quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Uma parte da minha família se foi ontem

setembro 17, 2020

 


Um tio meu faleceu ontem. Francisco era o nome dele. Quinto filho de seis, uma prole que tem minha mãe como a caçula. Minha família materna sempre se manteve muito próxima, moramos todos no mesmo terreno deixado por meu avô para os seis filhos, por isso nunca nos desgarramos, ao contrário, vivemos a felicidade e as contradições de viver todos assim, muito próximos, acompanhando a vida e os problemas uns dos outros.

Meus tios e minhas tias nunca ficaram separados por muito tempo, sempre juntos. Meu tio Chico foi o único que mais se afastou do ninho. Na década de 1990, esperançado pela corrida do ouro da Amazônia, foi trabalhar no garimpo de Rondônia, depois levou a esposa e as duas filhas que tinha. Lá, contraiu malária, sobreviveu.

A primeira sólida lembrança que eu tenho do meu tio é muito alegre: quando ele vinha nos visitar, trazia lembranças, levava coisas do Ceará e eu o imaginava muito rico numa terra muito distante. Eram dias de alegria, minha mãe e os irmãos se reuniam. Com a morte do meu avô, ele veio novamente para o velório e, algum tempo depois, retornou ao Ceará, trouxe minhas primas já crescidas e um filho mais novo nascido naquele estado. Os seis irmãos se reuniram definitivamente e nunca mais se separaram. Vivem todos na mesma rua, meu tio Chico “um pouquinho mais pra lá” do terreno da família.

Quando descobrimos a doença dele, foi devastador. Ele era um ser humano tão complexo quanto qualquer outro, longe da perfeição e que cometeu erros, mas também muitos acertos, por exemplo, criou, junto com a esposa, minha tia Lirene, quatro filhos de sangue e uma de coração. Meu primo e minhas primas são, em grande parte, reflexo dos pais: fortes, determinados, justos, bons, possuem o coração cheio de amor.

A gente sempre pensa que os pais são eternos e, quando um deles se vai, pesa a finitude da vida nos nossos ombros, mas o que fica é uma história de coragem e de luta, de esperança, de determinação que, se não passa pela genética, transmite-se pela convivência e pelo exemplo. Meu tio Chico foi o aventureiro da família, aquele que ousou sonhar mais longe e que viajou quilômetros para realizá-los e proporcionar sonhos maiores para os filhos.

Quero, com esse texto, homenagear meu tio, mas principalmente, meu primo, Ueslei, e minhas primas, Zélia, Leiriane, Larissa e Juliana. Dizer a eles que eu sinto muito, que a do deles é nossa também, mas que o tio Chico nunca será esquecido que ele deixou muitos exemplos para nossa família e que eles vão se perpetuar em cada um de nós, mas principalmente na vida de seus filhos e netos. Sempre veremos o tio no olhar de cada um que o amou.

Neste ano, muitas famílias velaram seus parentes, o Brasil perdeu mais de cem mil de vidas. Ontem, ao velar meu tio, pensei em cada uma dessas famílias e, por mais que as circunstâncias sejam diferentes, cada partida é adiantada. Nunca vivemos o bastante, a morte sempre se precipita.

Karla CostaFamília Costa-Sá

Fotos: acervo pessoal

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

São Bernardo, uma resenha

setembro 14, 2020

    

Graciliano Ramos constrói o romance São Bernardo com um caráter essencialmente brasileiro, mais especificamente nordestino. Utilizando uma linguagem simples e despojada, apresenta a paisagem árida e cruel do sertão nordestino e narra a história também simples, porém, ambicioso, autoritário, rude, egoísta e desumano. o social e o psicológico se fundem, criando uma obra de análise profunda das relações humanas.

    Considerado um marco na literatura brasileira pós-30, esse romance tem como pano de fundo histórico a chamada modernização conservadora ocorrida na década de 20 que culminou com a revolução de 30 e 32. Sob esse cenário, o autor constrói as configurações do espaço, dando significação ao meio agreste e rural, ambiente condicionante do ser e de sua trajetória. Coronelismo, cangaço, ignorância, miséria, são algumas conotações que permeiam o sertão nordestino influenciando de forma determinante os indivíduos e suas histórias.

    Paulo Honório, coronel industrialista, é a personagem principal, o núcleo do romance, firmando-se dentro da obra como um ponto cardeal, visto, por ele, passam todos os vetores que conformam as demais personagens. É em relação a ele, aos valores que ele consolida, às ações que ele realiza que se definem as outras personagens bem como os outros elementos que constituem a narrativa.

    Tendo todo o controle em suas mãos, o fazendeiro Paulo Honório conta sua vida, o modo desonesto como enriqueceu e construiu seu patrimônio, a violência com que tratava seus empregados e os trabalhadores de sua fazenda e a indiferença com que sempre tratou os outros. A partir de sua visão, revela a sua própria história, na tentativa de compreender os fatos passados em sua vida, sua acelerada ascensão social e seu profundo sofrimento interior.

    A atitude dura e dominadora com que assumiu as dificuldades ajudou Paulo Honório à vencê-las. Porém, em relação à Madalena, simples professora desempregada (que vivia com uma tia velha), com quem se casou a fim de garantir um herdeiro para sua fazenda, São Bernardo, a dureza e brutalidade não o ajudou. Pelo contrário, o distanciou consideravelmente da esposa. Possuindo valores completamente diferentes do marido, Madalena é a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto, ou seja, não consegue dominar, nem mesmo compreender.

    É um elemento tão singelo em sua singularidade e tão carregado metaforicamente, o pio da coruja que, ao causar um estremecimento em Paulo Honório, desperta suas lembranças e motiva o relato da ruína de suas conquistas diante da impossibilidade de compreender o outro, principalmente sua mulher, Madalena que, cansada de travar diariamente uma luta com o marido, se suicida.

    Iludido pela ganância, Paulo Honório perde-se em uma simplificação cega da realidade ao contemplar apenas a materialidade, a objetividade, desconsiderando as relações intersubjetivas. Por fim, encontra-se atormentado pelo passado fracassado, transtornado intimamente pela perda de Madalena, única possibilidade de humanização. É o balanço trágico de um homem que, perdido nos laços perversos e implacáveis do sistema social capitalista, acabou por desumanizar-se para poder viver.

    Enfim, uma obra que possui uma importância não apenas dentro do estilo literário ao qual pertence, o Modernismo, mas por sua mediação simbólica, pelas representações e conotações dos dramas psicológicos e sociais, pelas quais envolve o leitor, aproximando-o de uma realidade concreta, levando-o a refletir e a tentar descobrir os sentidos da vida e do mundo humano. Uma leitura tão arisca e áspera tanto quanto encantadora e emocionante considerando a solidez e a grandeza literária de São Bernardo.

Marcilia Nogueira

Professora da Rede estadual do ensino do Ceará, pesquisadora do Gposshe.

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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Nem tudo que reluz é ouro: a luta pela “democracia” na Bielorrússia

setembro 09, 2020

 


No dia 9 de agosto ocorreu eleição na Bielorrússia (antiga Rússia Branca). Os resultados deram vitória ao ex-burocrata estalinista Alexander Lukashenko contra sua rival, a candidata "independente" Svetlana Tikhanovskaya, representante de um programa neoliberal e pró-OTAN. O resultado, com a esmagadora maioria de 80% dos votos, provavelmente adulterados, deu origem a uma mobilização pela democracia no país, que conta com o apoio da grande mídia, da União Europeia (EU) e de setores de esquerda.
            O regime da Bielorrússia parece algo descontextualizado. O governo burocrático local de Lukashenko chegou ao poder após o colapso da URSS em 1991, mas conseguiu evitar, por meio da declaração de independência, o tratamento de choque neoliberal massivo e a destruição econômica que afligiu a Rússia sob o regime de Yeltin.
De fato, a Bielorrússia é dominada por uma burocracia que maneja o aparelho do Estado e os ramos estratégicos da economia nacional, herança do stalinismo, que governou o país por mais de cinco décadas, até a queda da URSS.

A questão central da atual crise gira em torno da ofensiva do imperialismo de desmontar as sobrevivências burocráticas para tomar posse das riquezas naturais e indústrias nacionais. Quando a União Europeia (EU) denomina Lukashenko como o “último ditador” da Europa, na verdade, está assinalando que objetiva remover a casta burocrática estalinista do manejo do Estado e da economia por meio de uma oposição liberal-burguesa. Nesse contexto, Lukashenko, procurando manter os privilégios da camada burocrática, acusa a oposição de querer privatizar a economia estatizada.

Nesse momento, é preciso não ter ilusões no regime de Lukashenko. Mas, é preciso destacar que o movimento de protesto segue a cartilha de golpes de Estado recentes: 1) começou com a contestação do resultado eleitoral; 2) manifestantes de direita, contra a corrupção, bandeiras nacionais e nazistas; 3) predominância de classe média e alguns poucos trabalhadores desorganizados. Há, nas mobilizações, bandeiras vermelhas e brancas da "Bielorrússia", usadas por elementos pró-nazistas na Segunda Guerra Mundial. Além de ligações dos líderes com a Ucrânia e outros países bálticos.
            Importante dizer que o pelotão de choque nazista-neoliberal obedece a interesses imperialistas. A prescrição do Banco Mundial para o país é a seguinte:

“Mais urgentemente, o setor empresarial estatal da Bielo-Rússia precisa de uma reestruturação abrangente. E o que isso implicaria?

• Em primeiro lugar, mantenha públicas as empresas estatais com fins lucrativos ou privatize-as de forma transparente a preços de mercado justos.

• Em segundo lugar, manter os provedores de serviço público e reguladores públicos, mas definir claramente o que eles devem fornecer em troca de fundos públicos.

• Terceiro, reestruturar as estatais deficitárias que poderiam se tornar rapidamente lucrativas, proporcionando um bom retorno sobre qualquer investimento extra.

• E para todo o resto: encerramento ou privatização.

A classificação das empresas nessas categorias deve ser feita por especialistas independentes, a fim de obter avaliações objetivas de quais negócios são viáveis ou não” (https://blogs.worldbank.org/europeandcentralasia/why-economic-reforms-belarus-are-now-more-urgent-ever-0).

Apesar de toda a corrupção e despotismo de Lukashenko, a economia estatizada é progressiva. A experiência histórica demonstra a queda na expectativa de vida na Rússia causada pelo choque econômico de Yeltsin naquele país, por exemplo. O mesmo acontecerá na Bielorrússia se os neoliberais tomarem o poder. Por isso, é preciso:

·    - defender os ganhos sociais fragmentários que ainda foram mantidos na Bielo-Rússia desde o período soviético, mesmo que pela inércia burocrática;

- defender a Bielorrússia e a Rússia, como países capitalistas relativamente atrasados diante da ofensiva do imperialismo e seus representantes imperialistas que buscam "mudança de regime" e "revoluções coloridas” para aumentar a área de exploração e opressão do capital financeiro internacional contra os povos e os trabalhadores.

- defender as conquistas sociais ainda existentes na Bielorrússia, a propriedade estatizada contra a privatização com táticas para superar as ilusões das massas em Lukashenko e Putin por sua inconsequência em lutar contra imperialismo.

- defender a democracia operária e o processo de auto-organização das massas.


Frederico CostaProfessor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

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