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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O governo soviético

dezembro 12, 2022


Texto retirado do livro da jornalista, feminista e ativista política estadunidense Louise Bryant (1885-1936) Seis meses na Rússia Vermelha. Utilizamos o texto em inglês presente em www.marxists.org/archive/bryant/works/russia/ch05.htm e a tradução ao português feita pela editora Lavra palavra (BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: Lavrapalavra, 2022, p. 44-45).

 

Os sovietes[1] foram uma forma natural de organização para as massas russas devido a longa experiência de suas primitivas instituições comunitárias. Eles devem sua forte influência sobre o povo ao fato de serem os órgãos políticos mais democráticos e sensíveis jamais inventados.

O soviete é um órgão de representação proporcional direta baseado em pequenas unidades da população com um representante para cada 500. O soviete é eleito por sufrágio igual, voto secreto, com pleno direito de revogação. Um soviete não é eleito com frequência regular. Os representantes ou delegados, no entanto, podem ser convocados e reeleitos por seus constituintes a qualquer momento. Dessa forma, o semblante do soviete registra imediatamente o sentimento das massas da população. Os sovietes são baseados diretamente nos trabalhadores nas fábricas, nos soldados nas trincheiras e nos camponeses nos campos.

Cada cidade tem seu Soviete de representantes de Soldados e Trabalhadores. As diferentes partes[2] da cidade também têm seus sovietes. As províncias, os condados e algumas aldeias possuem Sovietes de Agricultores.  O Congresso dos Sovietes de Toda Rússia é formado por representantes dos sovietes das províncias, que também podem ser eleitos diretamente, sendo a proporção de um representante para 25 mil pessoas.

O Soviete de Toda a Rússia geralmente se reúne a cada três meses. Elege um Comitê Central Executivo, que é o Parlamento do País. O Comitê Central Executivo é composto por quase 300 membros. Os Comissariados do Povo, que são o Gabinete ou Ministério, do qual Trotsky é um comissário, Lunacharsky outro, e assim por diante, são eleitos pelo Comitê Central Executivo. Os comissários são homens simples na direção de um colegiado responsável por cada departamento do governo. Lênin é o presidente dos Comissariados.

O propósito geral dos Sovietes não é simplesmente uma representação territorial, mas também de ser um corpo de classe – um corpo representativo principalmente de uma classe – a classe trabalhadora.



[1] Conselhos.

[2] Bairros, distritos.

 

 

 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Bolsonarismo e fascismo: paralelos históricos

novembro 03, 2022

 

 

Diferentemente do que pensam os irracionalistas pós-modernos, é possível conhecer a lógica dos processos históricos. Primeiro, porque a história é um produto da atividade dos seres humanos, que para satisfazer suas necessidades precisam constantemente transformar o mundo, ao mesmo tempo, transformando-se e se autocriando. Segundo, porque desde que surgiram as classes sociais o motor da história é a contradição entre elas, isto é, a luta de classes. Terceiro, porque é possível extrair do encadeamento da diversidade dos fenômenos históricos determinados padrões e tendências em torno dos quais gravitam singularidades que não se repetem.

Nesse sentido, pode-se compreender, numa primeira aproximação, o bolsonarismo como um movimento reacionário de massas. Sob o seu manto estão católicos tradicionalistas e conservadores, protestantes pentecostais e históricos, monarquistas, integralistas, neonazistas, militares, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Polícia Federal (PF), membros das forças de segurança pública estaduais, artistas, milícias, políticos e diversos setores da burguesia. A ideologia bolsonarista não é coerente e sistematizada, mas gira em torno de ideias-forças como mercado, liberdade, autoridade, racismo, xenofobia, machismo, desigualdade natural e um profundo anticomunismo. Na verdade, o cerne do bolsonarismo é uma reação às conquistas progressistas da humanidade e das classes trabalhadoras como o sufrágio universal, a soberania popular e os direitos sociais.

O sufrágio universal (masculino) e direto foi sancionado pela Constituição de 24 de junho de 1793, como resultado do processo de radicalização da Revolução Francesa. Infelizmente, as turbulências da situação interna e externa, além dos avanços e recuos do processo revolucionário francês e europeu, dificultaram a efetivação desse método democrático. No entanto, essa primeira contestação radical das estruturas de poder aristocráticas, passando por cima do direito divino e da discriminação política das grandes massas, assustou as classes dominantes.

Por isso, ideólogos da burguesia liberal como Benjamin Constant (1767-1830), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Jonh Stuart Mill (1806-1873) apresentaram formas para restringir o sufrágio universal e a radicalização da soberania popular. O intento era limitar os direitos políticos para impedir que a população trabalhadora impusesse, no seu interesse, medidas sociais e econômicas. Daí propostas de voto censitário, eleições indiretas e exclusão de analfabetos, mulheres, pobres, pessoas de origem colonial, negros e não-proprietários do direito ao sufrágio universal. Tais mecanismos visavam neutralizar politicamente as massas populares, restringindo a luta pela redistribuição de renda e propriedade propiciada pela ampliação dos direitos democráticos para as grandes maiorias.

Com o avanço do movimento operário e a criação de partidos socialistas no século XIX as tensões aumentaram e uniram-se burguesia e latifundiários, liberais e conservadores, contra proletários e camponeses. Mas, foi em 1917, na chamada Revolução de Outubro, quando operários e camponeses, homens e mulheres trabalhadores tomaram o poder na Rússia sob a direção do Partido Comunista, que qualquer luta por liberdade e direito social foi denominada de “comunismo”.

É no período entre guerras (1918-1939) que surge a força política reacionária que ajuda a compreender o bolsonarismo atual: o fascismo. Nascido na Itália em 1919 teve seu ápice na Alemanha nazista, mas deitou raízes em vários países da Europa, da América e chegou até à Ásia. No Brasil, apresentou-se como Ação Integralista Brasileira (AIB), tendo como líder o escritor Plínio Salgado (1895-1975). Entre suas grandes lideranças estavam Gustavo Barroso (1888-1959), simpatizante do racismo nazista, e Miguel Reale (1910-2006), pai do jurista Miguel Reale Júnior, que em 2015, junto aos juristas Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, protocolou na Câmara dos Deputados um pedido de abertura de processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, que levou ao golpe de Estado de 2016.

A experiência italiana e alemã indicaram um padrão clássico desse movimento:

 

1) o ascenso do fascismo expressou uma profunda crise social do capitalismo, cuja função histórica foi alterar pela violência as condições de reprodução do capital a favor dos grupos monopolistas;

 

2) o aprofundamento da crise social desestruturou o regime democrático-burguês, mais vantajoso para o domínio capitalista, porém a burguesia, com o acirramento da luta de classes, tendeu a instaurar formas mais centralizadas do Poder Executivo do Estado;

 

3) como existia uma imensa desproporção entre a burguesia e as classes populares (assalariados, camponeses), um Estado policial puro, em plena crise, teria dificuldades de atomizar e desmoralizar milhões de trabalhadores e suas organizações (sindicatos, partidos, cooperativas), o que levou a grande burguesia a buscar apoio num movimento de massas reacionário (fascismo/nazismo);

 

4) um amplo movimento de massas reacionário (fascistas, nazistas) foi construído com base na mobilização da pequena burguesia enraivecida pelas consequências da crise capitalista, com um conjunto de preconceitos e rancor psicológico para motivar o ataque às conquistas do movimento operário e democrático;

 

5) para o movimento fascista triunfar na Itália e na Alemanha foi preciso esmagar o movimento operário e democrático das massas populares, institucionalizando a guerra civil;

 

6)  o fascismo/nazismo vitorioso, cumpriu sua missão para com o capital financeiro que pode implementar altas taxas de exploração do trabalho, simultaneamente o movimento reacionário de massas se burocratizou, enquanto as ditaduras fascista e nazista esmagavam sua própria base de massas, perseguindo e eliminando os descontentes.

 

Guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, além de particularidades próprias do Brasil, é possível identificar que o movimento de extrema direita bolsonarista apresenta evidentes contornos fascistas. Seu objetivo maior é aniquilar direitos sociais, conquistas populares e organizações dos trabalhadores para que, por meio de um regime policial-militar seja possível garantir um padrão de acumulação capitalista com taxas maiores de exploração. No meio dessa barbárie está o futuro governo Lula e milhões de trabalhadores e trabalhadoras que precisão romper com o ciclo da fome, da miséria, do desemprego, dos baixos salários, da precarização, da falta de moradia, da carestia, da pouca da saúde pública e da educação destruída.

Para dias melhores, o primeiro passo deve ser romper com os bloqueios físicos e políticos do bolsonarismo, isolar seus apoiadores, fortalecendo as organizações de classe e construído um projeto alternativo à barbárie fascista capitalista que apresente reformas estruturais com o apoio do movimento operário-popular.

 

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Há veredas que fortalecem o bolsonarismo

outubro 26, 2022


 

Esse texto é um breve comentário sobre a recente Newsletter do Coletivo Veredas, “As primeiras lições do pleito de 2022”[1]. O referido coletivo é um agrupamento de intelectuais, em sua maioria vinculado à universidade, que faz uma interessante atividade de reflexão teórica e de divulgação de textos clássicos, pesquisas e materiais de propaganda dentro das coordenadas do pensamento crítico ao capitalismo. Seu lema é “estudar para lutar pela emancipação humana”.

Na atual conjuntura da luta de classes, que se expressa de forma distorcida no confronto eleitoral entre a esquerda reformista (Lula) e Bolsonaro (extrema direita) o Coletivo Veredas tirou a posição de voto nulo. O que é um direito. E nisso, não estão sozinhos. Os anarquistas, o Partido Operário Revolucionário (TPOR), a TV A Comuna, o Grupo Fronteira Vermelha, a Organização Transição Socialista e grupos maoístas também gravitam entre o voto nulo e o boicote às eleições. Noutras palavras, o esquerdismo é um fenômeno típico nas margens do movimento operário.

Porém, o destaque aqui é o Coletivo Veredas, que afirma a senilidade da estratégia eleitoreira com base na crítica moral de que a “política burguesa é um campo aberto para manipulações, engodos, mentiras e conchavos inconfessáveis”. O que não é uma descoberta.

Então, “a ausência por tantas décadas de um período revolucionário faz com que a política burguesa de hoje pareça ser a única   possível”, confundindo-se “a luta para se manter o poder do capital com as características da luta para destruir este mesmo poder”.

Daí uma citação de Trotsky (de memória e fora do contexto) e um diálogo rápido com Lênin e sua obra “O esquerdismo, doença infantil do comunismo”.

Logo chega-se ao núcleo do texto sobre a impotência da “frente petista”. O início é a afirmação da prática revolucionária do Coletivo Veredas:

 

Aos revolucionários não resta alternativa: dizer a verdade, expor a essência do capital, trazer à luz do dia as razões últimas das misérias desta civilização burguesa em seu ocaso. Que o futuro não será burguês, é indiscutível: se não nos destruirmos, será porque superamos o capital em direção à uma sociedade comunista, fundada pelo trabalho associado – que nada tem a ver com cooperativas ou fábricas ocupadas, lembremos. Sempre foi assim: a força dos revolucionários, ao contrário das forças burguesas, está em sua capacidade única em expor e escancarar a essência do capital – tudo o que as ideologias conservadoras querem velar.

 

Bem, toda ideologia esquerdista se sustenta numa fé, num dogma, que justifica sua situação no mundo real, mas também exige uma esperança, uma promessa para os que perseverarem. Nisso, o Coletivo Veredas não foge ao padrão:

 

Como a existência determina a consciência, em períodos em que a sociedade burguesa se reproduz “normalmente”, as ilusões burguesas parecem mais verdadeiras do que as “verdades” revolucionárias e, então, os revolucionários ficam reduzidos a pequenos agrupamentos isolados em guetos ideológicos. Em períodos de crise, as coisas se alteram. Pois a existência também se altera [...] Nesses momentos de crise, as propostas reformistas perdem espaço e ganham a consciência das massas aquelas propostas que afirmam o óbvio: todo o sistema está podre, do Supremo ao Congresso, dos valores morais à Igreja Católica, tudo precisa ser refeito.

 

 É necessário destacar, por paradoxal que pareça, que em seu idealismo os sectários acreditam que sua consciência determina a existência. Por isso, criam uma realidade paralela, algo tipo creio e logo existe, mesmo quando não movem um dedo para mudar a realidade social, não conseguem fazer a análise concreta da situação concreta nem muito menos agir politicamente para mudar essa situação em favor da classe trabalhadora e de suas lutas também concretas.

Nessa crença quase apocalíptica, é só esperar novos tempos que nascerão da própria dinâmica da crise do mundo burguês, da crise estrutural do capital, que prepara as massas ignorantes para o fermento dos revolucionários. A semente cultivada nos pequenos grupos, que já sabiam da verdade porque não pararam de estudar, florescerá.

Dentro dessa lógica qual é o principal inimigo concreto?

Advinha: o lulopetismo. Depois, é claro, de uma exposição sobre a natureza incontrolável do capital e da tendência do reformismo de ir sempre à direita. O que, também, não é nenhuma novidade.

A conclusão de tudo isso é óbvia: “Por isso a vitória de Lula no segundo turno, caso ela venha, será apenas mais uma derrota para os trabalhadores e operários”.

Isso significa, para o Coletivo Veredas, que a derrota eleitoral de Bolsonaro é algo secundário para os trabalhadores? Tanto faz eleger Lula ou Bolsonaro para milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros? Pior, se a vitória de Lula é mais uma derrota para os trabalhadores e operários, o que significaria a vitória de Bolsonaro, algo positivo?

De novo o velho padrão do esquerdismo: o doutrinarismo abstrato, separado da luta de classes real, levando à passividade diante da extrema direita.

Diante disso tudo, só se pode dizer que a história do movimento operário não confirma a narrativa do Coletivo Veredas. Nem muito menos a intervenção política de Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci. Muito menos a atividade militante de Lukács, mesmo na sua fase mais esquerdista. O marxismo sempre procurou acompanhar e intervir no desenvolvimento político das massas trabalhadoras rumo à ruptura revolucionária com a ordem burguesa. Também, sempre soube identificar as tensões entre direção, vanguarda e massas no movimento operário. Além disso, as diferenciações entre extrema direita e reformismo sempre foi essencial para a elaboração das táticas e estratégias das organizações revolucionárias.

O capital, a democracia burguesa e o Estado são relações sociais e não conceitos abstratos. Devem ser combatidos não apenas nas salas de aulas e grupos de estudos, mas, principalmente, nas ruas, nos bairros populares, nas fábricas e no campo, isto é, onde o sujeito real revolucionário está se construindo nas suas lutas cotidianas.

Por isso, dia 30 de outubro é preciso derrotar Bolsonaro nas urnas. Mas, não só isso, será preciso garantir a posse de Lula Presidente. Simultaneamente as classes trabalhadoras devem partir para a luta por suas reivindicações mais sentidas e necessárias, colocando na defensiva as forças do golpismo, do imperialismo e da burguesia. Esse é caminho que nos levará à emancipação humana.

 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO

 

Érico Cardoso

Professor, doutorando em Educação pelo PPGE-UECE e membro do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO



[1] Para ler o texto completo: https://coletivoveredas.com.br/2022/10/04/as-primeiras-licoes-do-pleito-de-2022/


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Conexões ontológicas entre trabalho e ciência: uma breve aproximação

setembro 20, 2022


De acordo com o físico italiano Carlo Rovelli (2013), se entendermos por “ciência” a investigação sobre uma sistemática atividade experimental então seu início é mais ou menos com Galileu (1564-1642). No entanto, se compreendermos a “ciência” como um conjunto de observações quantitativas e modelos teórico-matemáticos capazes de colocar ordem nessas observações, fornecendo predições corretas então a astronomia matemática de Hiparco (190-120 AEC) e de Ptolomeu (100-170) era uma atividade científica.

Isso significa, numa primeira aproximação, que o termo “ciência” é bastante genérico e depende do nível de amplitude dado a ele. Porém, se olharmos do ponto de vista histórico, os dois momentos indicados revelam a aquisição de um novo instrumento socialmente construído para o conhecimento do mundo pelos seres humanos. Tal processo acompanha o desenvolvimento das forças produtivas, isto é, das capacidades humanas.

Chegando mais perto, é possível afirmar que o núcleo da atividade científica é a compreensão de como o mundo funciona. Mas, aqui surge uma pergunta essencial: por que os seres humanos precisam compreender como o mundo funciona? É algo opcional ou necessário?

Essas perguntas exigem entender uma característica essencial dos seres humanos sintetizada na capacidade de transformar o mundo de maneira subjetivamente orientada. Noutras palavras, os seres humanos transformam a natureza por meio de uma prévia ideação que orienta sua prática produtiva e social, desde as comunidades humanas mais primitivas até o presente.

Essa característica humana, que não existe na natureza, Karl Marx (1818-1883) e seu amigo Friedrich Engels (1820-1895) conceituaram como trabalho, o fundamento dos seres humanos (antropogênese) e da sociedade (sociogênese). Depois, o pensador marxista György Lukács (1885-1971) desdobrou a categoria trabalho em sua estrutura interna e diversas conexões sociais em uma obra clássica: Para uma ontologia do ser social.

Agora, atenção, afirmar que a atividade humana é teleologicamente ou conscientemente orientada não é sinônimo de um dualismo, uma alma (sede da consciência) e um corpo (agente no mundo material). Não existe um espírito tipo Gasparzinho, “o fantasminha camarada”, dissociado do nosso corpo, mas que o comanda. O indivíduo concreto que transforma o mundo para satisfazer suas necessidades é produto de um processo evolutivo natural, de um sistema nervoso complexo e de processos sociais cada vez mais avançados. A consciência é resultado da matéria orgânica e da vida social. Nesse sentido, não há consciência fora do ser biológico e do ser social: não há espírito sem matéria.

Então, segundo a perspectiva aqui desenvolvida, a compreensão subjetiva da realidade é uma necessidade histórica e social das comunidades humanas na busca de sua sobrevivência e da construção de um ambiente humanamente satisfatório. Dessa maneira, a atividade produtiva empurra os seres humanos a uma rudimentar, embrionária e não refletida “práxis científica”.

Benjamin Farrigton (1979), indica progresso intelectual na crescente capacidade dos homens e mulheres primitivos de escolher entre diferentes tipos de pedra, não faltando evidências de acumulação e previsão. O ato de selecionar pedras de acordo com seus propósitos e adaptando-as às suas necessidades revela a relação ontológica entre a atividade consciente de transformar o mundo e a necessidade de compreender as conexões da realidade.

Já o professor de psicologia em Havard, Steven Pinker (2022), vai mais longe ao falar do povo Sã do deserto do Kalahari, na região sul da África. Essa comunidade é classificada como uma das mais antigas do mundo. Seu estilo de vida proporciona um vislumbre de como os seres humanos viveram na maior parte de sua existência, como caçadores-coletores.

Pinker parte dos estudos do cientista Louis Lienberg, especialista em técnicas de rastreamento e pesquisador há décadas do povo Sã, o qual afirma que a razão da sobrevivência desse povo deve-se a uma mentalidade científica. Pinker sustenta que a partir de dados fragmentados, os membros do povo Sã encadeiam o pensamento até chegar a conclusões remotas com uma compreensão intuitiva da lógica, do pensamento crítico, do raciocínio estatístico, da correlação e causalidade, assim como da teoria dos jogos.

Bem, tirando alguns indícios de retroprojeção, Pinker indica a gênese da práxis científica na própria atividade produtiva que faz com que seres bípedes, com capacidade de se livrar do calor pela ausência pelos, com polegares opositores, com capacidade cerebral bem desenvolvida e vida social se tornem humanos.

O povo Sã dedica-se à caça de persistência. Por meio de sua subjetividade articulam suas capacidades sensíveis rastreando pegadas, emanações e dejetos dos animais, e outras pistas, perseguindo a caça até que desabe de exaustão e insolação. E, isso, de forma coletiva e organizada, articulando experiência acumulada, prévia-ideações e uma imagem aproximada do seu ambiente.

Esses fundamentos simples da Ciência no alvorecer da espécie humana, atualmente, por um caminho tortuoso e contraditório, desabrocham nas imagens estonteantes do telescópio espacial James Webb, nas profundezas reveladas da Fossa das Marianas, nas descobertas no coração da matéria, nos horizontes crescentemente ampliados do universo conhecido, nos avanços da neurociência, nas conexões maravilhosas do processo evolutivo da vida, na compreensão dos limites estruturais do capitalismo e nas possibilidades de emancipação social de bilhões de seres humanos.

 

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

Referências Bibliográficas

FARRIGTON, Benjamin. Ciencia griega. Barcelona: Icaria Editorial, 1979.

PINKER, Steven. Racionalidade: o que é, por que parece estar em falta, por que é importante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

ROVELLI, Carlo. Anaximandro de Mileto: o nascimento do pensamento científico. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

 

Esse texto refere-se a questões surgidas na disciplina “Materialismo histórico/ontologia do ser social: a questão do método” do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará PPGE-UECE, semestre 2022.2

 

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

As posições políticas de Nietzche segundo os ensinamentos de Lukács (parte 2)

setembro 15, 2022

 

  

Conforme já referido no meu último texto, Lukács revela que o abandono das ilusões “democráticas” por parte de Nietzche fica bem nítido na sua obra A Gaia Ciencia, de 1882, que contém uma passagem que é “muitas vezes citada pelos fascistas com entusiasmo compreensível”, pois nessa obra Nietzche “toma posição a favor do princípio da hierarquia e da subordinação militar entre oficiais e soldados e o contrapõe à falta de distinção e de caráter aristocrático da exploração capitalista. De fato, ele (Nietzche) enxerga nessa ausência da forma aristocrática exatamente a razão do surgimento dos socialistas[1], ao afirmar que

 

Se eles (os capitalistas) tivessem, em seu olhar e em seus gestos, a distinção dos aristocratas de nascimento, talvez não existisse o socialismo de massas.”[2]

              

Lukács explica que Nietzche vai ficando cada vez mais áspero e passional em seus escritos - inclinando-se cada vez mais contra os valores democráticos -, pelo fato dele “considerar com um ceticismo cada vez maior a possibilidade de vencer os trabalhadores com os métodos até agora empregados, e por temer fortemente – ao menos naquele dado momento – uma vitória por parte dos trabalhadores. Assim escreve Nietzche em Genealogia da Moral (1887):

 

‘Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu – ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como quiser chamá-lo… ‘Os senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum venceu… A ‘redenção’ do gênero humano (do jugo dos ‘senhores’) está bem encaminhada; tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente (que importam as palavras!) A marcha desse envenenamento através do corpo inteiro da humanidade parece irresistível...”[3]     

 

Lukács aponta também que “no decorrer da crescente e cada vez mais vitoriosa resistência dos trabalhadores” na Alemanha de sua época Nietzche “amplia até o paroxismo o seu ódio contra o socialismo e estabelece a forma definitiva de sua antecipação mítica da barbárie imperialista.[4] De fato, isso fica bem patente na seguinte passagem de sua obra O Anticristo:

 

 A quem mais odeio”, “A quem odeio mais da gentalha de hoje? A gentalha socialista, os apóstolos chandalas, que solapam o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com seu pequeno ser – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança… A injustiça não está mais nos direitos desiguais, está na reivindicação de direitos iguais.”[5]

 

E, por fim, Lukács explicita que “é algo característico para a mudança do pensamento de Nietzche que ele, no seu último período, em ‘Crepúsculo dos Ídolos, retorne, de maneira explícita, à afirmação segundo a qual a democracia é a forma da decadência do Estado; agora, porém, num sentido decididamente condenatório” e não mais no sentido do pensamento anterior de Nietzche de que a democracia seria algo positivo porque tenderia a realizar a necessária contenção da luta dos trabalhadores. Portanto, Nietzche passa a ver a democracia como uma forma “fraca” de Estado porque no seu entender ela tenderia a permitir a vitória política dos partidos socialistas.

 

O caráter antidemocrático e reacionário do Nietzche maduro também se revela na seguinte passagem de sua obra Crepúsculo dos Ídolos:

 

 A estupidez – no fundo, a degeneração de instinto, que é hoje a causa de toda estupidez – está em haver uma questão dos trabalhadores. Sobre determinadas coisas não se colocam questões: primeiro imperativo do instinto. - Não consigo ver o que se pretende fazer com o trabalhador europeu depois de tê-lo transformado numa questão. Ele se acha bem demais para não pedir cada vez mais, de maneira cada vez mais imodesta. Ele tem, afinal, o grande número a seu favor. Foi-se totalmente a esperança de aí se formar como classe uma espécie modesta e satisfeita do homem, um tipo chinês: haveria racionalidade nisso, seria mesmo uma necessidade. O que se fez? - Tudo para já destruir em gérmen o pressuposto para isso – liquidou-se completamente, com a mais irresponsável leviandade, os instintos mediante os quais o trabalhador se torna possível como classe, possível para si mesmo. Tornaram-no apto para o serviço militar, deram-lhe o direito de associação, o direito ao voto político: como admirar que hoje ele já sinta sua existência como calamidade (expresso moralmente, como injustiça -)? Mas que querem?, pergunto mais uma vez. Querendo-se um fim, é preciso querer também os meios: querendo-se escravos, é uma tolice educá-los para senhores.”[6]

 

Vê-se nessa citação, de forma bem clara, como Nietzche avalia positivamente o trabalhador servil, submisso, passivo, perfeitamente conformado com as suas duras condições de vida, afirmando ainda que esse era, no seu entender, o perfil do trabalhador chinês de sua época. Além da nítida serventia de tal valoração positiva para o domínio de classe da burguesia, a assertiva sobre o “tipo chinês” de trabalhador possui uma conotação racista de existência de raças/povos supostamente inferiores que, por não conseguirem conduzir-se por si mesmos em direção ao progresso, devem ser “guiados” pelas raças/povos supostamente superiores. Essa ideia foi muito utilizada pelos apologistas do imperialismo dos países avançados como justificativa ideológica para a exploração dos países atrasados coloniais ou semi-coloniais. Lembremos que Nietzche apoiou o imperialismo alemão de sua época. Com base, portanto, na obra de Lukács A Destruição da Razão, ora comentada, pode-se verificar que Nietzche justifica a exploração que uma elite ociosa exerce sobre a classe trabalhadora, no plano interno de cada país, da mesma forma que ele justifica a dominação das raças/povos que ele considera inferiores pelas raças/povos que ele considera superiores, no plano das relações entre povos diversos, o que fica claro por seu apoio ao imperialismo alemão de fins do século XIX. Não deixa de ser irônico que justamente a China, com seu espetacular desenvolvimento industrial e tecnológico das últimas décadas, veio a se constituir em importante exemplo histórico de que não existem raças inferiores e superiores que justifiquem o imperialismo dos países capitalistas economicamente avançados.

 

Domingos Sávio

Membro do GPOSSHE



[1]    Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 293-294

[2]    Nietzche, Werke, Tomo V, p. 77, obra citada por Lukács em A Destruição da Razão, Ed. Institulo Lukacs, p. 293-294.

[3]    Nietzche, Genealogia da Moral, Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 28

[4]    Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 294

[5]    Nietzche, O Anticristo. Cia das Letras: p. 72

[6]    Nietzche, Werke, Tomo VIII, p. 153 (ed. bras.: Crepúsculo dos Ídolos, p. 91)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Sobre o fetichismo do método no marxismo

setembro 09, 2022

 

  Quem conhece o Vale do São Francisco, rio que atravessa os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, já deve ter visto na proa de barcos as famosas carrancas. São próprias da cultura popular da região, sendo usadas para repelir maus espíritos e seres malignos para a proteção das embarcações.

A carranca, como produto social, é um fetiche, um objeto inanimado resultante do trabalho humano e sem nenhum poder em si, no entanto, lhe são atribuídos poderes naturais (afugentar animais) e sobrenaturais (afastar seres maléficos). Assim, um simples objeto material torna-se algo mágico com poderes sobre-humanos. Dessa maneira, um produto da atividade humana passa a dominar os seres humanos. A carranca é um exemplo de fetichismo, um fenômeno social que atribui poderes a entes materiais ou não, tornando os seres humanos dependentes ou submissos a eles.

Nas pós-graduações, em especial na área de humanas, há muitos fetichismos. Destacando-se o fetichismo do método e dos seus poderes mágicos. O método muitas vezes é entendido como algo sem história, encontrando-se desencarnado da práxis humana de intervenção no mundo. O método reina acima de tudo, do objeto e do próprio processo de pesquisa. Então a aplicação abstrata do método em si passa a ser a única garantia de alcance da verdade: puro fetichismo metodológico. O método vira uma carranca.

O pior que tal postura atinge o próprio marxismo, que pagou um preço alto ao entrar nas universidades. Até parece que Marx desenvolveu o método apenas para as pesquisas de mestrado e doutorado. Esse extremo é favorecido por posturas que separam o método no marxismo da luta de classes e da perspectiva socialista. Isso, de fato, é uma projeção da prática academicista que pode ser sintetizada no lema “estudar para transformar”.  Nesse sentido, bastaria repetir algumas frases ritualísticas para a pesquisa e o texto afastar os maus espíritos do positivismo ou da especulação idealista. Nada mais distante da postura de Marx/Engels e dos marxistas revolucionários.

Dito isso, podemos afirmar algumas hipóteses de trabalho sobre o marxismo e seu método.

Primeiro, as elaborações de Marx e Engels são inseparáveis do movimento operário e socialista. O marxismo está vinculado à luta do proletariado por sua emancipação social. Marx levou anos construindo seu método, pois seus estudos nunca foram separados de uma intervenção concreta nas lutas sociais do seu tempo.

Segundo, há um método em Marx que foi nomeado: “método dialético[1]”. Tal método, no entanto, não é uma receita de bolo, não é algo aprioristicamente posto. O método em Marx é plasmado pela intervenção do sujeito no objeto, que indica possibilidades e limites de conhecimento. O fundamento filosófico do marxismo, e da ciência, é o materialismo (explicar o mundo pelo mundo) e o “ideal não é mais que o material, transposto e traduzido na cabeça dos homens[2]”. Para Marx, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta[3]”.

Terceiro, o sujeito que conhece transformando o mundo e transforma o munto conhecendo-o é um ser ativo, nunca passivo. Daí ser uma estultice afirmar que a relação de conhecimento é “objeto-sujeito” ou que o pesquisador deve “ouvir” o objeto para manifestá-lo. Isso não é ciência, nem de má qualidade, é um tipo decaído de espiritismo. O sujeito cognoscente deve ser formado e educado para conhecer/intervir na realidade. A práxis científica deve ser necessariamente desantropomorfizadora para transpor e traduzir o movimento do real na subjetividade humana por meio de leis, nexos, categorias e conceitos. O marxismo não despreza a teoria do conhecimento porque a ontologia, a gnosiologia e a lógica são partes de uma mesma totalidade.

Por último, o marxismo tem muito a contribuir com as pesquisas científicas nas ciências sociais, contanto que não se esqueça de sua natureza imanentemente revolucionária e vinculada à superação radical do presente capitalista.

 

Frederico Costa

Professor da UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

Esse texto refere-se a questões surgidas na disciplina “Materialismo histórico/ontologia do ser social: a questão do método” do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará PPGE-UECE



[1] MARX, Karl. O capital: crítica da economia, o processo de produção do capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 90.

[2] Idem.

[3] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 259.