidade a atualidade”. Plotino parte da ideia de que o potencial não pode, por si só, gerar o atual; ou seja, o que é meramente potencial, como não tem movimento, não pode, por si mesmo somente, criar o atual, o existente, o que tem movimento; assim ele defende que somente o atual, o já existente, pode criar um outro atual, um outro existente; como ele toma como modelo de criação o processo do trabalho e, por isso entende que o momento intelectual (a prévia ideação separada, autonomizada da realidade objetiva) é o princípio criador necessário para a gênese de algo, ele defende que esse momento intelectual é já atual, ou seja, põe e é movimento, sendo pois também causa do próprio movimento; as ideias, portanto, são a causa do ser e do devir do mundo material (idealismo objetivo).

Vê-se aqui que Plotino considera o princípio criador (o elemento intelectual do trabalho) como um momento superior em relação ao que se produz ou ao momento da execução prática do trabalho, que ele nem considera em seu raciocínio. Lukács informa que tal perspectiva de Plotino e do idealismo objetivo grego em geral não decorre pura e simplesmente da pura projeção abstrata do processo do trabalho à gênese do mundo natural, mas também de um condicionamento social decisivo do modo de produção escravista da época: o forte desprezo pelo trabalho, sobretudo o físico. Isto teve a consequência filosófica de imprimir à relação entre o mundo ideal e o mundo fenomênico uma sujeição hierárquica deste último ao primeiro, ou seja, aquilo que cria (a essência, a ideia) é superior ao que se produz ou à execução do trabalho no plano material; Lukács diz que isso não decorre necessariamente do idealismo filosófico, tanto que, em Hegel, sob o influxo já de relações capitalistas de produção, uma parte do que é objetivamente criado (as ferramentas, os instrumentos de trabalho) são consideradas superiores à satisfação das necessidades humanas (aos fins do trabalho, à prévia ideação), isto porque as ferramentas são expressão do domínio do homem sobre a natureza, são duradouras, enquanto a satisfação das necessidades do homem refletem a sua dependência da natureza, sendo o gozo humano passageiro e logo esquecido.

Lukács arremata que “o idealismo objetivo da Antiguidade que, em seu mundo ideal, convertia a essência, separada e independentizada do mundo fenomênico, em fundamento real da realidade, não tinha mais saída possível que a de conceber essa causação, assim estatuída, de um modo antropomorfizador, mitologizador, como “processo de trabalho” da gênese do ser e do devir do mundo, embotando consequentemente a tudo o que havia conseguido a anterior filosofia em relação à desantropologização do conhecimento e a sua fundamentação como ciência.” (p. 162/163)  

Esta hierarquia entre o mundo ideal (superior) e a realidade material (inferior) teve forte influência no pensamento posterior. Diz Lukács que a “involução da concepção do mundo no sentido de um novo antropomorfismo, fenômeno que começa com Platão, determinou o destino do pensamento científico na Europa durante quase um milênio, produzindo a queda no esquecimento das antigas conquistas” (desantropomorfizadoras) (p. 164).

Assim, ocorre que nesse novo antropomorfismo há um movimento para garantir que o pensamento desantropomorfista se circunscreva à pesquisa científica particular, inclusive à sua metodologia, incorporando assim as conquistas científicas de campos específicos, enquanto que a investigação das causas últimas, de fundo, de visão e de concepção de mundo, esteja sob controle do pensamento antropomorfista, sobretudo o da religião. Isto também ocorreu no Oriente, sendo que neste, em razão da existência de uma casta de sacerdotes que monopolizava o saber, não floresceu o pensamento desantropomorfista típico da filosofia grega anterior a Platão.

Há ainda um outro importante aspecto do neoplatonismo que Lukács observa em Plotino: o mundo ideal é substantivado mas dele se exclui o devir do mundo fenomênico e a quantificação da realidade material. De fato, Plotino afirma sobre o mundo ideal: “a propósito da substância inteligível e dos correspondentes gêneros e princípios” há que supor uma hipostasia inteligível, como algo que é verdadeiramente e é um em grau supremo, a saber, sem o devir dos corpos e a percepção e as dimensões sensíveis”. Mas Plotino também postula, como vimos, um mundo existente caracterizado pela suprema atualidade (o que tem movimento) contraposta à mera potencialidade da matéria, “captado numa imediatez que é sensível, não sensível e suprassensível, e concebido como essência pura, como substância única e força motora da realidade propriamente dita.” (p. 165) 

Para captar esse “mundo essencial” Plotino se vale da noção de “intuição intelectual”, que toma da ciência momentos – deformados – da desantropomorfização. Isto porque a realidade, captada pela sensibilidade imediata e sem a consideração do devir e da quantificação do real (objeto da matemática), não pode “conceituar-se com os meios normais do pensamento” que, por sua vez, para serem desantropomorfizadores, não podem prescindir da “indispensável abstração quantificadora e da captação das leis do devir”. Mas não só por isso, defende Lukács. É que a captação desantropologizadora da realidade material pressupõe a apreensão mais pura do objeto em si, “com a maior eliminação possível das propriedades da receptividade humana, enquanto uma ‘realidade inteligível’ platônica está indissoluvelmente vinculada à natureza do homem como homem”, ou seja, à subjetividade humana (p. 166). A inteligibilidade aqui é mais orientada para o próprio sujeito do conhecimento do que para o objeto. O momento predominante é a antropomorfização em relação à desantropologização, o que é reforçado pela impossibilidade de se obter um reflexo correto da realidade material ao se fazer a abstração do processo do devir e da sua característica de poder ser quantificada. Essa impossibilidade, por seu turno, reforça o referido viés antropológico platônico no processo de obtenção do conhecimento.

Esse modo de pensar cria o postulado de se “levantar acima do nível antropológico do homem e, simultaneamente, preservar esse nível – depurado, e até conduzi-lo a si mesmo mediante essa purificação”. Nisso Lukács identifica o parentesco do neoplatonismo com a religião: como não há a apreensão das verdadeiras legalidades que operam na realidade objetiva, da essência por trás da aparência no sentido do autêntico materialismo, o homem mantém-se na esfera da cotidianidade caracterizada pela união imediata de teoria e prática;  mas a verdadeira realidade, para o platonismo, é o mundo ideal das essências únicas, puras e eternas, deste modo faz-se necessário elevar-se deste nível da cotidianidade para se atingir o verdadeiro conhecimento. Essa elevação se faz mediante a eliminação da realidade objetiva do que não é puro, único e eterno, ou seja, das leis do devir e da quantidade. Após tal purificação, retorna-se à vida cotidiana em cuja esfera há um abandono do normal comportamento humano diante da realidade: “como o objeto (a realidade inteligível, o mundo ideal) é mais que humano, também o sujeito tem que levantar-se por cima de seu próprio nível para ser capaz de recebê-lo” (fl. 166). Deste modo, o homem oscila entre o pensamento cotidiano e o pensamento que tem por objeto o sobre-humano, o transcendente à sua própria realidade humana.

Lukács entende que, desse modo, as doutrinas das ideias (idealismo) e da religião entendem que o homem só encontra a sua essência (ou a alma humana só encontra a si mesma) deste modo antropomorfizador e que para tais doutrinas, portanto, o pensamento científico desantropomorfizador leva à desumanização do homem, ao perder-se de si mesmo; que a desdivinização, a dessacralização do mundo é um real perigo para o ser-homem do homem, para a integridade humana, aduzindo que, embora esta conclusão já está presente nos neoplatônicos, só atinge seu pleno desenvolvimento na Idade Moderna, como por exemplo em Pascal.             

Na verdade, para Lukács tal conclusão é falsa, pois de fato ocorre o contrário: “a desantropomorfização a que leva a cabo a ciência é um instrumento do domínio do mundo pelo homem; é um passo à consciência, uma elevação ao nível do método daquele comportamento intelectual que apenas se inicia com o trabalho, separa o homem do animal e lhe ajuda a fazer-se homem. O trabalho e a forma consciente mais alta nascida dele, o comportamento científico, não é pois somente um instrumento do domínio do mundo dos objetos, mas também, por isso, um meio indireto que, pelo descobrimento cada vez mais rico da realidade, enriquece o homem mesmo, lhe faz mais completo e humano do que seria sem ele.  Ao contrário, a elevação por cima da cotidianidade, no sentido da intuição intelectual e da religião, parte da ideia de que o núcleo humano é para o homem mesmo tão transcendente como o mundo ideal ou a “realidade” religiosa em relação ao mundo objetivo, ao mundo terreno. Todos os métodos propostos por essas tendências, desde a doutrina do eros, até a ascese, o êxtase, etc., tendem a despertar esse desejo do homem de transcender a si mesmo, e a contrapor tal desejo de forma rude, excludente, hostil e recusatoriamente ao homem real” (p. 167).

Lukács destaca que a criação desse mundo ideal, transcendente, empobrece o homem porque nesta criação não há a apreensão das leis que regem a realidade objetiva, não havendo, por conseguinte, o aumento do domínio do homem sobre o seu mundo concreto. É uma criação que não aumenta as capacidades do homem tendo em vista a sua vida real. Isto porque, do ponto de vista objetivo, o mundo ideal ou transcendente é pensado como qualitativamente superior ao mundo humano, ao que é perceptível pelos sentidos e que pode se tornar autenticamente inteligível ao homem (no sentido de poder ser realmente objeto da razão humana), sendo, por isso mesmo, formado por momentos profundamente marcados pelo pensamento antropomorfizante; e do ponto de vista subjetivo, “o homem tem que romper com o seu concreto ser humano, inclusive com sua personalidade moralmente formada, para poder estabelecer um contato fecundo com esse mundo”. (p. 167)

E para Lukács a verdadeira ética é aquela que mantém íntegra a personalidade do homem como tal, como ser concretamente existente, sensível, socializado, com uma práxis referida ao aumento de suas próprias capacidades em suas trocas com outros seres humanos e com a natureza, num autêntico vínculo com a sua humanidade que é necessariamente desantropomorfizante em relação aos objetos desse mundo concreto. Ele diz que “precisamente neste ponto apresenta, ao contrário, uma ruptura (com a personalidade humana) o momento subjetivo daquele ascenso ao mundo ideal: pois inclusive o ser humano eticamente realizado é, em comparação com o sujeito digno e capaz de intuição intelectual do mundo das ideias, algo meramente terrenal, material, hierarquicamente baixo” (p. 167) Há uma desvalorização, então, da personalidade verdadeiramente humana. Isto também ocorre pelo fato de que o mundo ideal ou a religião impõem exigências abstratas ao homem que ultrapassam os limites de sua própria condição humana, o que lhe desvia do caminho de “superação concreta daqueles momentos do homem que lhe atam à superfície da cotidianidade e lhe impedem explicitar com suas próprias forças o essencial de si mesmo” (p. 167)

Para o filósofo húngaro é um desenvolvimento necessário que as correntes éticas que se fundam na intenção de explicitar o núcleo humano imanente do homem utilizem conceitos e descrições cientificamente objetivas, desantropomorfizadoras. Reversamente, “a ultrapassagem abstrato-transcendente do humano, teorética e praticamente generalizado, tem que levar a uma aproximação a – ou até uma realização de – usos, ritos etc., mágico-religiosos”, numa predominância dos reflexos antropomorfizadores (p. 167).


Sávio Bastos

Membro do Gposshe


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Madame Bovary, uma resenha

agosto 25, 2020

 

Gustave Flaubert constrói a obra Madame Bovary com uma maestria incomparável. Lançado em 1857, o romance apresenta caráter psicológico, característica típica do romance do século XIX. Nesse período, o gênero romance atravessa uma fase de desenvolvimento que o eleva consideravelmente. Além de apresentar novas técnicas narrativas e estilísticas, amplia sua temática, passa a preocupar-se com os conflitos sociais e políticos e, com a psicologia, tornando-se a mais importante e mais complexa forma de expressão dos tempos modernos.

Imprimindo sua genialidade no método utilizado na construção das personagens, Flaubert apresenta um verdadeiro estudo da alma humana e das relações sociais, possibilitando ao leitor interpretações significativas ao analisar tal estudo em sua riqueza de detalhes e indícios impregnados nos mais diversos aspectos da narrativa. A engenhosidade de seu método se torna evidente na trajetória da personagem Charles Bovary, a qual é constituída de três partes: apresentação, os primeiros amores e suas aventuras e, por fim, sua ruína.

Como que compondo um painel, o autor constrói essa personagem a partir de um resumo da vida do menino, no qual a descrição de seus pais, das condições do lar e da carreira ulterior como estudante são carregados de dados semânticos que permitem ao leitor a identificação dos aspectos psicológicos, morais e culturais da personagem. Través de elementos consistentes e significantes como a genealogia, a fisionomia, a crônica familiar e a idiossincrasia observa-se que Carlos é um indivíduo displicente, que não se atenta aos detalhes, ingênuo, o que justifica sua reação diante de todas as situações pelas quais passa ao longo de sua trajetória de vida.

Contrapondo-se à personalidade de Charles, Emma Bovary, a esposa, é uma jovem sonhadora, romântica e de espírito livre. Numa busca constante por uma satisfação plena de seu ser, encontra a realização de seus desejos em relacionamentos amorosos e paixões arrebatadoras nas quais vive fortes e passageiras aventuras. Simultâneo aos casos fora do casamento, Emma é tomada pela luxúria e por um desenfreado consumismo que a leva a obter altas dívidas. A jovem é abandonada pelos amantes e financeiramente arruinada, o que a leva a um profundo desespero.

Envenenamento, morte como única saída para os problemas. Assim termina a história de Madamy Bovary, na qual à medida que as descrições vão sendo feitas vão se estabelecendo relações que configuram um espaço eufórico e idílico que é inseparável das personagens, dos eventos e da mundividência constituída pela narração. O espaço, numa mistura de parâmetros físicos, psíquicos e ideológicos, é visto e colocado como possibilidade de libertação.

Numa crítica ferrenha à sociedade francesa da época, o autor mostra na personagem Emma os limites sociais impostos às mulheres. Em sua busca por libertação, a personagem desloca-se entre as diversas normas que estabelecem e reproduzem a ordem social vigente, transitando pela fé, a filosofia, as virtudes do casamento, pelos desejos carnais e materiais. Não encontrando em nenhuma dessas possibilidades, sua completude e satisfação plena.

Com seu método inovador e habilidoso, Flaubert produz um efeito e uma impressão extraordinária ao leitor, colocando a história diante deste por meio de uma narrativa singela, relatando a sucessão dos fatos de uma maneira bastante comum e até mesmo descontraída, sem, todavia, diminuir a grandeza de sua criação literária ao desvelar os valores mesquinhos e medíocres de uma sociedade baseada em aparências, leviandades e superficialidades materiais.

Marcilia Nogueira
professora da Rede Estadual do Ceará e membro do Gposshe
Photo by Nong Vang on Unsplash

É preciso repensar nossa forma de organização social

agosto 25, 2020

 

Will Duran, historiador estadunidense (1885-1981), em seu clássico A história da civilização, volume I – Nossa herança oriental, ao comentar sobre os fundamentos econômicos da civilização ilustra um fato interessante. Entre os povos primitivos, a posse da terra cabia à comunidade, tendo até um “comunismo de víveres”. Era costume entre os “selvagens” que o indivíduo que dispusesse de víveres os partilhasse com quem não tinha, ou com viajantes que pediam pouso; comunidades vítimas de seca eram alimentadas pelas vizinhas. Dito isso, Durant relata que, quando um pesquisador relatou a um samoano[1] a tragédia dos pobres em Londres, o dito “selvagem” encheu-se de espanto: “Como isso? Sem alimentos? Sem amigos? Sem casa em que morarem? Como vivem, então? Não possuem casa os amigos dessa gente?” (s/d, p. 12).

Bem, nos últimos dias, pelo menos cinco pessoas, em situação de rua, morreram de frio em São Paulo[2], capital do estado, que é o centro econômico da economia brasileira. Em Recife, no dia 14, um representante de vendas de 53 anos, da rede de hipermercados Carrefour morreu enquanto trabalhava. O corpo de Moisés Santos foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas, para que a loja continuasse funcionamento[3]. E isso acontece em um contexto de uma tragédia tríplice: crise econômica, governo de extrema direita e pandemia. De 2016 a 2019, a população brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda aumentou de 37,5 milhões para 43,1 milhões[4]. Segundo o IBGE, em informe de junho, desempregados já somavam 87,6 milhões de brasileiros, enquanto ocupados chegavam a 85,9 milhões[5]. O que se vê é um descaso do poder público, ataques constantes aos diretos sociais e uma política econômica voltada exclusivamente para os interesses dos grandes grupos econômicos internacionais e nacionais. Resumo: é o lucro acima da vida.

O que diria o “selvagem” samoano de nossa “civilização” orientada por “valores judaico-cristãos”?

Bem, a verdade é a seguinte. O único valor que orienta nossa “civilização tupiniquim” é o valor de troca, orientado para a produção de mais-valor, uma espiral crescente centrada na acumulação de capital. O resto é o resto. Saúde, educação, lazer, fé, justiça e tudo o mais é abocanhado pela sanha de valorização do valor. O próprio Estado brasileiro - nascido com marcas de escravismo, latifúndio e política oligárquica - é um servo fiel da lógica capitalista e das frações burguesas em disputa. O regime político cada vez mais remodela as relações institucionais no sentido de expulsar qualquer conquista democrática que favoreça, mesmo que formalmente, a maioria da população. E o governo Bolsonaro objetiva exterminar não só a democracia formal, mas a democracia construída pelo movimento sindical e sociais, além de suas expressões políticas.

Nesse contexto, falar de amor ao próximo, de políticas públicas universais, de reformas estruturais (agrária, urbana, tributária) e de combate às opressões (de gênero, de etnia, nacional) é coisa de comunista.

Na verdade, o capitalismo, no Brasil e no mundo, só se sustenta pelo aprofundamento das desigualdades, da concentração de riquezas, da superexploração do trabalho, do aumento das opressões e crescimento da violência de classe sobre a maioria da população. Frente a isso não basta dizer não. É preciso socializar os meios de produção e construir uma economia planejada democraticamente sob a direção dos trabalhadores e trabalhadoras. Pois, quem produz as riquezas deve dirigir a sociedade. Isso é um projeto internacional, que começa no espaço nacional.

O ato simples dos chamados “selvagens” de ao estarem no campo para comer ao avistar outrem chamá-lo para compartilhar sua refeição será algo civilizado e cotidiano, próprio de uma sociedade não dirigida pelo capital. Então nosso presente será lembrado como um passado bárbaro.


Referências

DURANT, Will. A história da civilização: nossa herança oriental, volume I. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d.


Frederico Costa 
Professor da Universidade Estadual do Ceará e 
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O Quinze, uma resenha

agosto 20, 2020

 

Provocando um enorme impacto na escrita literária brasileira dos anos 30 do século XX, o romance O Quinze, da escritora cearense Rachel de Queiroz, torna-se um marco obrigatório na história da nossa literatura. Publicado em Fortaleza em 1930, abalou espíritos e provocou alvoroços naqueles, cujas ideias conservadoras e sexistas limitavam-se a, no máximo, reconhecer a possibilidade de simplórios escritos femininos.

Ao referir-se ao ano da grande seca, a autora traduz em palavras precisas e simples, a triste e cruel realidade vivida pelo homem nordestino em busca de sua sobrevivência, descrevendo as angústias e os anseios da região brasileira que sofre secularmente com o drama da terra e de suas agruras nos períodos de estiagem.

O romance aborda uma temática social específica – a seca, dentro de um contexto particular – o drama do retirante nordestino. Contudo, alcança a atemporalidade de um clássico ao construir seu universo ficcional com figuras humanas, dramas sociais e aspectos do cotidiano de pessoas de diferentes classes, de diferentes realidades.

A narrativa se desenvolve em dois planos: a saga da família de Chico Bento, a qual, parte à pé de Quixadá para Fortaleza, em busca de sobrevivência e a relação amorosa entre Conceição e Vicente, um casal cujas diferenças sociais, culturais e morais favorecem a uma incomunicabilidade decisiva para a ruptura de uma relação quase inexistente.

No primeiro plano, as amarguras e desgraças que se sucedem são narradas sem sentimentalismos, porém com uma profunda carga emotiva impressa nas cenas que enriquece enormemente a dramaticidade do trágico destino da família de Chico Bento, a qual representa o povo cearense que é tão castigado e tão sofrido devido as limitações materiais de toda a natureza que lhes são impostas.

No segundo plano, os conflitos e dificuldades do relacionamento de Conceição e Vicente. Este manifesta em seu comportamento e atitudes valores conservadores e machistas que vão de encontro às ideias progressistas e de defesa da liberdade e da autonomia da mulher expressados não apenas por meio de suas palavras, mas também em suas ações e decisões para sua vida, como a de adotar e criar uma criança sozinha.

Linguagem simples, narrativa fluida, cenas descritas de forma realista, que traz à tona o sofrimento humano e o contato íntimo com a morte trazida pela fome, pela seca e pelas tantas outras chagas provocadas pelo martírio vivido pelo retirante em busca de salvar sua vida e a de sua família, a obra O Quinze, ganha universalidade ao ser uma prosa simples no seu enredo, na sua tessitura e, ao mesmo tempo, tão medonha nas provocações e nos impactos que atiça em seus leitores.

M.a Marcilia Nogueira

Professora da Rede Estadual do Ceará, membro do GPOSSHE.

Photo by Tobias Jelskov on Unsplash

 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Lukács e a crítica da Reificação: totalidade e consciência do proletariado

agosto 19, 2020

 

No capítulo central de História e consciência de classe: “A reificação e a consciência do proletariado”, Lukács se propõe a estudar o fenômeno da reificação da sociedade capitalista e suas implicações sobre a consciência do proletariado. Sua reflexão inicial é sobre o “enigma da estrutura da mercadoria”. Nesse sentido, notadamente, buscará em Marx os fundamentos teóricos para elucidar esse problema como uma questão central e estrutural do sistema capitalista em todas as suas dimensões.

Lukács assinala, que na sociedade burguesa a mercadoria[1] consiste num particular inserido na totalidade das relações sociais capitalistas. Sendo esse particular uma expressão do todo que se manifesta no conjunto das relações reais entre os homens. O fenômeno da reificação é resultado das relações de produção capitalista, ou seja, é o processo pelo qual os produtos da atividade do trabalho humano propriamente dito, se transformam num “universo de coisas”; que torna a relação entre os homens uma relação entre coisas; um sistema “cosificado” independente e estranho aos homens, que os subjuga por suas próprias leis. Desse modo, fundamentado em Marx no que se refere à natureza essencial da “estrutura da mercadoria”, Lukács assinala, portanto, que:

 

Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade fantasmagórica[2] que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens (LUKÁCS, 2003, p. 194, itálico nosso).

 

Esse aspecto fetichista da relação entre os homens com o mundo da mercadoria resulta, portanto, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias (Marx). Essa forma social de relação entre os homens é uma consequência do processo de transformação dos objetos de uso em mercadoria. Uma vez que estes só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalho privado, que se executa independentemente entre si. Nesse sentido, Marx assegura que o conjunto desses trabalhos privados constitui a totalidade do trabalho social. Pois, como os produtores só estabelecem contato social por meio da troca de seus produtos do trabalho, os aspectos fundamentalmente sociais de seus trabalhos privados a parecem somente na esfera desse processo de troca. Ou para dizer de outra maneira:

 

[...], os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtores do trabalho e, por meio destes, também ente os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 148, em negrito nosso).

 

Essa caracterização elaborada por Marx, sobre a lógica da produção social da mercadoria permite à Lukács chamar a atenção para os problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da mercadoria: 1) o fetichismo da mercadoria como forma de objetividade e 2) o comportamento do sujeito frente a esse fetichismo. Somente a partir da compreensão dessa dualidade é que conseguimos ter uma visão transparente dos problemas “ideológicos do capitalismo em declínio”. É importante destacar aqui, que o fetichismo da mercadoria é um processo peculiar da nossa época, ou seja, do capitalismo moderno, diz Lukács. Pois, como todos sabem o intercâmbio de mercadorias e as relações comerciais subjetivas e objetivas já existiam desde épocas remotas. Portanto, a questão proposta por Lukács é saber em que medida, a troca de mercadorias no capitalismo é capaz de influenciar o comportamento da vida social em sua totalidade.

Nessa perspectiva de análise, Michel Löwy (2008b), afirma que a “teoria lukacsiana da reificação” em História e consciência de classe é rigorosamente “fundada no materialismo histórico” e, nesse sentido, supera criticamente o legado do romantismo anticapitalista para compreender de forma científica a totalidade da vida em sociedade:

 

É claro que Lukács parte de O capital de Marx, de sua análise do fetichismo e da coisificação, ao nível do processo de produção; mas ele vai além da esfera propriamente econômica, para abordar o conjunto da vida social, nas suas manifestações políticas, culturais etc., à luz do fenômeno da reificação. Ele tenta inserir a contribuição da sociologia alemã nestes dois níveis (econômico e social), nos seus aspectos convergentes ou complementares com a problemática marxista (LÖWY, 2008b, p. 72, itálico no original).

 

No sistema capitalista, a mercadoria transforma-se num elemento universal que “conforma” a sociedade nos seus diversificados graus e âmbitos. Os problemas enfrentados por Lukács, no que diz respeito, a influência da estrutura mercantil dominante nos “os hábitos modernos de pensamento” (como na consciência do proletariado), não podem ser concebidos como uma mera questão quantitativa. Por isso: “A diferença entre uma sociedade em que a forma mercantil é a dominante que influencia decisivamente todas as manifestações da vida e uma em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferença qualitativa” (LUKÁCS, 2003, p. 195).  A totalidade dos fenômenos objetivos e subjetivos das sociedades em foco assume, em face dessa diferença, aspectos de “objetividade qualitativamente diferente”. No sistema capitalista, o processo de troca mercantil repercute sobre o conjunto da vida social, provocando uma “ação desagregadora”. Portanto, essa ação produz uma mudança qualitativa que brota da dominação da mercadoria.

Sobre essa questão Lukács destaca o seguinte:

 

Mas essa diferença qualitativa entre a mercadoria como uma forma (entre muitas outras) do metabolismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformação da sociedade não se mostra somente no fato de a relação mercantil como fenômeno isolado exercer no máximo uma influência negativa sobre a estrutura e a articulação da sociedade, mas no fato de essa diferença reagir sobre o tipo e a validade da própria categoria (LUKÁCS, 2003, p. 196).

 

A forma mercantil configura uma forma universal, que submete a totalidade da sociedade ao jugo do valor de troca.  “[...] esse desenvolvimento da forma mercantil em forma de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade surgiu somente com o capitalismo moderno”, sustenta Lukács (2003, p. 197, itálico no original). E com o desenvolvimento cada vez mais complexo da forma mercantil, se tornou mais insólito e difícil o desvelamento do mundo reificado. A lógica do controle do processo de produção capitalista é obscurecida pela relação de dominação do capital sobre o trabalho. Com efeito, a essência do modo de produção capitalista é ocultada pela ideologia burguesa, pelos seus mecanismos teóricos de interpretação do mundo como a “economia política vulgar”, por exemplo, que afirma ser o sistema capitalista um modo de produção com “leis fixas e eternas”, “natural”, “imutável”. Lukács, porém, assinala que:

 

[...] é somente como categoria universal de todo o ser social que a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica. Apenas nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destrutivos, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo (LUKÁCS, 2003, p. 198, itálico nosso).

 

O caráter “fantasmagórico” da forma mercantil deve ser compreendido, afirma Lukács, sobretudo, como uma relação social objetiva e subjetiva. A mercadoria como um produto do trabalho social, comporta determinações múltiplas, que expressa uma totalidade de relações diversas; uma totalidade de conexões. Desse modo, a universalidade da forma mercantil condiciona, tanto o aspecto subjetivo como o objetivo, uma abstração do “trabalho humano que se objetiva nas mercadorias”. Trata-se aqui de constatar que o “trabalho abstrato” em sua igualdade formal, mensurável, em relação ao “tempo de trabalho socialmente necessário”, a “divisão capitalista do trabalho” e que existe concomitantemente como produto e condição do processo de produção capitalista, surge somente no decurso do desenvolvimento da forma mercantil.

Dessa maneira, destaca Lukács que:

 

Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador [...], o processo de trabalho é fragmentado, numa proporção continuamente crescente, em operações parciais abstratamente racionais, o que interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente (LUKÁCS, 2003, p. 2001).

 

Enquanto a mecanização e a racionalização do processo produtivo avançam e se intensificam, o tempo de trabalho socialmente necessário que elabora a base do “cálculo racional”, é desconsiderado como “tempo médio e empírico” para se representar como uma quantidade de trabalho objetivamente mensurável, que se contrapõe ao trabalhador sob o aspecto de uma objetividade dada, instituída. Compreendemos assim, afirma Lukács, que a unidade do objeto, do produto enquanto mercadoria não converge mais com sua “unidade como valor de uso”. Como corolário da fragmentação do produto do trabalho, o homem, o trabalhador, o sujeito social também é submetido à fragmentação. O homem nesse sentido, “não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como verdadeiro portador desse processo” muito menos domina a totalidade do processo produtivo, do contrário, “ele é incorporado com parte mecanizada num sistema mecânico que já se encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e cujas leis ele deve se submeter” (LUKÁCS, 2003, p. 203-204, itálico nosso).

Nesse processo, o tempo é abstrato, mensurável, quantificável. As condições da produção se transformam. A especialização e a fragmentação na esfera científica e mecanizada do produto do trabalho e os próprios sujeitos do trabalho, portanto, são “igualmente fragmentados de forma racional”. A objetivação da força de trabalho do produtor; o trabalhador em face do conjunto de sua personalidade torna-se “um espectador impotente” com relação aos fatos que circunscrevem a sua própria existência (uma consequência de uma relação social já estranhada). O processo de reificação do trabalho é também, portanto, o processo de reificação da consciência do proletariado e do conjunto de suas relações sociais.

A separação do produtor dos seus instrumentos de produção e, a consequente, expropriação do produto do trabalho pelo capitalista, resultou na desagregação e dissolução da unidade de produção originária. Essas foram as condições impostas pelo modo de produção capitalista moderno, que passou a substituir as relações de produção originárias (que eram mais transparentes diz Lukács), pelas “relações racionalmente reificadas”. De um modo geral, a consequência mais evidente do predomínio das relações mercantis (a forma mercadoria) sobre o conjunto da sociedade moderna é, a reprodução da desumanização plena do homem.

A reificação como um fenômeno fundamental, geral e estrutural da sociedade burguesa penetrou, decisivamente, na estrutura da consciência. Assim, constata-se o fato de que: “[...] Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econômica unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciência – formalmente – unitária para o conjunto dessa sociedade” (LUKÁCS, 2003, p. 221). Essa estrutura é exemplificada por Lukács, no caso do jornalismo, como o traço mais grotesco, em que exatamente a própria subjetividade, “o saber”, “o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato”, deslocado tanto da personalidade do proprietário como da “essência material e concreta dos objetos em questão”, e que é posto em movimento de acordo com sua legalidade específica (Idem, p. 222). Para o filósofo marxista, a falta de convicção dos jornalistas e a “promiscuidade” de suas experiências representam o ápice da reificação capitalista. Pois: 

 

A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma objetivação fantasmagórica não pode, portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo exterior (LUKÁCS, 2003, p. 222-223, aspas no original e itálico nosso).

 

Essa forma de objetivação do trabalho alienado submete todas as relações humanas, a um nível progressivo de fragmentação, desagregação, desumanização e mercantilização. De uma maneira geral, a vida social está inteiramente submetida à racionalização da produção capitalista. Com esse processo, chama atenção Lukács, perdeu-se toda a imagem da totalidade. A totalidade tratada como uma unidade entre a parte e o todo (enquanto um princípio constitutivo do método dialético) e, que apreende a realidade cognitivamente, teria sido despedaçada pela força da especialização do trabalho.

Portanto, no que diz respeito à reificação, “isso significa que as diferentes classes sociais têm um método cognitivo distinto, e uma capacidade de compreensão diferente do fenômeno, de sua gênese e de sua estrutura”. Dessa maneira, a capacidade ou incapacidade de um economista transpor a imediaticidade da forma reificada das relações socioeconômicas da vida cotidiana, não é produto de suas qualidades intelectuais próprias, mas da perspectiva de classe que sua compreensão da realidade objetiva se vincula, pois, “para Lukács uma ciência que se situa do ponto de vista da burguesia não pode trazer à luz as formas reificadas”, destaca Löwy (2008b, p. 77).

 Por Antonio Marcondes

GPOSSHE-UECE

Photo by Morning Brew on Unsplash

REFERÊNCIAS

LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2008b.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, Karl.  O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.



[1] “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel], isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção” (MARX, 2013, p. 113).

[2] De acordo com Marx: “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais [...]. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Idem, p. 147, itálico nosso).

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Cronograma - Leitura Conjunta de "A mãe"

agosto 05, 2020

    O livro A mãe, de Máximo Górki, escrito em 1907, apresenta o processo da revolução socialista, na Rússia, sob a perspectiva de uma mulher oprimida que conquista a participação política na luta de classes. Obra clássica da literatura russa, o romance relata a vida de Pélagué, uma mãe, viúva, operária e o seu engajamento na militância e na luta por melhores condições de vida e de trabalho na fábrica em que ela, seu filho Pavel e seus amigos trabalham.


CRONOGRAMA







domingo, 2 de agosto de 2020

Calibã e a bruxa, uma resenha

agosto 02, 2020

O livro Calibã e a Bruxa, da ativista feminista e professora Silvia Federici, apresenta uma investigação de como a condenação de mulheres a “bruxas” no começo da Era Moderna mantém uma profunda relação com a acumulação primitiva e o desenvolvimento do capitalismo. Por meio de uma analogia com a peça teatral “A tempestade”, de William Shakeaspeare, Silvia intitula seu livro usando os nomes de personagens carregados de uma simbologia que transcende a verossimilhança sem diminuir o caráter literário.

A autora apresenta uma ampla pesquisa sobre as mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo, através da qual afirma com argumentação contundente que a caça às bruxas tentou destruir o controle que as mulheres haviam conseguido exercer sobre sua própria função reprodutiva, construindo o caminho para o desenvolvimento de um regime patriarcal um tanto mais opressor.

Analisando as circunstâncias históricas específicas, o contexto das crise demográfica e econômica ocorridas na Europa nos séculos XVI e XVII, a autora examina a reorganização do trabalho doméstico, da vida familiar, da criação dos filhos, da sexualidade, das relações entre homens e mulheres e da relação entre produção e reprodução nesse período e aponta fortes conexões entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que aprisionou e subjugou as mulheres ao trabalho reprodutivo.

Uma obra essencial não apenas pelo amplo conhecimento que oferece como também pelo fato de ampliar nossa consciência sobre o caráter global do desenvolvimento capitalista e nos ajudar a entender a dominação de uma classe e suas implicações em termos práticos, políticos e ideológicos na formação de toda uma sociedade.  

Marcília Nogueira

Mestra em Educação e professora da rede pública estadual do Ceará.
Foto: acervo pessoal de Karla Costa, cedida ao GPOSSHE.