quinta-feira, 18 de julho de 2024

Um exemplo de obscurantismo: é preciso divulgar o pensamento racional e crítico

julho 18, 2024

Designed by Freepik


Frederico Costa, professor da UECE


  Tenho costume de ir com parentes, no final de semana, a cultos em igrejas cristãs protestantes. Frequento, geralmente, uma igreja histórica batista, onde encontro funcionários públicos, profissionais liberais, pequenos empresários e setores populares. Os pastores são formados em seminário e desenvolvem uma mensagem tranquila sobre questões morais permeadas de uma perspectiva sobrenatural. Em síntese, uma típica abordagem asséptica pequeno burguesa.


  Não participo do ritual composto por uma série de comandos como sentar/levantar, baixar a cabeça, orar, cantar hinos ou repetir palavras e frases. Apenas cumprimento as pessoas e fico quieto, lendo algum livro. Pois, não tenho nenhum interesse no roteiro típico da mensagem central dos pastores. Em essência, o preletor retira passagens da Bíblia para dar autoridade a sua ideologia e interesses para os dias atuais. 


  Bem, a fé é um assunto privado. Quem quiser crer, que creia nessas artimanhas discursivas, adornadas com o mito da inspiração do “Espírito Santo”.


  No entanto, no último domingo algo me chamou a atenção. O pastor disse que todos os eventos históricos aludidos na Bíblia eram verídicos, já que seu tema era sobre Noé. Além disso, aludiu a uma pregação anterior em que teria demonstrado a realidade do Dilúvio e da Arca de Noé.


  Na verdade, pesquisadores cristãos, católicos e protestantes, apesar de sua fé já demonstraram que a Bíblia possui uma série de camadas textuais, contradições, interesses políticos e versões diferentes. De fato, a Bíblia é um produto histórico de mãos humanas. Se foi inspirada ou não por algum deus depende da fé ou descrença de cada um.


  Evaristo Eduardo de Miranda, cristão católico do Instituto Ciência e Fé, no livro Bíblia: história, curiosidades e contradições, reconhece que a Bíblia cristã não nasceu pronta, sendo fruto de um longo e até tumultuado processo de elaboração. Ela reúne textos legislativos, históricos, teológicos, poéticos, ficcionais, epistolares, testemunhais e mitológicos, tendo afirmações completamente erradas, equivocadas e sem fundamento. Noutras palavras, a Bíblia não é inerrante.


  O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) surgiu de vários documentos diferentes, não tendo um redator original. Esses textos foram sucessivamente unificados num conjunto elaborado por redatores e escribas que trabalharam através de cortes, interpolações e colagem, por exemplo.


  A utilização de camelos como animais de transporte ou mesmo a menção da existência de filisteus e arameus do Livro do Gênesis não se encaixam com os períodos históricos descritos no livro. Nada disso existia naqueles dias.


  Já sobre a mitológica Arca de Noé, apenas o contexto cultural da região, as tradições dos povos da Suméria e o Exílio Babilônico explicam a incorporação dele no Pentateuco.


  Mas, por que os pastores não dizem isso aos fiéis? Por que não incentivam o pensamento racional e crítico em suas igrejas? Por que os fiéis não podem conhecer a história de seu livro sagrado e de sua igreja?


  Porque a ideologia da inerrância da Bíblia sustenta o domínio do clero sobre os fiéis. Porque os pastores, tendo consciência disso ou não, passam a ser vistos como inerrantes também.


Vamos pensar nisso.


Bibliografia

MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Bíblia: história, curiosidades e contradições. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

sábado, 13 de julho de 2024

Capistrano de Abreu: um legado na Historiografia Brasileira

julho 13, 2024

 



Élcio Cavalcante, Professor de História


  João Capistrano Honório de Abreu foi um importante historiador cearense do final do Século XIX e início do Século XX, conhecido por suas contribuições para a historiografia brasileira. Ele se destacou por sua abordagem crítica e por utilizar fontes variadas em suas pesquisas. Capistrano de Abreu também foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sua obra é fundamental para o entendimento da História do Brasil.

  O renomado historiador Capistrano de Abreu nasceu em Maranguape – Ceará em 23 de outubro de 1853 e faleceu em 13 de agosto de 1927. Além de historiador, ele foi também professor e jornalista. Sua obra mais conhecida é “Capítulos de História Colonial”, onde ele analisa criticamente o período colonial brasileiro. Capistrano de Abreu também se destacou por sua atuação na defesa do abolicionismo e por sua participação no movimento republicano. Sua abordagem inovadora e crítica o destacou como um dos principais historiadores do Brasil.

  Intelectual de alta relevância para a história e a cultura brasileira, ele teve uma educação autodidata, era poliglota, escrevia e falava o francês e o alemão, além de conhecer línguas e dialetos indígenas, posteriormente, estudou direito no Recife. Além de suas contribuições para a historiografia brasileira, Capistrano também teve atuação política, sendo membro do Partido Republicano. Sua obra é vasta e abrange temas como a colonização do Brasil, o período colonial, a escravidão e a história indígena, deixando um legado significativo para o estudo da História do Brasil.

   Em síntese, Capistrano de Abreu foi um historiador visionário e crítico, cujas contribuições para a historiografia brasileira são inestimáveis. Sua abordagem inovadora, o uso de fontes variadas e seu compromisso com a verdade histórica o tornam uma figura fundamental no estudo da História do Brasil. Seu legado perdura até os dias atuais, influenciando gerações de historiadores e estudiosos. Capistrano de Abreu deixou uma marca indelével na história do país e seu trabalho continuará a ser estudado e admirado por muitos anos pelas gerações do agora e do porvir.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

O problema da totalidade em Lukács: seu caminho metodológico III

julho 11, 2024






 Por Antonio Marcondes, Pós-Doutor em Educação - GPOSSHE-UECE


  Com efeito, o proletariado enquanto sujeito-objeto idêntico da autêntica história humana não é, absolutamente, “uma realização materialista” que sobrepuja as “construções do pensamento idealista”, do contrário, isso é muito mais “um hegelianismo exacerbado”, que tinha a intenção de transpor objetivamente o “próprio mestre”, colocando-se, audaciosamente, acima de toda realidade. Como vai dizer Mészáros (2011), Lukács estava sendo mais hegeliano do que Hegel. Como em Hegel, Lukács em História e consciência de classe identificava “alienação” com “objetivação”. Por isso mesmo, o sujeito-objeto idêntico ao superar a alienação, acaba também por superar a objetivação. O problema é que como para Hegel o objeto, a coisa, só existem enquanto “exteriorização da consciência de si”, a “retomada da exteriorização” no sujeito constituiria o fim da realidade objetiva como um todo. Essa “exageração hegeliana” de Lukács no livro de 1923 é corrigida na Ontologia quando ele fundamenta de forma plenamente materialista o fato de que as categorias constitutivas do ser social são determinações do mundo objetivo, portanto, não é a consciência que determina a realidade, mas, a realidade, o mundo objetivo é que determina a consciência do ser social.

  Lukács no esforço de situar criticamente os problemas teórico-metodológicos presentes em História e consciência de classe, reconhece de fato os equívocos intrínsecos deste livro, no entanto, o filósofo marxista húngaro também reconhece que algumas categorias como a mediação e a totalidade, por exemplo, já eram demonstradas em sua “objetividade” e “movimentos ontológicos efetivos”, o que certamente, representa um ponto de partida em direção a uma autêntica “ontologia marxista do ser social”. Assim: “A categoria de mediação como alavanca metódica para a superação do simples imediatismo da experiência não é, portanto, introduzir algo de fora (subjetivamente) nos objetos [...]”, do mesmo modo, esse reconhecimento, no nosso entendimento, vale para a categoria da totalidade, no sentido de que ela constitui uma posição metodológica central do método dialético de Marx e que por isso mesmo, já se configura uma determinação (ainda que duplamente determinada) ontológica quando Lukács se refere a ela enquanto uma totalidade concreta, ou seja, uma categoria que reflete os antagonismos internos da sociedade capitalista, em suas sucessões e interconexões, onde os fatos sociais só ganham sentido quando referidos ao todo enquanto elementos do devir histórico.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

Sobre a revolução antiescravista e antimonárquica brasileira de 1888-1891

julho 10, 2024

 



Publicamos citação do clássico República do capital: capitalismo e processo político no Brasil, do cientista político Décio Saes, sobre um período importante da formação econômico-social brasileira: a superação do modo de produção escravista colonial, o fim do Estado escravocrata-monárquico e a estruturação do Estado burguês. Tal processo deixou marcas no presente e é um tema importante para a pesquisa nas ciências humanas nacionais, em particular na área da educação.


**********


    Desde logo, coloca-se a pergunta: qual é a natureza dessa revolução? Defini-la implica não descobrir qual a relação existente entre a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Assembleia Constituinte, como também superar caracterizações simplificadas desses episódios, considerados isoladamente: seja a caracterização da Abolição como a conclusão lógica do processo de substituição do trabalhador escravo pelo trabalhador imigrante, seja a caracterização da Proclamação da República e da Assembleia Constituinte como os aspectos centrais de um processo de substituição do regime monárquico por um regime presidencial. Na verdade, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Assembleia Constituinte constituem aspectos e momentos de um processo mais profundo de transformação da natu­ reza de classe do Estado brasileiro; ou seja, o processo de transformação de um Estado escravista moderno, cujas instituições políticas estão fundadas no privilégio do homem livre com relação ao escravizado (o Estado imperial), num Estado burguês, cujas instituições políticas estão fundadas na concessão, a todos os indivíduos, do atributo formal da cidadania (o Estado republicano). A Abolição do trabalho escravo mina a base escravista do Estado imperial, ao destruir o critério - a distinção entre homem livre e escravizado a partir do qual se organizam todas as instituições políticas imperiais (Executivo, Senado, burocracia, Guarda Nacional, etc.); a Proclamação da República completa a tarefa destruidora da Abolição, ao derrubar, não apenas o regime monárquico, como também todas as instituições políticas de base escravista (= instituições particularistas); a Assembleia Constituinte se define como o momento de construção de novas instituições políticas, formalmente abertas a todos os cidadãos e portanto dotadas de uma aparência universalista. Em suma, a Revolução antiescravista e antimonárquica dos anos 1888-1891 representa a formação de um novo tipo de Estado de classe, o Estado burguês; ou, por outra, a definição de um outro tipo de dominação de classe, a dominação política burguesa (p. 21-22).



SAES, Décio. República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2023.


sábado, 29 de junho de 2024

Vladimir Maiakovski, o poeta da Revolução Russa

junho 29, 2024

 


Élcio Cavalcante, Professor de História

 

  Vladimir Maiakóvski foi um poeta, dramaturgo, teórico e ensaísta russo que viveu durante a Revolução Russa e foi um dos principais representantes do futurismo russo. Sua poesia era marcada por uma linguagem inovadora, uso de metáforas ousadas e uma forte inclinação política. Maiakóvski era conhecido por seu engajamento político e revolucionário e principalmente sua paixão pela causa comunista, o que se refletia em seus escritos. Sua obra abordava temas como a luta de classes, a esperança na construção de um novo mundo e a crítica à sociedade capitalista. Maiakóvski também foi um importante dramaturgo e ensaísta, deixando um legado significativo na literatura russa do Século XX.

  O poeta russo, Vladimir Vladimirovitch Maiakovski, nasceu em 19 de julho de 1893 e faleceu em 14 de abril de 1930. Ele foi um dos principais representantes do futurismo russo, movimento artístico que buscava romper com as tradições estéticas do passado e abraçar a modernidade, a tecnologia e a inovação. Maiakóvski era conhecido por sua poesia revolucionária, que celebrava a revolução e o Socialismo. Sua obra mais famosa, “A nuvem de calças” (1915), reflete sua visão de mundo e seu compromisso com a transformação social. Além disso, Maiakóvski também foi um importante agitador cultural, participando ativamente da promoção da arte revolucionária na Rússia pós-revolucionária. Sua influência na literatura e na cultura russa perdura até os dias atuais.

  Em síntese, Vladimir Maiakóvski foi um poeta revolucionário cuja obra refletia não apenas as mudanças sociais e políticas de sua época, mas também buscava inspirar e mobilizar as massas em prol de um futuro mais justo, fraterno e igualitário. Sua contribuição para a literatura russa e para o movimento artístico do futurismo é inegável, e seu legado permanece como uma fonte de inspiração para aqueles que buscam expressar suas ideias por meio da arte e da poesia. Maiakóvski deixou um impacto duradouro na cultura russa e internacional, sendo reconhecido como um dos grandes poetas do Século XX. Sua coragem, paixão e compromisso com suas convicções o tornam uma figura emblemática da Revolução Russa e um exemplo do poder transformador da arte.


O problema da totalidade em Lukács: seu caminho metodológico II

junho 29, 2024




Antonio Marcondes, Pós-doutor em Educação, GPOSSHE-UECE


A trajetória intelectual de Lukács foi, durante mais de sessenta anos, um gigantesco esforço para conferir ao marxismo o seu adequado fundamento ontológico, materialista. E nesse percurso não foram poucas as influências que marcaram suas principais obras. Desde o seu neokantiano A alma e as formas (1911), o trânsito para o hegeliano A teoria do romance (1914-1915), ao existencialismo de Kierkegaard e à assimilação da filosofia e sociologia alemãs com Dilthey, Simmel, Weber, Lukács, seguramente, pode ser considerado o pensador marxista do século XX que mais mergulhou profundamente no melhor da tradição teórico-filosófica clássica e que manteve com ela uma rica relação de apropriação e superação crítica. Assim, a partir do seu primeiro encontro com as obras de Marx*, o filósofo húngaro empreendeu uma caminhada cheia de percalços, paradoxos, autocríticas, renegações, mas, acima de tudo, de enorme lucidez filosófica e científica, pois, a relação com o pensamento de Marx “é a verdadeira pedra de toque para todo intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a ela” (LUKÁCS,1983, p. 1)**.

Lukács passa por muitos aprendizados e reviravoltas em sua vida política e intelectual, acentuadamente, a partir da eclosão da primeira Guerra Mundial (1914-1918), da conflagração da Revolução Bolchevique em 1917, bem como, seu ingresso no Partido Comunista Húngaro em 1918 e a proclamação da República Húngara dos Conselhos em março de 1921, assim, todos estes fatos históricos implicarão em mudanças decisivas em sua trajetória. Embora neste último contexto momento, ele parta para o exílio na Áustria em virtude da derrota da República para as forças fascistas. É exatamente aí onde iniciaria sua fase de assimilação do marxismo. Em tal circunstância, Lukács superaria a sua “ética voluntarista”, mas se projetaria num “esquerdismo” messiânico e numa concepção epistemológica baseada num “idealismo filosófico”. Nesse sentido, segundo José Paulo Netto (1981, p. 33):

O tempo de Lukács é determinado, por um lado, pela chamada crise geral do capitalismo. A primeira guerra imperialista, a falência de 1929, a emergência do nazifascismo, o capitalismo tardio e manipulador cristalizado após 1945 [...]. De outro lado, figura o aborto da revolução no Ocidente, com o confinamento do socialismo no Leste, e originalmente num país cujas peculiaridades sócio-econômicas propiciaram o clima em que se instituiu um sistema político autocrático e repressivo, encarnado no modelo stalinista.

É na convergência destes acontecimentos traumáticos e seus desdobramentos político-ideológicos que Lukács reelabora teoricamente seu pensamento crítico, pois, é na alternativa socialista que o filósofo magiar encontrará uma saída para estas crises. Entretanto, esta alternativa socialista que Lukács preconizava era mais “desejada” do que “real”. Com efeito, esta conjuntura histórica de “vaga revolucionária”,

[...] exige de Lukács o conhecimento da vida econômica: assim, ele mergulha nas teorias de Rosa Luxemburgo, o que contribui para que reaja duramente ao burocratismo de Béla Kun; esta reação, todavia, não tem nenhum suporte social: só resta a Lukács o apelo a um messianismo utópico – a hipertrofia das suas exigências éticas condu-lo a posições que mais tarde ele classificará como “esquerdistas”. A conclusão da crise se faz, portanto, com a esperança de que a miséria capitalista se resolva na imediata construção da nova sociedade (NETTO, 1981, p. 35, itálico no original). 

É neste contexto histórico e teórico que Lukács irá publicar sua obra mais polêmica no âmbito dos estudos da dialética marxista: História e consciência de classe (1923). Com a publicação deste livro, Lukács irá marcar definitivamente seu nome na constelação do marxismo, para o “bem” ou para o “mal”. Sumariamente, o filósofo marxista caracteriza da seguinte forma este momento: 

As experiências da revolução húngara mostraram-me claramente a fragilidade de todas as teorias sindicalistas (a função do partido na revolução), mas persistiu em mim, ao longo dos anos, um subjetivismo ultraesquerdista (por exemplo, minha posição nos debates em 1920, sobre a ação parlamentar e a minha atitude em relação ao movimento de março de 1921). Tudo isso me impedia de compreender, de modo correto e verdadeiro, o aspecto materialista da dialética no seu significado filosófico mais abrangente. O meu livro História e Consciência de Classe (1923) mostra muito claramente essa transição. Apesar da tentativa, já consciente, de superar e “eliminar” Hegel através de Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos nesta obra de maneira idealista [...] (LUKÁCS, 1983, p. 2-3, itálico e aspas no original).

Como podemos entender nas palavras de Lukács, a busca por uma correta fundamentação materialista da dialética marxista fora ofuscada em virtude de sua posição subjetivista, ultraesquerdista. Isso contribuiu decisivamente para caracterizar o livro de 1923 como idealista. Nesse sentido, a luta teórica e metodológica do filósofo húngaro para “dominar” a dialética foi árdua e cheia de “acidentes” que se prolongou por muito tempo, mas que teve exatamente em História e consciência de classe seu ponto de partida irrevogável. Lukács reconhece que este livro está imbuído de um “espírito hegeliano”, sobretudo, no que tange o fundamento filosófico conferido ao problema do sujeito-objeto idêntico, que se efetua no processo histórico. Em Hegel esse processo é de tipo “lógico-filosófico”, ou seja, o espírito absoluto ao atingir sua etapa superior no âmbito da filosofia com a “retomada da exteriorização” e com “o retorno da consciência de si mesma”, realiza-se enquanto sujeito-objeto idêntico. Em História e consciência de classe, esse processo ocorre de maneira inversa, isto é, se realiza enquanto um processo histórico-social “que culmina no fato de que o proletariado realiza essa etapa na sua consciência de classe, tornando-se o sujeito-objeto idêntico da história” (LUKÁCS, 2003, p. 24). A crítica de Lukács no prefácio de 1967 em relação a esta questão, é que de fato, não havia como a construção “lógico-filosófica” da Fenomenologia de Hegel ter encontrado uma “autêntica efetivação ontológica” na consciência e no ser do proletariado. Isso parecia oferecer uma justificação de cunho filosófico à possibilidade do proletariado revolucionário transformar historicamente a sociedade burguesa fundando uma sociedade sem classes. Como podemos perceber, em História e consciência de classe pensamento e ser se identificam na consciência do proletariado. Daí o momento predominante da categoria da totalidade no livro de 1923 ser o ponto de vista, o sujeito cognoscente (o proletariado como pensador coletivo).


*Lukács nos esclarece sobre seus primeiros contatos com as obras de Marx no seguinte sentido: “Foi ao terminar os meus estudos secundários que se deu o meu primeiro encontro com Marx (com o Manifesto Comunista). A impressão foi extraordinária e, quando estudante universitário, li então algumas obras de Marx e Engels (como, por exemplo, O 18 Brumário, A Origem da Família) e, em particular, estudei a fundo o primeiro volume de O Capital. Esse estudo me convenceu rapidamente da exatidão de alguns pontos centrais do marxismo. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a teoria da mais-valia, com a concepção da história como história da luta de classes e com a articulação da sociedade em classes” (LUKÁCS, 1983, p. 1).

**“Mein Weg zu Marx” foi publicado na revista moscovita Internationale Literatur, n° 2, em 1933, tendo sido reproduzido em G. Lukács zum Siebzigsten Gebeertstag (Berlim, Aufban, 1955). Com tradução para o italiano por Ugo Gemmelli, foi publicado em Nuovi Argomenti, n° 33, 1958. Tradução para o português, a partir do texto integral traduzido por Ugo Gemmelli in Marxismo e politica culturale (Torino, Einaudi Editore, 1977), de Luiza L. S. Sakamoto, Marilene G. Pottes e M. Dolores Prades. Revisão técnica de Thereza Calvet de Magalhães. Notas da Edição Brasileira (publicada originalmente na Revista Nova Escrita/Ensaio especial – Marx Hoje, ano V, n° 11/12, 1983).


sexta-feira, 21 de junho de 2024

O problema da totalidade em Lukács: seu caminho metodológico I

junho 21, 2024

 



Antonio Marcondes Pós-doutor em Educação GPOSSHE-UECE

 

  Em História e consciência de classe e a Ontologia do ser social de György Lukács (1885-1971), a categoria da totalidade assume uma posição metodológica central enquanto um princípio constitutivo do método dialético de Marx. Contudo, o filósofo marxista húngaro realiza uma passagem progressiva, no que diz respeito, a fundamentação teórico-metodológica dessa categoria de uma obra para outra. 

  Em História e consciência de classe, a categoria da totalidade comporta uma dupla determinação metodológica, no sentido de que ela assume um fundamento lógico-ontológico, abstrato-concreta tendo como momento predominante o sujeito cognoscente (no caso o proletariado sujeito-objeto idêntico da realidade, portanto, um produto do pensamento; um ponto de vista) marcado por uma forte influência hegeliana. Essa é a nossa justificativa teórica para tentar explicar essa dupla determinação da categoria da totalidade no livro de 1923. Lukács não havia se apropriado criticamente de Hegel de forma profunda para superá-lo (conservando) e avançar continuamente numa fundamentação adequada do método dialético de Marx, ou seja, em seu fundamento ontológico, materialista.

  Nesse sentido, quando Lukács na Ontologia concebe a totalidade enquanto uma categoria ontológica, uma determinação do mundo objetivo histórico-social, e não mais como uma determinação do sujeito cognoscente (o proletariado sujeito-objeto idêntico da realidade histórico-concreta) em sua dupla determinação metodológica com uma forte inclinação idealista, ou seja, uma representação mental lógico-ontológica, ele de fato avança progressivamente rumo a sua obra derradeira, para explicitar plenamente a categoria da totalidade em bases ontológicas, materialistas. Portanto, é somente na Ontologia que se consolida plenamente a superação crítica do caráter duplamente determinado de fundamento lógico-ontológico e de preponderância subjetivada da categoria da totalidade em História e consciência de classe. Desse modo, o ponto determinante para demarcar a passagem progressiva da categoria da totalidade a partir de História e consciência de classe rumo a Ontologia do ser social, é a questão do adequado tratamento metodológico da categoria da totalidade, ou seja, um avanço progressivo de uma totalidade lógico-ontológica para uma totalidade propriamente ontológica, objetiva, material.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

George Orwell: crítico perspicaz da sociedade do poder

junho 17, 2024


Élcio Cavalcante, Professor de História 

  George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, foi um escritor, ensaísta e jornalista britânico conhecido por suas obras distópicas e críticas sociais, exploram questões políticas e éticas. Nasceu em 25 de julho de 1903 e faleceu em 21 de janeiro de 1950, Orwell é famoso por romances como “1984”, onde nesse primeiro livro, ele descreve um estado totalitário que controla todos os aspectos da vida dos cidadãos, incluindo a manipulação dos meios de comunicação e da verdade, a supressão das liberdades individuais, já no seu segundo livro, um romance satírico, “A Revolução dos Bichos”, é uma fábula que critica o totalitarismo soviético (Stalinismo) por meio da história de uma revolta animal em uma fazenda.
    Sua literatura (obra) é marcada por uma inteligência perspicaz e bem-humorada, explora temas como totalitarismo, controle governamental, uso de tecnologias para manipulação da verdade. Sua escrita é marcada por uma linguagem clara e direta, com uma consciência profunda sobre as injustiças sociais da sociedade Capitalista, refletindo seu compromisso com a honestidade e a defesa da liberdade individual. Além de sua contribuição para a literatura, George Orwell teve uma ativa participação política, pois era um Socialista Democrático e foi um crítico feroz de todas as formas de totalitarismo tanto de direita quanto de esquerda, combatendo de forma corajosa o NaziFascismo e as atrocidades do imperialismo yanque e britânico, influenciando gerações de leitores e escritores com sua visão aguda, aguçada e perspicaz da sociedade e do poder.
   Orwell também foi um jornalista ativo e participou ativamente da Guerra Civil Espanhola, experiência que influenciou sua visão política e sua obra. Sua escrita é conhecida por sua clareza, honestidade e engajamento político. George Orwell deixou um legado duradouro na literatura, na filosofia, na sociologia e no pensamento crítico sobre o poder, a política e a sociedade.



   Em síntese, George Orwell foi um escritor e jornalista cujo legado perdura por meio de suas obras distópicas e de suas críticas sociais bastante profunda sobre a natureza humana e as relações sociais. Sua habilidade em abordar questões políticas e morais de forma direta e impactante o tornou uma figura influente no mundo da literatura e do pensamento crítico. Através de seus livros, Orwell alertou a humanidade sobre os perigos das Ditaduras tanto civis como militares, ou seja, o TOTALITARISMO, mostrou através de suas ideias o perigo do controle da mídia e da notícia sem critérios, pois pode acarretar no ataque a perda da liberdade individual, deixando um legado que continua a ressoar com relevância nos dias atuais. Sua escrita clara, sua postura política engajada e seu compromisso com a verdade o tornam uma figura atemporal, cujas obras continuam a inspirar reflexões e debates sobre as complexidades da ideologia, da sociedade e do poder.

domingo, 16 de junho de 2024

MARXISMO E LEIS HISTÓRICO-SOCIAIS TENDENCIAIS

junho 16, 2024


 

Frederico Costa - Professor da UECE


  O marxismo tem como característica básica a busca de leis do desenvolvimento histórico-social. Essas leis tendenciais condicionam para cada organização sócio-histórica concreta os seus fatores invariantes e os seus processos reprodutivos. Nesse sentido, os marxistas compreendem a história como um processo autodinâmico e autodeterminado. O marxismo é radicalmente humanista: a história é um processo de autocriação dos seres humanos. Logo, a história humana não é orientada por entidades ou forças anistóricas, externas à atividade humana, que colocam um sentido ou um roteiro a ser seguido pela humanidade.

  Numa perspectiva mais ampla, história natural e história social são momentos da realidade, cada um sujeito a um desenvolvimento autodeterminado e, ao mesmo, tempo em vinculação recíproca. Não há humanidade sem natureza, embora possa existir natureza sem seres humanos. A espécie humana, Homo sapiens, é produto de uma longa história biológica, condicionada pela aleatoriedade das mutações genéticas e pela seleção natural. Ao mesmo tempo, os seres humanos só podem subsistir num metabolismo constante com a natureza por meio do trabalho.

   A principal contradição dialética identificada pela teoria marxista é a que existe entre sociedades humanas e natureza. Essa contradição é constantemente superada no desenvolvimento das forças produtivas, isto é, no desenvolvimento histórico das capacidades humanas.

  Outras contradições fundamentais são: as que vinculam forças produtivas com relações de produção e a que estabelece a determinação em última instância da base econômica (relações de produção) sobre os níveis da superestrutura (instituições, política, ideologias, formas de consciência social, cultura). Dessas contradições surgem conceitos essenciais como modo de produção, formação econômico social e classes sociais/luta de classes.

  Essas categorias permitem ao marxismo (materialismo histórico) articular o conceito de lei histórico-social, de conteúdo tendencial, pois o objeto das ciências sociais, e da educação em particular, é o ser humano sócio-historicamente determinado, que é portador de consciência.

  O materialismo histórico parte da evidência de que, pelo menos até o presente, o devir histórico da humanidade não se tem caracterizado por ser o resultado de uma planificação consciente, isto é, os seres humanos “fazem” a sua própria história, mas não o fazem de maneira coletiva e consciente. Nesse sentido, Marx, em carta a Annenkov, expressou que os seres humanos não podem escolher com total independência das circunstâncias as suas formas sociais, pois não são livres árbitros das suas forças produtivas – base de toda sua história -, já que toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma atividade anterior. De outra maneira, Engels, em sua obra Ludwig Feuerbach e o da filosofia clássica alemã, afirmou que os choques entre as inúmeras vontades individuais criam no campo da história um estado de coisas muito análogo ao que impera na natureza inconsciente. 

  Portanto, em cada momento histórico as lutas sociais que determinam a configuração de uma sociedade concreta, incluindo os aspectos mais conscientes dessas lutas, não se travam num vazio, livres de determinações, mas, pelo contrário, no contexto de delimitação estrutural, produzida por uma história anterior. O que significa que a realidade de uma determinada formação econômico-social concreta não pode ser transformada radicalmente em sua totalidade por simples atos arbitrários de vontade. 

  É óbvio que a lutas de classes, nas sociedades humanas, podem mudar as estruturas sociais. Se não, como seriam possíveis as revoluções. Mas, elas se dão num contexto definido, que impõe limites ontológicos do que é ou não possível em dada situação histórica. 

  Dessa maneira, o marxismo ao mesmo tempo que reconhece que, na história humana, os participantes têm consciência; considera simultaneamente que, apesar disso, o curso da história obedece a leis tendenciais objetivas e cognoscíveis. Em síntese, os seres humanos fazem a históricas, mas dentro de determinado horizonte posto.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Rodolfo Teófilo: um legado literário, político e social no Ceará

junho 10, 2024




Élcio Cavalcante, Professor de História


  Rodolfo Marcos Teófilo foi um farmacêutico, jornalista, contista, articulista e escritor brasileiro, nascido em Salvador – Bahia, em 06 de maio de 1853 e faleceu em Fortaleza – Ceará, em 02 de julho de 1932, deixando um legado significativo para a literatura e a história do Ceará, além de sua atuação como médico sanitarista, vacinando a população fortalezense e erradicando a varíola por nossas terras alencarinas. Rodolfo Teófilo foi membro da Academia Cearense de Letras e escreveu obras que abordam temas históricos e culturais do Ceará. Suas obras mais conhecida são a “História da Seca no Ceará”, “A Fome”, “Os Brilhantes”, “Paroara”, “Lyra Rústica”, “A Sedição de Joazeiro”, “Seca de 1915”, “A Seca de 1919”, “Varíola e vacinação no Ceará”, “O Caixeiro”, entre outros livros, na qual ele descreveu e analisou as consequências das secas no Nordeste brasileiro.

      Rodolfo Marcos Teófilo foi um importante jornalista e escritor cearense, apesar de ter nascido na Bahia, com um mês e meio de vida seus pais mudam-se para Fortaleza. Cedo ficou órfão, sua Mãe falece quando ele tinha apenas quatro anos, levando o seu Pai a casa-se com a cunhada, tendo mais três filhos. Quando tinha apenas nove anos, a epidemia de "Cólera Morbus" propaga-se pela capital cearense, ficando todos enfermos em sua casa, exceto Rodolfo Teófilo. Por ser o único que se manteve saudável, tornou-se responsável em manter a casa. O drama familiar continua quando aos onze anos perde seu Pai, não deixando recursos financeiros para Rodolfo Teófilo e familiares, forçando-o a trabalhar como caixeiro para o próprio sustento e de sua madrasta e irmãos.

     Uma das características da sua obra literária é o Naturalismo e o Regionalismo mostrando os flagelados da seca no Nordeste, tendo como marca as consequências da seca e da fome na vida do nordestino do sertão e do êxodo para o litoral, através de seus escritos denunciou os impactos desse problema social e político em jornais da capital cearense e também combateu os desmandos e as arbitrariedades de poderosos da época, teve vários embates ideológicos com vários políticos oligarcas, principalmente com o Presidente da Província do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Acioli, relatou em seus artigos periódicos, temas relacionados à saúde pública, cultura, história e sociedade do Ceará. Sua atuação na área da saúde e sua participação na vida social e política local também são aspectos relevantes de sua vida.

   Em meados de 1900, até o final de sua vida empreendeu uma batalha pessoal sem recursos contra a varíola, lutando contra o “medo da vacina”, em tempo de seca feroz, fome generalizada, migração em massa, péssimas condições de higiene. Sem apoio do poder público, enfrentou praticamente sozinho, em duas oportunidades, epidemias de varíola que vitimaram milhares de pessoas em Fortaleza e no interior do Ceará, no final do século XIX e início do século XX. Em reconhecimento a esta empreitada hercúlea, merecidamente a este grande ser humano, o Centro Acadêmico de Farmácia da Universidade Federal do Ceará tem o seu nome como homenageado.

     Destarte, Rodolfo Teófilo foi um dos percursores da literatura regional – naturalista brasileira, contribuindo significativamente para a literatura e a história do Ceará. Além disso, foi um dos fundadores de uma agremiação literária chamada de Padaria Espiritual, movimento literário e artísticos criada em Fortaleza, em 1892, cuja característica era o comportamento irreverente de seus membros, antecipando o movimento do Modernismo no Brasil. Não podemos nos esquecer que Rodolfo Teófilo aderiu à causa abolicionista, participando ativamente da campanha abolicionista no Ceará, primeira província brasileira a declarar livres os seus escravos.

    Além de toda a genialidade farmacêutica, inventando uma vacina para combater a varíola, salvando milhares de vidas da doença, Rodolfo Teófilo foi o inventor da deliciosa Cajuína, segundo a escritora cearense Rachel de Queiroz, a "invenção" dessa bebida não – alcoólica é popular no nordeste brasileiro, principalmente nos estados do Piauí, Maranhão e Ceará, esse feito fez com que o boticário – escritor – sanitarista ganhasse a Medalha de Ouro numa exposição nacional do Rio de Janeiro pela sua criação e produção da bebida cajuína, saborosa e de excelente qualidade.

    Finalizando, a marca do autor é a criatividade literária, pois a sua obra, especialmente “A Fome”, revela não apenas sua habilidade literária, mas também seu comprometimento político em combater as injustiças sociais, em retratar aspectos fundamentais da realidade social e ambiental da região nordestina. Sua atuação como farmacêutico demonstra o alcance de sua influência e contribuição para além do campo das letras. Rodolfo Teófilo deixou um legado marcante e é lembrado como um dos grandes intelectuais cearenses do final do Século XIX e início do Século XX. Viva Rodolfo Teófilo

domingo, 9 de junho de 2024

CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA: DIACRONIA E SINCRONIA

junho 09, 2024



   Frederico Costa, professor da UECE

    A concepção marxista da história humana parte de um conjunto de coordenadas que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

  • a história é produto da atividade humana, ou seja, não é orientada por nenhuma entidade ou força externa ao processo histórico (deuses, “gênio nacional”, raças, natureza);
  • a realidade social é mutável em todos seus níveis e aspectos;
  • como a história é resultado das ações humanas, as mudanças são regidas por uma legalidade cognoscível;
  • as leis históricas, num mesmo movimento de análise, possibilitam explicar a gênese de uma determinada forma de organização social, suas contradições, suas transformações e sua transição para um novo sistema social qualitativamente distinto;
  • as transformações sociais conduzem a equilíbrios relativos ou instáveis, isto é, a sistemas histórico-sociais cujas formas e relações internas se dão segundo leis cognoscíveis (comunidade primitiva, escravismo antigo, modo de produção asiático, feudalismo, escravismo colonial, capitalismo, estados operários, por exemplo).

    Em síntese, o marxismo possibilita análises de tipo dinâmico (diacrônica) e de tipo estrutural (sincrônica), que estão vinculados num único movimento cognoscitivo que apreende a realidade. Noutras palavras, a concepção marxista da História em seu modelo explicativo une as perspectivas genética e estrutural numa visão integrada do desenvolvimento histórico-social.

    Nesse ponto, reside a complexidade do método marxista, pois existe a possibilidade de visões esquemáticas, ora predominando uma perspectiva unilateral genética, ora uma orientação apenas estrutural, mesmo que o postulado metodológico da unidade genética-estrutural seja reconhecido.

    Os pesquisadores e as pesquisadores, na área das ciências sociais, que escolhem o marxismo como referencial teórico devem sempre estar atentos para não cair nesses reducionismos.

domingo, 2 de junho de 2024

ELEMENTOS SOBRE NEOLIBERALISMO, CAPITALISMO E BARBÁRIE

junho 02, 2024




É comum estudantes perguntarem sobre o neoliberalismo e como ele influencia o cotidiano de nossas vidas. Por isso, produzi este texto, partindo de minhas leituras, indagações e reflexões. 

******

Frederico Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará - UECE


   O neoliberalismo, conceito em voga para indicar as coordenadas atuais do capitalismo, implica em várias dimensões e características, como, por exemplo: 

1) o neoliberalismo pode ser associado ao projeto de direita contra trabalhadores e pobres imposto por diversos governos, que teve como marco temporal a ditadura de Pinochet no Chile, seguido por Margaret Thatcher no Reino Unido, Ronald Reagan nos Estados Unidos e em muitos outros países; 

2) o neoliberalismo pode ser entendido como um conjunto de políticas públicas e orientações governamentais inspiradas no denominado “Consenso de Washington”, com o objetivo de “reduzir o Estado” e “abrir mercados”, causando redução de direitos e danos catastróficos para os pobres; 

3) o neoliberalismo pode ser apreendido como um bloco ideológico, mais ou menos coerente, de ideias e práticas associadas a intelectuais conservadores e monetaristas, em particular, Friedrich von Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman e a frente intelectual articulada pela Sociedade Monte Pèlerin, além de uma variada gama de instituições como think tanks, organizações não governamentais, departamentos universitários, grupos internacionais, lobbies e meios de comunicação; 

4) o neoliberalismo pode ser classificado como a estruturação de uma subjetividade adequada à nova conformação das relações de produção capitalistas centradas no empreendedorismo e na responsabilização maior dos indivíduos, o que vem trazendo um crescimento exponencial de sofrimento psíquico para as classes trabalhadoras;

5) o neoliberalismo pode ser identificado como a forma contemporânea do modo de produção capitalista que se destaca pela financeirização da produção, pelo acirramento das contradições do sistema imperialista e pela subordinação maior do processo de reprodução social à lógica das novas tendências de acumulação do capital.

   É óbvio que, uma dessas determinações não exclui as outras, pois, o que identificamos como neoliberalismo é uma totalidade concreta multidimensional. O neoliberalismo engloba estruturas econômicas, formas do processo produtivo e alocação de recursos, relações entre países imperialistas e nações oprimidas, regimes políticos cada vez mais autoritários, relações de força entre classes sociais, tipos de exploração e dominação social, instituições, ideologias, arquiteturas subjetivas e maneiras de comportamentos dominantes.

   O que não se pode esquecer é do núcleo ao redor do qual giram as engrenagens da totalidade neoliberal: exigências crescentes de lucratividade, força motriz da acumulação do capital, que se sustenta, em última instância, sobre a extração do mais-valor produzido pela força de trabalho assalariada. Por isso, o questionamento e ataques constantes ao valor e aos direitos sociais da força de trabalho assalariada por empresários, governos e ideólogos neoliberais. A roda da acumulação deve continuar girando e o combustível é o trabalho não pago que precisa ser ampliado mais e mais.

   De fato, o neoliberalismo é uma das faces do avanço da barbárie. A hegemonia do neoliberalismo indica que o capitalismo está levando cada vez mais a humanidade para níveis maiores de barbárie: as forças produtivas estão se transformando em forças destrutivas. Alguma dúvida sobre isso?

quarta-feira, 29 de maio de 2024

A CIÊNCIA COMO UM PAR DE ÓCULOS

maio 29, 2024


Frederico Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará - UECE

  De acordo com Bacchi (2024), a Ciência pode ser vista como um par de óculos que aprimora a nitidez da nossa visão da realidade, melhorando nossa capacidade de registrá-la e, até mesmo, de modificá-la com mais precisão. Concordo com essa comparação.

  Os seres humanos, diferente dos demais animais, transformam o mundo de forma consciente para satisfazer suas necessidades, isto é, pelo processo de trabalho. Para isso, procuram entender a realidade na qual estão inseridos para melhorar suas condições de vida e situarem-se no mundo. Nessa dinâmica se constituiu historicamente um conjunto de práticas e ideias conformado no complexo social denominado de “ciência”. 

  Numa primeira aproximação simplificada, a Ciência pode ser caracterizada como um conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis e modelos, que busca o conhecimento da realidade, em contínua ampliação e renovação, resultante da aplicação consciente de recursos metodológicos, o método científico. Historicamente, por meio da investigação científica, no seio de contradições econômicas, sociais e políticas, a humanidade tem alcançado uma reconstrução conceitual do mundo cada vez mais ampla, profunda e exata.

  Nessa perspectiva, a Ciência é um fator importante em nossa sociedade, sendo responsável por avanços na medicina, na melhoria e oferta de alimentos, na disponibilização potencial de recursos para melhorar a vida de bilhões de seres humanos, no controle de forças naturais e, atualmente, na identificação de possibilidades destrutivas de ações humanas regidas por relações capitalistas de produção frente ao ecossistema.

   Um dos aspectos determinantes dessa criação humana é a busca incessante em descrever e explicar os acontecimentos da realidade com a finalidade de prever eventos futuros ou organizá-los de forma inteligível, formando, dessa maneira, uma representação mais aproximada possível do mundo. Por isso, o pensamento científico é uma superação do senso comum acumulado na vida dos indivíduos e que é transmitido de geração e geração.

    Embora várias vezes útil, o senso comum, não é um conhecimento científico, pois é sustentado por impressões subjetivas sobre a realidade e por tradições provindas de antepassados. É um conhecimento prático, popular e cotidiano, mas não é testado, verificado ou analisado por uma metodologia científica,  sendo frágil e com alto grau de incerteza sobre sua validade. Daí uma lição importante: nem todo conhecimento tradicionalmente reconhecido e aceito é correto ou corresponde à realidade, o que torna a postura científica importante para fazer ver a realidade com maior nitidez. O que possibilita a melhoria da capacidade de transformar o mundo para a satisfação das necessidades humanas.

  A Ciência, seu método e sua filosofia são importantes forças progressivas no embate contra o obscurantismo e a barbárie atuais.


Referências

BACCHI, André Demambre. Afinal o que é ciência?: ... e o que não é. São Paulo: Contexto, 2024.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

MARXISMO, IMANÊNCIA E MÉTODO

maio 20, 2024





Frederico Costa - Universidade Estadual do Ceará/UECE



O presente texto vincula-se ao esforço contribuir para de formação de pesquisadores  na área das ciências sociais, em particular na educação. Há uma carência em relação aos fundamentos da filosofia da ciência para o desenvolvimento intelectual de discentes da iniciação científica, mestrando(a)s e doutorando(a)s. A perspectiva aqui posta é centrada no materialismo histórico fundado por Marx e Engels, que vem sendo enriquecido por vários de seus intérpretes e pela prática social das classes trabalhadoras por sua emancipação social.

********


             O marxismo é uma filosofia essencialmente intramundana, isto é, está afastada de fantasmas especulativos e contaminações teológicas. Essa postura leva a questões metodológicas importantes para quem utiliza essa "filosofia das coisas humanas" que procura entender e transformar o mundo. Nas coordenadas do materialismo e da ciência, o marxismo busca entender o mundo partindo do próprio mundo. Por isso, Marx e Engels afirmam categoricamente na Ideologia alemã que:

O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos (p. 33).

         Sem o processo de trabalho não há realidade humana. Isso é um fato comprovado por pesquisas antropológicas e históricas. Mais do que isso, a sociedade, para o materialismo histórico, é produto da atividade humana. Instituições, valores morais, conhecimentos e relações sociais não são criados por forças transcendentais ou fora da história humana. Os seres humanos são os produtores  de sua própria história. Desse fato ontológico surge a possibilidade de conhecer (gnosiologia) sua obra. No entanto, isso não ocorre de maneira fortuita ou caótica. O seres humanos podem conhecer seus produtos porque há determinações necessárias, há padrões:

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (p. 87).

            A existência de legalidade no processo histórico, próprio do marxismo implica em uma orientação metodológica fundamental, que é contrária ao idealismo filosófico e à especulação metafísica:

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que deter- mina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência (p. 94).

 

        Eis o movimento metodológico básico do materialismo histórico: se elevar da terra ao céu, partindo dos seres humanos realmente ativos de carne e osso, sendo as formas de consciência realidades situadas histórica e socialmente. Nesse sentido, o pesquisador e a pesquisadora que utilizam o materialismo histórico como referencial teórico devem sempre se lembrar dessas coordenadas ontológico-epistemológicas: 1) a história é um processo de autoprodução humana; 2) os seres humanos podem conhecer a realidade que produzem e na qual estão inseridos; 3) o método de conhecer/intervir na realidade social deve partir não de categorias especulativas, mas de conceitos sustentados nas atividades de seres humanos reais e de seus produtos; 4) a consciência sempre é a consciência de indivíduos reais e concretos.

Referências

MARX, Karl e Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.



quinta-feira, 16 de maio de 2024

76 ANOS DE EXPROPRIAÇÃO DO POVO PALESTINO

maio 16, 2024

 


Reproduzimos aqui a nota sobre a Nakba da Rede Universitária em Solidariedade ao Povo Palestino,


“Não estamos olhando para trás para desenterrar evidências de um crime passado, pois a NAKBA é um presente prolongado que promete continuar no futuro.”

Mahmoud Darwish, 2001.

   
  Por ocasião dos seus 76 anos, a NAKBA ­– palavra árabe que significa catástrofe – permanece para o povo palestino como o reflexo de uma profunda injustiça; uma agressão à sua condição humana e uma contínua usurpação de seu direito inalienável à liberdade e à autodeterminação – consequência do colonialismo sionista de assentamento de Israel.

   A NAKBA palestina, iniciada em 1948, foi definida pela ONG Al Mizan como a expulsão forçada de mais de 700.000 pessoas (80% da população à época) e pelo assassinato de, aproximadamente, 15.000 pessoas, resultado de mais de 70 massacres pelas milícias sionistas durante o período de 1947-49, a de população de 50% das aldeias e centros urbanos, muitos destruídos com o propósito de impedir o retorno das pessoas que nelas habitavam, parte integrante de um processo planejado de limpeza étnica.

   A NAKBA resultou na fragmentação e na dispersão do povo palestino, metade do qual encontra-se hoje em condição de refugiados e de exílio; seu direito ao retorno, consagrado pela Resolução da Assembleia Geral da ONU no. 194 (dezembro de 1948), tem sido frontalmente negado por Israel ao passo que este direito é concedido a toda pessoa judia, em qualquer parte do mundo, de residir em toda a palestina histórica.  Com isso, a ONG israelense B´Tselem denominou Israel de um “estado de supremacia judaica do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo”.  A outra metade do povo palestino vive sob uma ocupação militar e um colonialismo de assentamento racista segundo a Anistia Internacional, que em 2022, considerou Israel como um regime de apartheid.

   O genocídio que, hoje, testemunhamos em Gaza, reflexo da NAKBA permanente, é uma extensão do projeto colonial de Israel. De outubro de 2023 até o final de abril de 2024, duas milhões de pessoas (ou 80% da população da Faixa de Gaza) foram expulsas de suas casas e correm o risco iminente de limpeza étnica. 70% das construções – incluindo casas, hospitais, mesquitas, igrejas, escolas e todas as 12 universidades – foram bombardeados e destruídos com a clara intenção de tornar Gaza inabitável. Mais de 40.000 pessoas foram mortas; entre elas, 70% crianças e mulheres; 19.000 crianças se tornaram órfãs; mais de 1.000 crianças estão com uma ou duas partes do corpo amputadas e dezenas de milhares de famílias foram riscadas do registro civil. 

   Para os sobreviventes a situação é catastrófica; segundo a ONU, “o bombardeio direto de hospitais e a negação deliberada do acesso a instalações de saúde por franco-atiradores israelenses, combinados com a falta de camas e recursos médicos, colocando cerca de 50.000 mulheres palestinas grávidas e 20.000 recém-nascidos em risco inimaginável. Mais de 183 mulheres por dia estão dando à luz sem anestesia, enquanto centenas de bebês morreram por falta de eletricidade para alimentar as incubadoras. As terríveis condições resultaram em aumento de abortos espontâneos em até 300%. 95% das mulheres grávidas e lactantes enfrentam pobreza alimentar severa”. Além disso, mais de 10.000 homens foram sequestrados e encarcerados em prisões israelenses sob tortura e negligência médica. A ONU documentou casos de abuso e relatos de agressão sexual e violência contra mulheres e meninas, inclusive contra as detidas pelas forças de ocupação israelenses.

   Hoje, em Gaza, outra NAKBA está em curso, desta vez sendo transmitida, diretamente, por jornalistas palestinos que têm sido atacados (mais de 120 mortos), pois buscam denunciar e divulgar de forma heroica os crimes cometidos contra seu povo e, assim, se contraporem à narrativa do Estado de Israel que busca o apagamento e o memoricídio da NAKBA permanente contra os palestinos.

   A resistência e o Sumud (a persistência) da população de Gaza frente à barbárie vivida, diariamente, há mais de 7 meses, têm mobilizado uma onda global de protestos, incluindo as manifestações em massa de estudantes contrários ao genocídio e ao apoio militar a Israel. Tais manifestações, igualmente, têm exigido a implementação das propostas da política de BDS - Boicote, Desinvestimento e Sanções – contra Israel de modo a inviabilizar a continuação do regime colonial e de apartheid.

   Há outros acontecimentos e novos fatos que também foram desencadeados e que sinalizam mudanças importantes: o surgimento de uma solidariedade continental em defesa da autodeterminação do povo palestino; o processo na CIJ apresentado pela África do Sul acusando Israel de prática de genocídio em Gaza (apoiado por um número crescente de países); uma incipiente mudança de narrativa a favor da Palestina e um acirramento de disputas políticas, inclusive nas eleições de países do ocidente, no qual aumenta o questionamento ao apoio incondicional a Israel.

   Ao mesmo tempo em que manifestamos nossa indignação diante do genocídio em curso em Gaza, devemos lembrar as lúcidas palavras de Angela Davis: “a esperança é um ato político”. 

  Finalmente, orientemo-nos pela coragem e resistência do povo palestino em Gaza e nos territórios ocupados, fortalecendo nosso compromisso em defesa do direito dos povos à autodeterminação e à liberdade!

  Reafirmemos nosso compromisso de aderir ao apelo palestino de BDS, tendo como exemplo a antiga situação da África do Sul.

  Acabar com o colonialismo e o apartheid de Israel são as únicas garantias para o fim do genocídio e contra a perpetuação da NAKBA!

 Toda a força e solidariedade à luta do povo palestino pela liberdade e pela autodeterminação!

15 de maio de 2024