A privatização da água e do saneamento e a pandemia
A
aprovação pelo senado federal do Marco Regulatório do Saneamento, traduzido no PL 4162/19, indica
as tendências de fortalecimento de um mercado de água, ao estabelecer, em
última análise, um alinhamento entre massa líquida, saneamento e mercado. Concretamente,
a água e o saneamento se convertem, de maneira categórica, em mercadorias, o
que tende, mais do que nunca, a tornar dinheiro em mais dinheiro. Aliás, dessa
conversão entende bem o relator da matéria, o empresário Tasso Jereissati, o
homem da Coca-Cola no Brasil. Assim, o
Projeto de Lei, que já havia sido acolhido e deliberado na Câmara dos
Deputados, foi aprovado pelos senadores por 63 votos a 13, sublinhando a
correlação de forças que, hoje, determina o caráter das votações essenciais no
parlamento.
Cria-se, assim, um molde legal, jurídico e político de
mercantilização de um segmento que, em larga medida, ainda está debaixo do
controle de estados e municípios, e o faz sob o repetido argumento da
inoperância do Estado, embora se esqueça, em geral, premeditadamente, que firmas
estrangeiras, ao longo do tempo, cuidaram dessa tarefa em muitos lugares do
país, e o fizeram muito mal, o que ensejou uma entrada estatal mais efetiva no
setor. Ainda hoje, há capitais importantes, como Manaus, em que uma companhia
privada está incumbida desse encargo, e o realiza precariamente.
Muitos estudiosos da temática, a
exemplo do pesquisador Flávio José Rocha da Silva, relatam os casos da França e
da Inglaterra, países nos quais o Estado assegurou todo trabalho de saneamento,
considerando que empresas privadas foram incapazes de honrar contratos e
realizar as tarefas que lhes cabiam. Posteriormente, as empresas estatais foram
privatizadas, permitindo ganhos fabulosos ao capital privado. A perda de qualidade
do trabalho, bem como os altos custos, no entanto, produziram um intenso
questionamento das privatizações e, em certos casos, a reestatização foi a
saída encontrada. Ou seja: a experiência histórica tem revelado o campo de
incompatibilidade que se forma à luz das relações entre a febre lucrativa dos
agentes do mercado e às necessidades sociais da população, mesmo nas economias
centrais.
No Brasil, Collor deu os principais
passos, mas foi no governo de FHC que se intensificou a ideia da água, não como
um bem público, mas um recurso dotado de “valor econômico”, um bem mercantil,
para o qual as formas estatais de administração e distribuição, pouco a pouco,
deveriam transitar em direção às modalidades de apropriação privada. Os
governos do PT, por seu turno, avançaram nas parcerias público-privadas, sem,
contudo, agilizar os processos mais agudos de mercantilização pleiteados pelo
grande capital. Temer tentou, sem êxito, acelerar o tempo e as medidas
favoráveis aos extraordinários direitos reivindicados pelo mercado, mas deixou
o legado de uma proposta, e essa foi apropriada por Jair Bolsonaro-Guedes e
transformada no PL 4162/19.
Os privilégios particularistas da
burguesia foram saudados por Paulo Guedes que, ao falar do Projeto de Lei,
exclamou: “Está lindo!”. Nesse mesmo sentido, embora saiba que o diferenciador
do projeto aprovado consiste simplesmente na adoção de um caminho que facilita
o processo de privatização do setor de água e saneamento, a comentarista da
Globo News, Juliana Rosa, saudou a decisão do senado como “uma vitória dos mais
pobres”.
Não se trata de uma euforia do
governo ou da Globo. De fato, toda a burguesia aclamou a deliberação
senatorial. A Folha de São Paulo exibiu a sua posição por meio de editorial. Os
noticiários da Band News não esconderam a animação de seus chefes. Em pleno São
João da pandemia, os representantes do capital soltaram rojões. Entende-se, por
fim, porque a grande mídia confere imunidade à economia política do
bolsonarismo.
No caso dos poderes constituídos, notadamente do poder
executivo e do congresso nacional, a conclusão é lapidar: eles atuaram como zelosos
executores das demandas do mercado. De Jair Bolsonaro a Alcolumbre, passando
por Rodrigo Maia, foram capazes de se desembaraçar de um intricado labirinto, para,
aproveitando-se da pandemia, “passar a boiada”. Não por acaso, o curso
privatista se acelera em múltiplas direções, como se observa no caso de 23% de
florestas públicas que, de repente, se viram em mãos privadas. A destruição
acelerada das florestas demonstram o quanto é dolorosamente tangível a índole
devastadora das forças particulares do capital. É essa índole devastadora,
sequiosa do lucro rápido, que se volta ao setor de água e saneamento, não mais
para tê-lo em pequenos pedaços, mas, agora, por inteiro.
Para justificar o itinerário privatista pretendido,
ressaltam as conhecidas limitações de acesso dos mais vulneráveis, não só à água
tratada, mas a uma necessária rede de esgoto. Os números são desencontrados,
mas estima-se que próximo de 40% da população não têm acesso à rede de esgoto e
1\7 não usufrui de um sistema de água potável. Os que se apoiam nesses números
para justificar às pretensões dos capitalistas, conscientemente, ocultam os
cortes nos investimentos públicos em nome de políticas econômicas de
austeridade e, sobretudo, mascaram que as condições sanitárias desiguais e
desumanas, em última instância, espelham as profundas desigualdades sociais
produzidas pela própria lógica do regime social vigente,. Ao defender uma
medida que favorece essa lógica, fatalmente, apontam não para solução das
demandas sanitárias da maioria da população, mas para que o capital se aposse
de novos mananciais, tendo em vista o enriquecimento de poucos. Por último, mas
não irrelevante, é a ausência de um
plano central para o setor, que, nestes termos, carece de prioridade. A única
solução que o neoliberalismo é capaz de oferecer é privatizá-lo, a pretexto de
universalizá-lo.
Acontece que as promessas dos neoliberais de
universalização não se sustentam, uma vez que as privatizações, nos anos
recentes, fundamentalmente, trouxeram incalculáveis tragédias, dentre as quais a
de milhões de brasileiros, que morando em áreas mais distantes dos maiores
centros urbanos, sofrem dificuldades para efetuar uma simples ligação
telefônica; outros tantos milhões padecem de outro modo de incomunicabilidade,
impedidos de contatos online, conforme se desprende da impossibilidade real, em
meio à pandemia, de aulas e atividades remotas, a não ser excluindo uma parcela
significativa dos estudantes, muitas vezes desprovida da felicidade de um mero sinal
de wi-fi; sem se falar de exemplos mais dolorosos, como Brumadinho e Mariana,
em que a privatização trouxe catástrofe e genocídio. A única universalização é
a do tormento. Mas, enquanto houver algo a ser privatizado, os capitalistas e
os seus ideólogos não se furtarão de lançar ao ar eternas promessas de um sol
de primavera.
A nova promessa de sol é a da universalização do
saneamento básico, até 2033. Amparados nessa promissão, os articulistas da
mídia capitalista reproduzem o discurso no qual privatização é sinônimo de
modernidade. Não se enrubescem ao dizer que ao se aprovar o Marco Regulatório,
a tarefa é ”tirar atraso de décadas”. No fundo, o tal “marco” apenas abre
caminho às privatizações e, a pretexto de responder às desigualdades sociais e
sanitárias extremas, reveladas pela pandemia, descortina um novo setor à fúria
desmedida do capital. Nesse processo, o sucateamento das companhias públicas,
isto é, a destruição das empresas estatais, se dará, par a par, com a “atração”
de investimentos, algo há muito esperado pelos empresários, e, desde sempre, cobrado
pela mídia comercial.
Estima-se investimento de até 600 bilhões de reais,
mas tudo se resume a um sem fim de especulações, bem ao gosto de um sistema
econômico cujo funcionamento está muito próximo ao de um cassino. Não é menos
paradoxal que, junto disso, os próceres do capital soprem uma cantilena de que
entre tarifa social e lucro não há qualquer incongruência. Portanto, os pobres
devem esperar e logo vão ter água tratada, saneamento básico e uma tarifa
barata. O trabalhador, no capitalismo, costuma ouvir falar de sonhos de uma
noite de verão, mas, em regra, acorda devendo o dia que mal começou, pois labuta
para pagar as dívidas e vive algemado por quantias devidas que não cessam de bater
à sua porta.
Quem não se lembra das privatizações de companhias de
energia que ocorreram em alguns estados? Hoje, essas companhias, ao lado das
empresas de telecomunicação, encabeçam as listas de reclamação e tiram o
sossego do homem e da mulher que vivem da venda de sua força de trabalho.
Delas, seguramente, pode se dizer tudo, menos que se caracterizam por adotar
como linha prioritária a adoção de tarifas sociais. Nesse quesito, em especial,
nunca houve, e não há, garantias seguras. Os pobres rurais e urbanos são os que
mais sofrem os efeitos dessa mera evocação retórica, que não se traduz em
serviços tecnicamente eficientes e socialmente acessíveis.
No que concerne à essa retórica, é a promessa de dias melhores que a torna possível, mas o seu simples desenho torna o futuro, desde já, o sinal indevido e indesejado da tragédia. Uma tragédia já conhecida, e que se torna ainda mais sombria quando se nota que, em meio a uma crise humanitária como poucas vezes se viu na história, o governo e o congresso aprovam medidas que prejudicam a grande massa trabalhadora e outras que favorecem os detentores de vastos latifúndios de capital. Isso atribui ao discurso neoliberal um caráter singularmente cínico, mas é apoiado nele que estão passando a boiada. Se essa quadra política não se inverte e, ao contrário, todo esse programa ultraneoliberal permanece, o trabalhador vai pagar caro até para lavar as mãos. A falta de empatia de Jair Bolsonaro é completada pela falta de empatia dos apologistas do seu programa econômico. Por esse motivo, à luta pelo Fora Bolsonaro se deve adicionar a defesa de um programa que represente os interesses da imensa maioria do povo e não de alguns poucos capitalistas. Ou triunfa esse caminho ou a boiada continuará passando, com ou sem Bolsonaro.
Fábio
José de Queiroz
Professor da Universidade regional do Cariri (URCA)
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