segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O surgimento da filosofia irracionalista puramente burguesa

agosto 23, 2021

 

Durante e após a Revolução Francesa, a filosofia romântica que combateu o Iluminismo idealizava uma suposta era dourada da sociedade feudal a que a humanidade deveria retornar, como forma de eliminar as mazelas provocadas pelo capitalismo em ascensão (desagregação da família, expulsão do homem do campo, superexploração do trabalho fabril, inclusive de mulheres e crianças, miséria crescente nas cidades, etc.) Era, assim, uma filosofia reacionária que em vão desejava que a história andasse para trás. De sua negação do irreversível progresso histórico das sociedades humanas resultava o seu caráter irracional que, por seu turno, condicionava a crença na impossibilidade de cognição da realidade objetiva, de apreensão da essência das coisas que existem independentemente da consciência humana. O romantismo, portanto, foi uma arma ideológica da nobreza contra a burguesia que buscava a conquista do poder político para pôr fim aos privilégios dos nobres e assim se emancipar socialmente.

A burguesia, no entanto, cuja ascensão social e econômica foi o principal motor do surgimento do pensamento iluminista dos grandes filósofos dos séculos XVII e XVIII, daqueles que utilizaram a razão para conformar uma visão de mundo progressista e dialética, também produziria ela própria uma filosofia irracionalista. Vejamos como isso se deu.

Em 1848 estouraram revoluções democráticas em vários países europeus que almejavam acabar com as monarquias que se fortaleceram após a derrota de Napoleão no começo do século XIX. A luta revolucionária, porém, não se verificou apenas entre a burguesia e a nobreza, pois surgiram tendências socialistas no seio das massas proletárias que assim se colocaram pela primeira vez na história moderna com demandas próprias independentes e, portanto, antagônicas às da burguesia.

Por temor às aspirações populares por melhores condições de vida, a burguesia resolveu conciliar com as monarquias européias, selando assim a derrota dessa onda revolucionária democrática que ficou conhecida como a Primavera dos Povos. As monarquias mantiveram assim o poder político em troca de lentas e mesquinhas reformas na legislação que garantiriam a emancipação social da burguesia, que deste modo renunciou a um poder político próprio. Assim, anota Lukács que na Prússia - por essa época o estado alemão mais industrializado - a produção era capitalista, a forma de vida era burguesa, mas o poder político continuou nas mãos da dinastia dos Hohenzollern e dos nobres proprietários de terra (junkers). Na França, a burguesia capitulou diante do imperador Napoleão III, na Áustria-Hungria houve um processo de aburguesamento da monarquia, na Itália a unificação do país foi feita “por cima”, sendo coroado rei Vitor Emanuel II, soberano da região da Sardenha, e na Inglaterra também houve uma onda conservadora (Era Vitoriana) com a derrota do movimento dos trabalhadores conhecido como “cartismo”[1].

Este acontecimento histórico não podia deixar de ter consequências na ideologia alemã da segunda metade do século XIX: de fato, os filósofos que haviam representado no plano das idéias a luta da burguesia pela vitória da revolução democrática e, por conseguinte, pelo fim dos privilégios da nobreza, a saber, Hegel e Feuerbach, vão perder espaço para aquele que vai se firmar como o novo ideólogo da burguesia não só alemã, mas de toda a Europa: o filósofo alemão Schopenhauer.

Assim, enquanto a liderança da filosofia alemã durante e logo após a Revolução Francesa representou uma onda de pensamento progressista que influenciou toda a Europa continental (notadamente através de Hegel), depois da Primavera dos Povos de 1848 a filosofia alemã irá novamente exercer a liderança ideológica na Europa, desta feita para garantir o pensamento reacionário necessário ao combate a este novo fato político europeu consistente na luta independente do proletariado e das massas miseráveis que o capitalismo havia produzido. Lukács conclui que a influência internacional da filosofia de Schopenhauer tem assim uma base social determinada: o ser social da burguesia[2]. E tal pensamento reacionário, por negar o fato do progresso das sociedades humanas até então ali ocorrente, sempre prenhe de contradições - no capitalismo industrial nascente, por exemplo, o aumento da produção num ritmo antes nunca visto, o intenso e irrefreável desenvolvimento da técnica e da ciência, lado a lado com a extrema miséria do povo trabalhador -, necessariamente descambaria para o irracionalismo resultante do seu inevitável caráter idealista, anti-dialético e a-histórico.

Schopenhauer escreveu a sua obra mais importante, “O Mundo como Vontade e Representação”, no ano de 1819, e praticamente foi um desconhecido na primeira metade do século XIX. Sua obra passará a ter uma influência predominante na intelectualidade burguesa apenas na segunda metade do século XIX porque nela “se manifestam tendências que, em consequência da situação histórico-social que acabamos de esboçar, irão se tornar dominantes após o fracasso da Revolução de 1848. Desse modo, com Schopenhauer, inicia-se o papel funesto da filosofia alemã: o de ser o guia ideológico da reação mais extrema.”[3] Sobre ele Lukács também escreveu o seguinte:

 

Se definirmos Schopenhauer como o primeiro irracionalista que surge sobre uma base puramente burguesa, então não é tão difícil identificar os traços pessoais correspondentes em seu ser social. O curso de sua vida distingue-o de modo preciso de todos os seus predecessores e contemporâneos alemães. Ele é um grande burguês, em oposição aos outros, de condição pequeno-burguesa, ou como Fichte, quase proletária. Neste sentido, Schopenhauer não participa da via-crúcis comum da intelectualidade pequeno-burguesa alemã (como preceptor etc.), mas passa boa parte da sua juventude viajando por toda a Europa. Após um curto período como aprendiz de comerciantes, ele leva uma vida tranquila de quem vive de rendas, na qual também a sua relação com a universidade – a docência em Berlim – desempenha um papel apenas episódico. Schopenhauer é, portanto, na Alemanha, o primeiro grande exemplo de um escritor rentista, um tipo que há muito já havia se tornado importante para a literatura burguesa dos países capitalistas desenvolvidos. (…) Essa falta de qualquer preocupação material na vida constitui a base da independência de Schopenhauer não só em relação às condições semifeudais de vida determinadas pelo Estado (carreira universitária etc.), mas também em relação às correntes espirituais a elas ligadas. Nesse sentido, é-lhe possível, em todas as questões, assumir, sem sacrifício, uma posição pessoal livremente escolhida.[4]

 

Tentaremos num próximo texto esclarecer algumas dessas tendências irracionalistas de Schopenhauer, sempre com base nos valiosos ensinamentos de Lukács.

 

Sávio Bastos



[1]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 174/175.

[2]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 175.

[3]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 176/177.

[4]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 177/178.

 

Foto: Gabriella Clare Marino

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Dialética e ciência: questões de método em Lukács

agosto 16, 2021

O método constitui um elemento central na produção do conhecimento científico. Ele é a base para a fundamentação dos pressupostos e procedimentos que garantem legitimidade epistemológica para a inteligibilidade dos fenômenos que ocorrem no mundo natural e social. Nesse sentido, a dialética enquanto método científico tem como premissa básica, desvelar as contradições da coisa em si, isto é, evidenciar a essência que há por trás da aparência.

Em Lukács (referência maior do chamado marxismo ocidental), a dialética adquire um estatuto ontológico, ou seja, ela é uma expressão das contradições reais, dos processos, relações, movimentos e conexões intrínsecas da objetividade do mundo social enquanto uma totalidade histórico-concreta.

Como podemos depreender da Ontologia de Lukács, a divisão social do trabalho incumbe o indivíduo de múltiplas tarefas, ricamente heterogêneas entre si, cuja realização correta desperta nele uma síntese das suas habilidades e capacidades diversas. Assim, o desenvolvimento das capacidades humanas possibilitadas pela complexificação da divisão social do trabalho constitui um processo decisivo na reprodução social como fator preponderante da história.

Quando Lukács pensa as questões do método, ele compreende que a realidade social é um produto das ações concretas dos indivíduos em seus diferentes âmbitos de relações. Mas é sobretudo no que diz respeito aos fundamentos do trabalho, que podemos entender, de forma ontológica, a gênese e desenvolvimento do mundo dos homens. Dessa maneira, afirma Lukács: “[…] todo ato prático de trabalho deve ser precedido de um espelhamento ideal – que corresponda o mais precisamente possível à verdade – do processo teleológico e do seu mundo objetal” (2013, p. 614).

A compreensão ontológica da realidade material do mundo tem no processo de trabalho seu ponto de partida. A “reprodução verídica da realidade” constitui um fato que está diretamente ligado, fundamentalmente, à certeza indubitável de que a realidade existe concretamente em si; independentemente das vontades, desejos e valores do sujeito cognoscente. Este postulado ontológico está relacionado a afirmação de Marx de que não é a consciência que determina o ser social, mas o ser social que determina a consciência. Ou seja, a materialidade objetiva do mundo real é uma dimensão ontológica primária determinante.

Com efeito, aqui podemos assinalar um momento importante da constituição do método dialético: o pôr teleológico conscientemente realizado engendra um distanciamento no espelhamento da realidade. Assim, a partir desse distanciamento surge a relação sujeito-objeto na acepção plena do termo. Esses dois momentos implicam concomitantemente o surgimento da apreensão conceitual dos fenômenos da realidade e sua apreensão correta por meio do pensamento e da linguagem. Nesse sentido, o método dialético repousa no fato de que “as categorias são modos de ser da realidade; são determinações da existência”.

A ciência enquanto um espelhamento desantropomorfizador da realidade põe no seu centro a generalização das conexões constitutivas da realidade concreta do mundo material e social. Por isso,  ela tem como objetivo principal apreender a verdade em si dos fenômenos e processos e, por conseguinte, postular a verdade das coisas. Sendo assim, como diz Hegel, o verdadeiro aparece como sujeito e como devir, isto é, como movimento e contraditoriedade reais.

Para Lukács, com o ato de pôr a consciência dá início a um processo real de transformação da materialidade existente em si. Nesse aspecto, o pensamento cientificamente orientado se originou a partir da preparação e execução do processo de trabalho. Na busca pela realização do pôr do fim, o homem desenvolve suas capacidades cognitivas, tais como, o ato de pensar, escolher, observar, generalizar. O trabalho realiza, materializa e objetiva os fins estabelecidos na consciência do indivíduo.

Entendemos aqui que a realidade objetiva (socialmente produzida) apreendida pelo método, é resultado da práxis humana, que tem no trabalho seu modelo originário. Lukács desenvolve plenamente, em sua obra de maturidade, o método dialético de Marx a partir dos pressupostos de uma ontologia materialista. De acordo com o filósofo húngaro, o método de Marx consiste em desenvolver uma análise histórico-sistemática e abstrativo-teórico da realidade objetiva. Essa perspectiva metodológica coloca o pesquisador diante da tarefa científica de reconstituir no plano do pensamento o movimento histórico-concreto e imanente dos fenômenos da realidade material em suas determinações essenciais.

Exemplificando o estudo da realidade social, “Marx, após ter analisado sistematicamente  o mundo do capitalismo em sua necessidade e compacticidade econômica rigidamente determinada por leis, expõe num capítulo particular a sua gênese histórica (ontológica), a chamada acumulação originária, uma cadeia secular de atos de violência extraeconômicos mediante os quais foi possível a criação das condições históricas que fizeram da força de trabalho a mercadoria específica que constitui a base das leis teóricas da economia do capitalismo” (Lukács, 2012, p. 311).

Com base nessa reflexão de Lukács, entende-se, que a gênese histórica da “renda da terra”, do “capital comercial” e do “capital monetário”, constituem o pressuposto para a se compreender teoricamente os fundamentos que articulam o funcionamento do modo de produção capitalista atualmente.

Quando se afirma que é a partir do objeto que começa o processo de pesquisa da realidade, isso significa dizer que o mundo exterior, no qual o pesquisador também está inserido, é a referência principal para a produção do conhecimento. A consciência nesse caso tem um papel de elaborar, de forma categorial/conceitual, as características constitutivas do movimento inerente da realidade. Metodologicamente falando, a consciência que espelha a realidade assume um caráter de possibilidade. O espelhamento é o oposto do ser, mas ao mesmo tempo ele constitui o veículo através do qual surgem novas objetividades no ser social.

Por isso, diferentemente do positivismo que procura conhecer os fatos sociais apenas em suas manifestações empiricamente observáveis, a dialética marxista busca apreender o movimento, as contradições e as legalidades internas próprias da essência em si da realidade.

A historicidade dos processos sociais é uma determinação ontológica do real. Gênese, desenvolvimento, movimento e finitude, compõem as dimensões específicas da forma de ser dos fenômenos da existência humana. Tudo que existe no mundo social é uma determinação do processo de autocriação dos homens em suas atividades econômicas, elaboração da cultura e instituição da sociedade política.

Portanto, o objetivo do método dialético-materialista é chegar a verdade dos fatos. A dialética não é apenas um “princípio cognitivo”, mas sobretudo “constitui a legalidade de toda realidade” materialmente existente em suas formas concretas e simbólicas. A dialética concebida em termos ontológicos só tem sentido se for universal, ou seja, um processo dinâmico e contraditório do movimento da história da humanidade.

Como destaca Lukács, não basta se orientar para o real, mas para a sua totalidade. Totalidade que consiste na própria objetividade do mundo real em suas conexões e processos de interação mutuamente determinados. Contudo, um outro elemento fundamental do método dialético em Lukács é a questão da abstração. Esta que é uma forma de espelhamento da realidade, mediante a qual podem ser apreendidos e compreendidos os processos globais, que obrigatoriamente permanecem ininteligíveis em sua complexidade imediata.

 O método dialético na concepção de Lukács, seguindo os ensinamentos de Marx, visa se apropriar das determinações imanentes da cosia em si; das conexões internas dos fenômenos, suas relações e formas de desenvolvimento. O objetivo da dialética marxista é apreender idealmente o movimento efetivo da realidade; a apropriação mental do conteúdo concreto do real e de sua transformação.

Assim, por meio de sucessivas aproximações ao objeto (concreção real), o método dialético vai compondo um todo articulado; do dado caótico imediato de um todo ao “concreto pensado” rico de determinações e relações diversas. “O concreto é concreto porque é uma síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008, p.258-259).


Antonio Marcondes

GPOSSHE/UECE/GEM/UFC


Referências

 

LUKÁCS, GPara uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

 

__________. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

 

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.


Foto de Alex Block

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Conquista da Espanha para o proletariado do capitalismo de plataforma

agosto 02, 2021

Em maio de 2021, na Espanha, foi alterada a lei nacional de trabalho, garantindo direitos trabalhistas aos entregadores de plataformas digitais, depois de muita luta, resistência e disputas judiciais. Já em 2020, o Tribunal Supremo de España decidiu que os entregadores deveriam ser tratados como empregados (STS 805/2020, de 20 de setembro). Isso resolveu a disputa sobre o tipo de trabalho dos entregadores: empregados ou autônomos. A ofensiva judiciária das empresas capitalistas defendendo a atividade dos entregadores como trabalho autônomo não foi aceita, pois o Judiciário entendeu existir efetiva relação de emprego entre entregadores e plataformas digitais.

De fato, sob a forma de trabalho autônomo existe uma relação salarial e produção de mais-valor. Proletários e proletárias com contratos “zerados”, “uberizados”, “pejotizados”, “intermitentes” e “flexíveis” são obrigados a cumprir “metas” impostas por diversos métodos de assédio com o intuito de dinamizar a acumulação capitalista. O capitalismo do século XXI aproveita todos os espaços para a conversão do trabalho em gerador de mais-valor. E todos os meios são válidos para isso.

Essa pequena vitória aplicou-se apenas aos entregadores de plataformas, como Glovo, Deliveroo e Ubereats e, por enquanto, não há ampliação para outras atividades “uberizadas”. O Real Decreto-Ley 9/2021 (RDL 9/2021), publicado em 11 de maio de 2021, garantiu os direitos trabalhistas de pessoas que se dedicam às entregas no domínio das plataformas digitais (empresas capitalistas). Estabelecendo a presunção plena de contratação dos trabalhadores de entrega de alimentos através das plataformas digitais, mas também desenvolvendo um direito à informação a favor dos representantes dos trabalhadores sobre os parâmetros, regras e instruções nos quais se baseiam os algoritmos ou sistemas de inteligência artificial que determinam o conjunto das relações de trabalho.

 A reforma espanhola, aprovada em maio, deu às empresas um prazo de três meses para se adequar às novas regras, gerando reação. A Deliveroo, uma das empresas líderes do setor no país, está considerando deixar o mercado espanhol, pois, sem citar a conquista social dos trabalhadores, afirma que as mudanças exigiriam um nível muito alto de investimento com retornos potenciais de longo prazo muito incertos. Interessante que essa empresa, de origem inglesa fundada em 2013, opera em mais de duzentos locais em todo o Reino Unido, Holanda, França, Bélgica, Irlanda, Espanha, Itália, Austrália, Cingapura, Hong Kong, Emirados Árabes Unidos e Kuwait. 

Provavelmente, a Deliveroo, se abandonar a Espanha, irá priorizar mercados com maiores retornos, isto é, com taxas de exploração mais elevadas. Leia-se sem direitos sociais e trabalho mais precarizado. Eis como funciona o capitalismo.

 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.



[1] Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.