quarta-feira, 31 de março de 2021

A fraude de 31 de março

março 31, 2021

 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO


A "Ordem do Dia Alusiva ao dia 31 de março de 1964"[1] do Ministro de Estado da Defesa, General Walter Souza Braga Netto, reacende velhos mitos superados por um simples estudo dos fatos históricos. 

Comemorar o golpe militar-empresarial de 1964, no Brasil de 2021, é algo, no mínimo, esdrúxulo. 

Esclareço, primeiramente, com alguns exemplos dos militares nas atuais estruturas de poder.

Temos no Executivo, um capitão da reserva que tem como ídolo um torturador, acompanhado por um general pouco afeito a negros e povos originários, que estão levando, com seus cúmplices institucionais, o país ao aprofundamento da crise econômica, social e sanitária. Há mais de 11 mil militares no governo Bolsonaro, tanto da reserva como ativos[2], para fazer o que não sabe? A recente gestão do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde trouxe um legado de caos, omissões e explosão de mortes por Covid-19[3]. Outro fato trágico, foi a queima de recursos públicos para a compra de picanha, cerveja, bacalhau e uísque para militares[4].

Apesar desses indícios de incapacidade de gestão pública para as grandes maiorias, ainda há quem defenda um regime militar contra as nossas parcas instituições democrático-burguesas. Daí a necessidade de desmascarar fraudes como a comemoração do golpe de 1964 e da ditadura militar.

O golpe teve início com o deslocamento de tropas em Minas Gerais, na madrugada de 31 de março de 1964. O chefe da IV Região Militar, general Olímpio Mourão Filho (1900-1972), de passado integralista[5], justificou o movimento contra o governo constitucional de João Goulart alegando que o presidente tinha abusado do poder e devia ser afastado. 

No dia 1º de abril, “Dia da Mentira”, o golpe consolidou-se, porque setores das forças armadas fiéis à legalidade democrática não se articularam para sair em defesa do governo nem houve uma resposta operário-popular efetiva para conter os golpistas. 

No dia 2 de abril, foi dado o verniz político-institucional ao golpe.


[...] violando todas as normas constitucionais (uma vez que o presidente da República estava no território nacional e não renunciara), o presidente do Senado Federal, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência da República e o lugar de Jango foi usurpado por Ranieri Mazzili [...] O ato violador foi imediatamente aprovado pelo embaixador Lincoln Gordon e, oficialmente, por mensagem do presidente Lyndon B. Johnson, na qual o governo de Washington cumprimentava Mazzili por assumir a Presidência (NETTO, 2014, p. 69).

 

Na verdade, o golpe militar-empresarial de 1º de abril foi contra uma agenda de inclusão social, nacionalismo econômico e democratização política, num contexto histórico de avanço mundial das lutas de libertação nacional, pelos direitos civis, contra as opressões e de ruptura/superação do imperialismo/capitalismo. No Brasil, o governo derrubado não tinha nada de comunista.


Goulart tentou, de maneira corajosa, mas politicamente desastrada, liderar uma coalizão da burocracia estatal, do capital nacional e dos trabalhadores organizados em apoio às chamadas “reformas de base”. Essas reformas deveriam transformar as relações sociais e de propriedade responsáveis pela dependência externa e pela reprodução da pobreza, melhorar a distribuição de renda e riqueza e consolidar uma cidadania mais ampla. O sistema de acumulação proposto incluía o desenvolvimento industrial com base na substituição de importações, a nacionalização dos serviços essenciais, a instauração de controles sobre o capital transnacional e o setor financeiro, o reescalonamento ou não pagamento da dívida externa, a reforma agrária centrada na desapropriação de grandes propriedades “semifeudais” de baixa produtividade, reformas da administração pública e expansão da democracia (SAAD FILHO E MORAIS, 2018, p. 46).

 

No entanto, para as classes dominantes brasileiras, de ontem e de hoje, redução da pobreza, direitos sociais, controle sobre o capital, nacionalização de setores essenciais e maior participação popular nas políticas públicas têm aparência de comunismo. Daí a “Ordem do Dia” comemorando o golpe falar de “amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas”. Mas, não cita o povo, homens e mulheres, trabalhadores do campo e da cidade, pobres, assalariados, remediados, estudantes, intelectuais, servidores públicos, parlamentares, religiosos, burgueses e até militares comprometidos com a democracia, que defendiam a ampliação de direitos e as reformas de bases. O golpe de 1º de abril foi um golpe contra o povo, logo contra a maioria dos brasileiros.


Os dados do Ibope mostram que, às vésperas de ser deposto, em março de 1964, João Goulart tinha boa aprovação na opinião pública das grandes cidades brasileiras, com 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo, e 49% das intenções de voto para 1965. Apenas para 16% dos entrevistados o governo era “ruim ou péssimo”, e 59% eram a favor das reformas anunciadas no Comício de 13 de março (NAPOLITANO, 2014, p. 47).

 

Para piorar, o documento de comemoração golpista ainda afirma que as “Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Bem, a pacificação foi trazida pela onipresença policial-militar, pelo terrorismo de Estado, pelas perseguições, pelos exílios forçados, pela generalização das torturas, pelos desaparecimentos/assassinatos dos dissidentes. O que o regime ditatorial fez, além de roubar os sonhos, projetos e possibilidades de gerações de milhões de brasileiros e brasileiras, foi instaurar um modelo econômico a serviço do grande capital estrangeiro e nacional sobre a superexploração dos trabalhadores. A ditadura militar gerou o agronegócio mantendo o latifúndio. Provocou uma urbanização desenfreada incentivada pelo aumento das desigualdades sociais e da dependência do Brasil aos centros imperialistas, em particular aos Estados Unidos. 

Já as liberdades democráticas que desfrutamos hoje foram frutos das diversas formas de resistência à ditadura militar-empresarial: dos que tombaram nas masmorras, dos que não se calaram, das greves, das passeatas, das ocupações de terra, dos movimentos contra a carestia, das lutas das mulheres, do combate ao racismo, das iniciativas culturais, das organizações LGBTs, das comunidades eclesiais de base, dos grupos de esquerda, do sindicalismo de combate. As conquistas e os direitos não são dádivas das classes dominantes, mas da luta de milhões. O povo organizado derrotou a ditadura militar.

Porém, enquanto militares da ativa ou de pijama continuarem comemorando o golpe de 1º de abril de 1964 e a noite de 21 anos contra o povo brasileiro, as tênues liberdades democráticas atuais continuarão inseguras. Aliás vivemos sob um governo de extrema direita, no contexto de um regime político criado pelo golpe de Estado de 2016, no qual as Forças Armadas tomaram parte e ainda são avalistas. Mas, somos a maioria e os verdadeiros produtores da riqueza. A história, inclusive a mais recente, ensina que por mais limitado que o presente se mostre, o futuro nos pertence.

Ditadura nunca mais. Lugar de militar é no quartel. Nenhuma comemoração do golpe de 1º de abril de 1964.

 

Referências

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura militar brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014.

SAAD FILHO, Alfredo e MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.



[3] https://www.dw.com/pt-br/caos-omiss%C3%A3o-e-explos%C3%A3o-de-mortes-o-legado-de-pazuello-na-sa%C3%BAde/a-56890646

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/alem-de-picanha-e-cerveja-verba-publica-pagou-bacalhau-e-uisque-para-militares/

[5] Foi militante da fascista Ação Integralista Brasileira - AIB, redigiu um roteiro de uma tomada de poder pelos comunistas, o “Plano Cohen”. Nas mãos do governo, o texto foi divulgado e falsamente atribuído à Internacional Comunista como plano real de insurreição, justificando então a adoção de poderes ditatoriais por Getúlio Vargas. As acusações de ter servido à implantação da ditadura pesaram nos anos seguintes, mas foi absolvido num Conselho de Justificação do Exército em 1955.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Pandemia da Covid no Brasil: a dimensão histórica do massacre atual

março 29, 2021

Desenho retratando o interior de um navio negreiro no período da escravidão

Érico Cardoso
Doutorando em educação pela Universidade Estadual do Ceará - PPGE/UECE


    É preciso traçar a dimensão histórica da tragédia atual. Nenhum outro massacre anterior matou tantos brasileiros quanto o atual. Na maior guerra da América Latina, a da tríplice aliança contra o Paraguai, morreram entre todos os exércitos beligerantes, de aproximadamente 300 mil pessoas. Mas se contarmos só o Brasil, foram cerca de 100 mil, porque aqui nós estamos fazendo uma comparação com os mortos pela Covid no Brasil. E alí foram 6 anos de guerra.

    Até hoje, 29 de março de 2021, já morreram 312 mil brasileiros em um ano de pandemia sob o comando de Bolsonaro. Mais do que toda guerra patrocinada pelas classes dominantes da tríplice aliança, e três vezes mais do que a quantidade de brasileiros naquela guerra. Dados quantitativos imensos que todavia não são nem de longe suficiente para revelar a dilaceração e a dor de uma só pessoa que perdeu mãe, pai, filho, irmão, amigo.

    E mesmo esses dados estão subnotificados porque são dados oficiosos, não verificados por uma fonte independente da população que é a principal vítima desse massacre. São os dados do consórcio da grande mídia colhida pelas secretarias de saúde estaduais e na falta de outro levantamento mais preciso. Isso é assim, porque desde o começo o governo federal trata de minimizar a situação, oculta os cadáveres ou escamotear os dados.

    Esse massacre crescente já corresponde ao dobro das mortes em Hiroshima somada as mortes em Nagasaki pelas bombas atômicas.

    Em nenhuma tragédia anterior morreram tantos brasileiros como agora. Nem na maior guerra da história, nem na maior pandemia da história morreram tantos brasileiros como agora.

    Na 2a Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) perdeu 457 soldados na Itália.

    A gripe espanhola matou 50 milhões entre 1918-20, e infectou 1/4 da população mundial. Para efeito de comparação, até agora, a Covid matou menos de 3 milhões (2,7) em todo mundo. A mortandade da gripe espanhola se revela muito maior quando a gente compara as populações. Agora o mundo tem quatro vezes mais habitantes do que naquela época.

    No Brasil, a gripe espanhola matou muita gente, matou 35 mil. Matou até o então presidente reeleito, Rodrigues Alves, um latifundiário escravista. Então a pior pandemia do planeta matou 35 mil brasileiros em 1919. Ora, em julho de 2020 a atual pandemia já havia ultrapassado essa marca. Logo, 35 mil mortos será apenas 10% dos mortos pela Covid no Brasil hoje.

    Então, a primeira conclusão que nós chegamos é que embora essa pandemia, essa tragédia não seja a pior da história mundial, a pior foi, evidentemente, a gripe espanhola, a atual pandemia de Covid se tornou a pior da história do Brasil. Evidentemente, para a nossa geração essa é a maior tragédia vivida, mas de fato essa já é a maior tragédia de toda a história do país, a pior desgraça de toda a história do país desde 1.530, em termos absolutos de perda de vidas.

Mas porque a pandemia se tornou tão mais severa, tão mais mortal?

    Devido a que a população está sendo exposta de forma indefesa ao vírus, as defesas foram retiradas pelo governo e pelo regime em que ele se assenta. O sistema de saúde foi desmontado. Os direitos trabalhistas foram retirados. Os preços dos alimentos, remédios, oxigênio, combustíveis, dispararam. Os leitos foram reduzidos. A vacina não foi adquirida. As informações dadas foram mentirosas e tudo isso provocou essa quantidade histórica de mortes. O governo que supostamente deveria defender seu povo, o desarmou para a guerra e o povo está sendo dizimado como nunca antes.

    Por tudo isso, não é permitido crer que há descontrole sobre a pandemia, mas sim uma orientação claramente voltada para criar o colapso, criar o caos, o desespero, a precarização da vida. Já estamos entrando no estágio Guayaquil, em referência ao que ocorreu no Equador, com as pessoas morrendo no meio das ruas, corpos se empilhando nas casas. Já muitas pessoas no Brasil estão morrendo na porta dos hospitais colapsados. Inclusive, os recém criados "Hospitais de Catástrofe", em São Paulo, já não estão recebendo pacientes que não forem transferidos de outras unidades. Os pacientes que chegam diretamente nesses hospitais não são atendidos, ou seja, já colapsaram os "Hospitais de Catástrofe".

    Pandemias não são novidades no Brasil. Seria tão mais fácil fazer como sempre se fez nas campanhas anteriores, como contra a H1N1, em 2009-2010, por exemplo, há know-how histórico do país e institutos que foram criados para produzir vacinas. Em 2009, o Brasil registrou quase 60.000 casos da doença e 2.146 mortes. Em 2010, o número de mortes caiu para cerca de 100. A vacina contra a gripe H1N1 é aplicada anualmente pela rede pública desde então e 100% das doses são produzidas pelo Instituto Butantã.

    De março a julho de 2010, em apenas três meses, usando as vacinas adquiridas e os novos lotes fabricados pelo Instituto Butantã, o Brasil vacinou 92 milhões de pessoas, ultrapassando com ampla margem a meta em relação ao público alvo. Na atual pandemia, ainda não chegaram a 20 milhões de vacinados, pouco mais de 2% com a segunda dose, ou seja, nada.

    Mas, evidentemente, parece que o objetivo não é salvar vidas, é outro, é oposto, matar. Muitos já levantaram a hipótese que a população está sendo cobaia de um experimento inédito na história.

Como um personagem grotesco como Bolsonaro assumiu o papel de condutor da maior tragédia da história do país?

    Atribuir tamanho feito a Bolsonaro é superestimar sua capacidade de planejamento, articulação e execução. Seria como atribuir o crime exclusivamente ao executor e livrar a cara do mandante. Bolsonaro com todas as suas particularidades é o melhor representante político e herdeiro da classe dominante que mais escravizou homens no planeta. Segundo o Caio Prado Junior, foram 5 milhões de homens escravizados, sequestrados da África.

    A brasileira é a classe dominante que escravizou mais e por mais tempo, três séculos e meios! Mais escravos e por mais tempo em toda a história moderna, ou seja, durante o capitalismo. Por isso o Brasil hoje tem a maior população negra depois da Nigéria. Dentre as atrocidades cometidas contra os negros estava a forma como eram sequestrados e trazidos. Nos navios negreiros, as condições infernais a que foram submetidos os trabalhadores escravizados mataram muitos durante a travessia do Atlântico, foram a antessala da brutal exploração a que seriam submetidos no Brasil, base de um novo ciclo de acumulação de riqueza, baseada no trabalho escravo.

    O golpe e Bolsonaro dentro do processo golpista são instrumentos dessa classe dominante, serva do imperialismo, para estabelecer um novo ciclo de acumulação de capitais as custas dos trabalhadores. Nesse processo, a pandemia foi providencial, serve aos propósitos estratégicos da burguesia e do imperialismo, por mais que formalmente todos declarem que estão tentando combatê-la e por mais que, em certa medida ela prejudique alguns ramos do capital.

    O golpe foi ação de uma frente única de todos os setores dessa classe dominante para livrar-se do governo do PT, retirar direitos conquistados em séculos de luta de classes e aprofundar a exploração do trabalho. Se não fosse o golpe de 2016, o Brasil poderia ter uma vacina própria, o Sistema Único de Saúde não teria sido desmontado antes da pandemia. Só para se ter uma ideia, a Emenda Constitucional 95, vem reduzindo, desde de 2017, quando foi aprovada, em média de 20 bilhões de reais dos recursos necessários para a saúde por ano.

    No orçamento para a saúde de 2020, elaborado em 2019, foram reduzidos 400 milhões de reais em verbas destinadas para vacinas.

    Então, a segunda conclusão é que está se superestimando o medíocre sentado na presidência, que os malfeitos dele foram iniciados no governo anterior e que a maior tragédia da história do país, e ele próprio, Bolsonaro, é uma cepa mais agressiva do regime político estabelecido com o golpe de Estado de 2016, pela classe dominante de quem Bolsonaro é mero testa-de-ferro.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Há 150 anos a classe trabalhadora indicava o caminho: a Comuna de Paris vive!

março 18, 2021

Ouça este texto no final da página.


Frederico Costa[1]


“[...] era uma forma política completamente flexível, ao passo que todas as formas anteriores de governo haviam sido fundamentalmente repressivas. Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho” (Karl Marx).


No dia 18 de março de 1871, eclodiu uma insurreição proletária-popular que, segundo Marx, levou a constituição do primeiro “governo operário”: a Comuna de Paris. De certa forma, o processo que levou à Comuna de Paris já estava presente nos levantes de outubro de 1870 e de janeiro de 1871. Suas raízes se situavam na crise econômica, política e nacional acelerada pelo armistício entre França e Alemanha (28 de janeiro), pela paz vergonhosa assinada por Thiers[2] (26 de fevereiro) e ratificada pela Assembleia Nacional em 1º de março.

De fato, a paz com a Alemanha, cujas tropas ocupavam o território francês, não pôs fim à crise econômica gerada pelo desenvolvimento tecnológico e das estradas de ferro, agravada pelas dilapidações do Império de Napoleão III, pela guerra e pelo cerco prussiano. A grande burguesia industrial, comercial e financeira, com o armistício, abandonou Paris. Durante o sítio da capital, a atividade produtiva foi interrompida, o que levou a miséria a crescer exponencialmente.

A pequena burguesia – artesãos, pequenos comerciantes, camadas baixas do funcionalismo e da intelectualidade – sofria também as consequências do domínio burguês, por isso não foi só o proletariado que compôs o exército revolucionário de 18 de março, mas teve como aliado as massas pequeno burguesas.

Foi a 18 de março, às 3 horas da manhã, que soldados ligados ao governo burguês de Versalhes tentaram furtar canhões da Guarda Nacional.

 Com grande composição operária e popular, a Guarda Nacional constituía uma força formidável: 215 batalhões representando 200 mil combatentes; 450 mil fuzis foram distribuídos durante o cerco prussiano de Paris. Além disso, a capital possuía 2.000 canhões e munição em abundância (Luquet, 1968). 

Diante do anúncio do decreto do governo burguês de Versalhes impondo sua interdição, os Comitês da Guarda responderam, desde janeiro de 1871, federalizando-se e elegendo um Comitê Central com os objetivos de defender a República e velar pela manutenção do armamento. 

Eis a essência da polarização social e política: de um lado, a grande burguesia e seu governo, em acordo com os ocupantes prussianos, de outro, o proletariado e a pequena burguesia parisiense unidos pelos sofrimentos, pelo sítio de Paris e exasperados pelas provocações reacionárias, como extinção do soldo da Guarda Nacional e várias represálias contra a democracia.

No amanhecer do dia 18, o pequeno destacamento da Guarda Nacional que custodiava os canhões em Montmartre foi rapidamente dominado. No entanto, o alarme fora dado. As primeiras a chegar foram as mulheres, que interpelaram os soldados, aproximando-se das peças de artilharia e protegendo-as. Ao chegarem os reforços da Guarda Nacional, os soldados do governo reacionário já haviam sido conquistados para causa popular, negando-se a atirar e confraternizando-se com a população.  Os comandantes da operação, generais Lecomte e Clémente Thomas, foram detidos e fuzilados por soldados do exército regular.

Noutros lugares, como Buttes-Chaumont e Belleville, onde não houve confraternização, as tropas de Versalhes recuaram diante do povo em armas. Com isso, abriu-se uma nova experiência para a humanidade: a possibilidade de um governo dos produtores pelos produtores. Durou apenas 72 dias, pois foi afogada em sangue pela repressão burguesa. Mesmo assim produziu medidas emancipatórias que até hoje nenhum Estado ou governo burguês alcançou. A principal lição a ser tirada: somente a auto-organização de trabalhadores e trabalhadoras pode superar os problemas gerados pelo capitalismo.

A Comuna quebrou a máquina do Estado burguês, atacando seu fundamento opressor de classe: a burocracia estatal.  Com medidas extremamente atuais: 1) todos os cargos administrativos judiciais e do magistério foram preenchidos por meio de eleições, tendo os eleitores o direito de revogar a qualquer momento o mandato concedido; 2) mandatos imperativos, isto é, os eleitos deveriam defender o programa de ação definido pelos eleitores; 3) todos os funcionários, graduados ou modestos, passaram a receber salário de operário, com pequena diferença entre os mais altos e os mais baixos. Isso eliminou os fundamentos do carreirismo, do militarismo, da corrupção e da repressão contra os movimentos populares.

Por tudo isso devemos comemorar hoje o 18 de março, os 150 anos da Comuna de Paris. Imaginem o resultado da aplicação de medidas tão simples como essas no Brasil!


Referências

LUQUET, P. A Comuna de Paris. In: TROTSKY, L.; ZINOVIEV, G; MARTOV; LUQUET, Pnv; DUNAIS, A. A Comuna de Paris: textos, documentos e uma análise sobre as repercussões no Brasil. Rio de Janeiro-Guanabara: Editora Laemmert, 1968.



[1] Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

[2] Marie Joseph Louis Adolphe Thiers (1797-1877), político e historiador francês, monarquista orleanista, ministro de 1832-1834, primeiro-ministro em 1836-1840, deputado da Assembleia Nacional Constituinte em 1848, chefe do Poder Executivo em 1871 e presidente da Terceira República de 1871-1873.


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segunda-feira, 8 de março de 2021

Essa é para os fundamentalistas: de que Bíblia estamos falando?

março 08, 2021

Photo by Samantha Sophia

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Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

A religião desempenha importante função na vida de bilhões de seres humanos no mundo. Oriundas de diversas partes do globo, as religiões são tão diversas quanto as culturas existentes. A fé em deuses ou forças cósmicas dá aos crentes um senso de propósito e significação. Doutrinas e textos sagrados dão orientação moral. Líderes religiosos oferecem instrução, padrões de comportamento e tornam-se, inúmeras vezes, modelos.

O marxismo, enquanto humanismo radical, é materialista e ateu, portanto, não é imparcial diante de um fenômeno tão rico e complexo. Filosoficamente, o materialismo histórico identifica na religião características alienantes e possibilidades emancipatórias. Do ponto de vista político, é tradição do movimento operário a afirmação da II Internacional Socialista (1889-1916): a religião é assunto privado. Daí decorre a intransigente defesa pela esquerda revolucionária do caráter laico das políticas públicas.

Marx[1] afirmou acertadamente que os seres humanos, sob formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, formas ideológicas, tomam consciência do conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e o entrave das relações de produção, levando-o até o fim. Independentemente da veracidade das afirmações religiosas, elas cumprem uma função social, são formas ideológicas que explicam e tornam coerentes a práxis de indivíduos imersos numa teia de contradições.

Atualmente, o fundamentalismo de perfil cristão cumpre um papel reacionário no contexto da luta de classes no Brasil. Uma parcela do clero, católico e protestante, alia-se na defesa das formas mais grotescas de exploração, opressão e dominação política. Para isso, agitam a Bíblia como algo definido e fechado. Será?

De fato, a Bíblia, nas mãos dos fundamentalistas, tornou-se um “ídolo de papel” opressor na vida dos fiéis das classes trabalhadoras. É comum, nas igrejas e correntes fundamentalistas, a omissão de dados históricos importantes. O conhecimento da história do texto bíblico tornaria os fiéis mais críticos e menos manipuláveis. É sabido, que a Bíblia, ou seja, a unidade entre Antigo Testamento e Novo Testamento, é uma criação cristã. Neste texto, vamos nos ater apenas, de forma aproximativa, ao Antigo Testamento presente nas escrituras judaicas e nas bíblias cristãs.

Primeiro, o que conhecemos do Antigo Testamento é aquilo que as classes dominantes de cada época decidiram transmitir, desde os sacerdotes hebreus, que deram início à elaboração da doutrina monoteísta, até as estruturas religiosas atuais. Isso no contexto de profundas contradições e disputas.

Segundo, há diversas versões do Antigo Testamento que espelham a confusa realidade de textos considerados inspirados e reconhecidos. Por exemplo, católicos acreditam que são verdadeiros os 46 livros do Antigo Testamento. Já o Cânone Hebraico aceita somente 39, não reconhecendo como de inspiração divina textos como: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiastes, o primeiro e o segundo livro dos Macabeus e mais algumas passagens de Ester e de Daniel. As igrejas protestantes aderem fundamentalmente ao Cânone Hebraico. Enquanto cristãos coptas consideram canônicos livros que católicos romanos, protestantes e judeus não aceitam, como o Livro de Enoque e o Livro do Jubileu.

Para complicar mais, boa parte do Antigo Testamento encontrado nas bíblias que possuímos foi redigido, fundamentalmente, baseando-se na Bíblia Stuttgartensia, versão impressa do Códice Massorético de Leningrado. Porém, a Igreja Ortodoxa Grega utiliza o Texto dos Setenta (Septuaginta), escrito em Alexandria no Egito, em grego, entre os séculos III e I a. C. Esse Antigo Testamento grego apresenta variações em relação à versão Massorética, algumas muito importantes, porque contêm diferenças consideráveis no significado do texto. Ela representou a base para os “pais da Igreja” nos primeiros séculos, até a Igreja Católica Romana ter decidido o Cânone Hebraico. Os rabinos negam o Texto dos Setenta, só reconhecendo os livros considerados de acordo com a Lei: escritos na Palestina, em hebraico e no período anterior a Esdras (século V a. C.).

Ainda tem mais. Se formos ao território dos samaritanos, na Palestina, veremos que a inspiração divina não está nos códices redigidos pelos massoretas, mas na Torá (Pentateuco) Samaritana, que apresenta inúmeras variações em relação à versão Massorética. Para completar, há a Peshitta, a Bíblia Síria – reconhecida por cristãos maronitas, nestorianos, jacobitas e melquitas –, que, por sua vez, também é diferente da versão Massorética.

Diante disso, é fácil perceber que, antes mesmo das traduções, existem inúmeras  bíblias (Antigo Testamento) e que todas elas, em sua riqueza de variações, são declaradas indiscutivelmente verdadeiras por comunidades que vivenciam suas tradições. Isso demonstra a diversidade do mundo cristão que levanta um dedo acusador contra os fariseus do fundamentalismo que procuram utilizar politicamente uma experiência religiosa alienada à serviço da dominação do imperialismo e da burguesia interna. Daí seu ódio à ciência, ao sistema educacional público, aos oprimidos e explorados, ao mesmo tempo que apoiam o governo Bolsonaro e defendem um regime político obscurantista-ditatorial. Por isso, o clero fundamentalista de extrema direita é contra o reconhecimento da diversidade religiosa (ecumenismo) e a unidade dos trabalhadores/trabalhadoras religiosos na luta pela superação do capitalismo. Na verdade, somente o socialismo garantirá ampla liberdade de crença e consciência na construção de um mundo novo.



[1] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.


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terça-feira, 2 de março de 2021

4 lições que devemos tirar da pandemia

março 02, 2021

 

Foto: Govind Krishnan
 

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Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará - UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO.

 

Há um ano, no dia 26 de fevereiro de 2020, ocorria o primeiro caso registrado de contaminação de Covid no Brasil. Um ano depois, chegamos a mais de 255 mil vidas perdidas, segundo dados oficiais. No dia 25 de fevereiro de 2021, o país registrou o maior número de óbitos pela doença em 24 horas em toda a pandemia: 1.582 brasileiros mortos. Além disso, também se completa 40 dias seguidos de média móvel acima de 1.000 óbitos.

Para piorar, caminha-se para um colapso das estruturas de saúde nacionais, em particular públicas. Estados do Sul, cidades do interior de São Paulo e do Nordeste são exemplos de como a Covid-19 avançou, o que fez governos anunciarem suspensão de cirurgias, de aulas presenciais, toque de recolher e lockdown. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul enfrentam uma explosão de internações nos últimos dias, além da tragédia não resolvida da Região Norte, com a situação emblemática de Manaus.

Ampliando o campo de visão para plano mundial, as perspectivas são desalentadoras, salvo raras exceções de países com forte presença estatal na área da saúde. Nos Estados Unidos, por exemplo, modelo de sociedade capitalista, a pandemia ceifou mais de meio milhão de vidas. 

Diante disso, e com certo distanciamento teórico-político, que lições podemos tirar da atual conjuntura mundial?

Penso que quatro:

1

    A pandemia demonstrou uma verdade elementar: homens e mulheres são seres com um fundamento material natural-social. Depois de séculos de ideologia apresentando a humanidade como a imagem e semelhança de deuses, um vírus demonstra que somos feitos basicamente dos mesmos tijolos que compõem o restante da natureza, tanto inorgânica como orgânica. Com o destaque de que pela atividade vital do trabalho construímos uma nova esfera da realidade: o ser social que se sustenta no metabolismo entre o ser humano e a natureza.

2

    A atual crise sanitária, também, vem revelando o protagonismo da ciência, tão achincalhada por intelectuais pós-modernos e religiosos fundamentalistas. A Covid-19 e suas variantes mostraram a emergência de um vírus mutante de um animal silvestre. As mutações aleatórias e a seleção natural evidenciam a evolução como fato objetivo. E a práxis científica, tantas vezes aprisionada pelos mecanismos do capital, apresenta suas possibilidades emancipatórias em entender e rastrear a disseminação de pandemias, desvendar a estrutura de vírus e bactérias letais, descobrindo mecanismos de curas e contenção. De fato, há muito tempo, os gregos, na primeira revolução científica, acertaram ao afirmar que não eram os deuses que enviavam enfermidades à humanidade, tampouco a solução estava nos templos erigidos a Asclépio. Na trilha inaugurada por Hipócrates, podemos afirmar que a superação da pandemia se encontra nos laboratórios e hospitais.

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    A pandemia não está na raiz de nossos males, apesar de acelerar a desgraça geral. Primeiro, a espiral incontrolável da acumulação capitalista vem causando mudança climática, destruição da biodiversidade, degradação do solo, contaminação da água doce,  poluição dos oceanos com resíduos, desenvolvimento de bactérias cada vez mais resistentes pelo uso de antibióticos na criação de animais e efervescência de vírus letais pela devastação crescente de habitats de populações de seres vivos. Em segundo lugar, a pandemia do coronavírus era a oportunidade que o capital esperava para atacar trabalhadores, povos e países inteiros. Os sinais da iminência de uma grande crise em todo o sistema se manifestaram muito antes que surgissem na China, em dezembro de 2019, os primeiros sinais da epidemia que se espalharia pelo o mundo. A crise não precisava do coronavírus para ser deflagrada. As contradições do sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, no mercado e na exploração do trabalho assalariado estavam sendo gestadas. A sobrevivência do capitalismo e do sistema de dominação imperialista precisa dar um passo à frente na desvalorização do principal componente das forças produtivas, a força de trabalho. Essa nova etapa exige a total desregulamentação das relações de trabalho e a extensão da precariedade à escala mundial, acompanhado de guerras, de terrorismo de Estado e de governos de extrema direita.

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    A pandemia só será superada com a derrota do imperialismo, das burguesias internas e de seus governos. É preciso aprender com a história. A expropriação dos capitalistas, a economia planejada e o monopólio do comércio exterior, apesar dos desvios burocráticos, evidenciou as possiblidades de estruturas sociais de transição como o Leste Europeu, Cuba, Vietnã e Coreia do Norte, por exemplo. É possível derrotar o imperialismo, superar o capitalismo, instaurar o planejamento democrático e romper com a lógica do capital. O socialismo é viável, além de ser a cura para os males atuais. O poder deve ser exercido pelos trabalhadores e trabalhadoras.