sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A desigualdade provocada pela economia capitalista

janeiro 29, 2021

Foto: Johnatan Kho
 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

Em 2010, as 388 pessoas mais ricas do planeta eram donas de um patrimônio líquido privado igual ao da metade mais pobre da humanidade. Para se ter uma noção da disparidade numérica, essas 338 pessoas mais rica caberiam num Boeing 777 ou Airbus A340. Em 2014, eram apenas 85 bilionários para atingir esse patamar, o que exigiria um ônibus de dois andares. Já em 2015, a quantidade de bilionários para igualar o patrimônio de 3,5 bilhões de pessoas eram 62, cabendo confortavelmente num ônibus. O 1% das famílias mais ricas detinham, em 2017, um pouco mais da metade do patrimônio líquido mundial, sem contar com os bens que algumas delas escondem em contas no exterior, o que distorceria ainda mais essa distribuição (Scheidel, 2020).

Tal quadro vem piorando com a pandemia, segundo o relatório O vírus da desigualdade (https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/o-virus-da-desigualdade/), lançado pela Oxfam em 25 de janeiro deste ano, na abertura do Fórum Econômico Mundial realizado em Davos, na Suíça.

No contexto de crise, as mil pessoas mais ricas do mundo recuperaram todas as perdas que tiveram durante a pandemia de covid-19 em apenas nove meses (entre fevereiro e novembro de 2020), enquanto os mais pobres do planeta vão levar pelo menos 14 anos para conseguir repor as perdas, devido ao impacto econômico da pandemia. Isso, mesmo. Em todo o mundo, bilionários acumularam US$ 3,9 trilhões entre 18 de março e 31 de dezembro de 2020 – a riqueza total deles hoje é de US$ 11,95 trilhões, o equivalente ao que os governos do G20[1] gastaram para enfrentar a pandemia. Apenas três dos 50 bilionários mais ricos do mundo viram suas fortunas diminuírem nesse período, perdendo US$3 bilhões entre eles. Dois bilionários que viram os maiores aumentos em sua riqueza nesse período são dos setores de tecnologia e automotivo, produção de baterias e espacial: Elon Musk aumentou sua riqueza líquida em US$128,9 bilhões e Jeff Bezos, em US$78,2 bilhões.

Enquanto as 25 maiores corporações dos EUA estavam em vias de obter 11% a mais de lucros em 2020, em comparação com o ano anterior, as pequenas empresas, naquele país, provavelmente, perderão mais de 85% de seus lucros no segundo trimestre do ano. Entre março e agosto de 2020, bilionários da região do Médio Oriente e Norte da África (MENA, sigla em inglês) aumentaram sua riqueza em 20%, mais que o dobro do financiamento de emergência do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a região no mesmo período e quase cinco vezes o valor do apelo humanitário das Nações Unidas para a covid-19 na região. Na América Latina e Caribe, após a queda dos mercados, a riqueza combinada dos bilionários aumentou 17% entre março e julho de 2020. Isso totaliza US$48 bilhões adicionais, o suficiente para pagar um terço de todos os pacotes fiscais de estímulo introduzidos pelos governos da região em resposta à crise do coronavírus no período. Também foram nove vezes mais do que o crédito emergencial fornecido pelo FMI na região, no mesmo período, e mais de cinco vezes o montante necessário para evitar que 12,4 milhões de pessoas caíssem na pobreza extrema por um ano.

Esses dados expostos pelo relatório O vírus da desigualdade da Oxfam indicam que as pessoas mais ricas além de estarem escapando dos piores resultados da pandemia, estão enriquecendo mais ainda. Enquanto isso, a covid-19, com suas variações adaptativas já matou mais de dois milhões de pessoas pelo mundo (no Brasil, mais de 220 mil), tirando emprego e renda de milhões de pessoas, empurrando-as para a pobreza e a miséria.

A crise provocada pela pandemia expõe a incapacidade da economia de mercado capitalista de manter a vida de bilhões de seres humanos. Nesses últimos anos, políticas de austeridade seguidas por governos de direita, de esquerda reformista e de extrema direita desestruturaram a saúde, a educação e a previdência pública, também, privatizaram estatais, destruíram conquistas trabalhistas, desregulamentaram mercados nacionais e aumentaram a precarização do trabalho. Qualquer mínima dissonância desse roteiro foi combatida com guerras de rapina (Iraque, Líbia Síria) ou com golpes de Estado (Honduras, Paraguai, Brasil). E para quê?

Respondo: para os dez homens mais ricos do mundo conseguirem acumular US$ 540 bilhões desde o início da pandemia – o suficiente para pagar pela vacina contra a covid-19 para toda a população mundial.

Cada vez mais o dilema apresenta-se como: vida ou capitalismo?

 

Referências

SCHEIDEL, Walter. Violência e a história da desigualdade: da idade da pedra ao século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.



[1] Grupo que reúne as maiores economias do mundo.

domingo, 24 de janeiro de 2021

A totalidade concreta em Karel Kosik: uma teoria do real

janeiro 24, 2021


O filósofo marxista Tcheco Karel Kosik (1926-2003) em sua mais notável obra A dialética do concreto (2011), assinala que a categoria da totalidade busca, sobretudo, compreender a realidade nas suas leis intrínsecas e, desvelar, sob a aparência e a causalidade dos fenômenos, as suas conexões internas imanente. Nesse sentido, a totalidade apresenta-se como antítese à perspectiva do empirismo, que leva em consideração apenas as manifestações fenomênicas e causais dos processos da realidade objetiva.

Para Kosik (2011) pela mediação da categoria da totalidade, chega-se a entender a dialética das leis e dos nexos causais dos fenômenos, da essência intrínseca e dos aspectos constitutivos do movimento concreto da realidade, da constituição das partes e do todo, da produção e da reprodução social. Assim, para o filósofo marxista, o sentido fundamental das mudanças ocorridas nas décadas anteriores, no que tange, categoria da totalidade foi sua declinação a uma exigência meramente metodológica de interpretação da realidade. De acordo com o filósofo: “Na filosofia materialista a categoria da totalidade concreta é sobretudo e em primeiro lugar a resposta à pergunta: que é a realidade?  (KOSIK, 2011, P. 42, itálicos no original).

As tendências idealistas do século XX reduziram a totalidade essencialmente à dimensão da relação da parte com o todo e, de forma radical, considerando-a como um produto do pensamento lógico/abstrato no conhecimento do real. Com efeito, a totalidade como um fundamento metodológico perdeu sua força e congruência. Por causa dessa redução, a totalidade acabou se constituindo numa representação idealista da realidade histórico-social.

Nessa polêmica, uma questão fundamental destacada por Karel Kosik (2011) no seu livro ganha relevância: a ideia de que existe uma diferença marcante entre a concepção daqueles que consideram a realidade como uma totalidade concreta, ou seja, um todo estruturalmente articulado em processo de desenvolvimento e autocriação e, a concepção daqueles que justificam que o conhecimento humano não pode apreender a totalidade dos processos factuais, isto é, das relações, dos fundamentos e processos constitutivos da realidade objetiva.

Dessa forma, Kosik afirma que:


Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético [...] se são entendidos como partes estruturais do todo (KOSIK, 2011, p. 44, itálico no original).

    

A totalidade concreta, assim, não constitui apenas o conjunto de todos os fatos, o aglomerado de todos os elementos, relações e processos. Pois, sem o entendimento de que a realidade é uma totalidade concretamente articulada e que se converte em uma processualidade dialética, em que cada fato em sua particularidade e universalidade se determinam mutuamente, o entendimento da realidade concreta não passa de uma mistificação do real.

A dialética da totalidade concreta constitui um método que não visa, inadvertidamente, se apropriar e conhecer todas os âmbitos da realidade, sem levar em conta certas peculiaridades, e oferecer uma compreensão geral da realidade, na determinidade de seus traços múltiplos e constituitivos. Para Kosik (2011, p. 44) a dialética da totalidade concreta “é uma teoria da realidade e do conhecimento que dela se tem como realidade”. O postulado da totalidade concreta “não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade” é, portanto, a teoria da realidade enquanto uma totalidade concretamente articulada.

Essa afirmação teórica evidencia que a realidade é compreendida como uma concreticidade, como uma totalidade estruturada em seus próprios fundamentos e conexões intrínsecas. Um todo mutável, com suas partes interagindo dialeticamente, dinamizando as relações e processos num conjunto articulado, coerente e inteligível. Como assinala Karel Kosik (2011), disso decorre certas orientações epistemológicas para pesquisa, “estudo”, “descrição”, “compreensão”, “ilustração” e “avaliação” de algumas dimensões tematizadas da realidade, quer seja da física, da literatura, das ciências bilógicas, da economia política, de questões teóricas da matemática ou de problemas práticos atinentes à forma de organização das nossas relações em sociedade.

Nesse sentido Kosik (2011, p. 45) enfatiza que no âmbito da ciência moderna a elaboração do conhecimento teórico, atinge tanto “a concepção dialética do conhecimento"[1] como a “compreensão dialética da realidade objetiva”. Com efeito, o filósofo marxista entende que a ciência se apresenta com uma unidade. E uma ciência, concebida como unitária se fundamenta no desvelamento “da mais profunda unidade da realidade objetiva”. A unidade do real; a unidade da realidade objetiva configura uma forma profunda de compreensão da peculiaridade de cada aspecto do real e de cada fenômeno que se manifesta.

A ciência no século XX se notabilizou por ter desenvolvido um conjunto de saberes extremamente especializados. Um grande número de campos do conhecimento científico surgiram, o que expressa de forma significativa, uma maior necessidade de compreensão da unidade material no interior dos múltiplos e dinâmicos aspectos do real. E nesse bojo se destaca um importante elemento, a saber: o problema das conexões entre mecanismo e organismo; causalidade e teleologia e, por conseguinte, a questão da unidade do mundo objetivo.

O que se apresenta como problema para reflexão nesse aspecto é a questão da “diferenciação da ciência”. O desenvolvimento significativo dos vários ramos do saber científico, com suas especialidades, divisões, classificações e etapas parecia comprometer a unidade do mundo, da natureza e, estabelecer uma divisão ou segregação destituindo-os de sua configuração unitária real. Nesse plano, pareceu que as matérias em suas temáticas específicas e os cientistas em suas áreas de pesquisa, se dedicariam apenas às suas disciplinas isoladas, pesquisando e atuando academicamente de forma solitária, sem comunicação e troca de informações no âmbito da comunidade científica. Ao contrário, ressalta Kosik (2011) que com as suas consequências e seus resultados concretos, a diferenciação da ciência levou, amplamente, ao descobrimento mais profundo e a um maior conhecimento da “unidade do real”.

            De outra maneira segundo Karel Kosik:


[...] esta compreensão mais profunda da unidade do real representa uma compreensão também mais profunda da especificidade de cada campo do real e de cada fenômeno. Em pleno contraste com o romântico desprezo pelas ciências naturais e pela técnica, forma justamente a moderna técnica, a cibernética, a física e a biologia que abriram novos caminhos ao desenvolvimento do humanismo e à investigação daquilo que é especificamente humano (KOSIK, 2011, p. 45, itálico no original).

 

Essa tentativa de constituir uma ciência unitária do real é produto da constatação de que a realidade na sua própria estrutura e legalidade imanente é dialética. O que revela-se por algumas analogias entre os diversos campos do real, em que todas as dimensões da realidade concreta, em seus fundamentos, são sistemas, ou seja, “conjuntos de elementos que exercem entre si uma influência recíproca”.

Podemos assim, estabelecer um paralelo entre as várias esferas da ciência em que essa relação se apresenta como conexões concretas, especificamente: a biologia, a física, a química, a tecnologia, a cibernética e a psicologia, no sentido de que elas estão diretamente ligadas aos problemas da organização, da estruturação, da integridade, da dinâmica de interação, levando à conclusão de que “o estudo das partes e dos processos isolados não é suficiente”. Ao contrário enfatiza Kosik: “[...] o problema essencial consiste em ‘relações organizadas que resultam da interação dinâmica, fazem com que o comportamento da parte seja diverso, se examinado isoladamente ou no interior do todo’” (KOSIK, 2011, p.46, itálico no original).

O positivismo no século XIX operou no campo das ciências humanas, especificamente na filosofia, uma perspectiva de análise pautada na “purificação” da concepção “teleológica” da realidade. Esta compreendida como uma estrutura hierarquizada, de acordo com matizes de aperfeiçoamento completo, reduzida simplesmente à realidade física. A maneira hierarquizada como os sistemas, baseados na configuração complexa da sua estrutura interna, resultou, segundo Kosik (2011), do alentado complemento do movimento da ilustração e da herança epistemológica de Hegel. Sob a prefiguração do “mecanismo”, do “quimismo” e do “organismo”, a realidade passou a ser analisada pela perspectiva da complexidade de sua estruturação imanente.

Todavia, salienta Karel Kosik (2011), que só a concepção dialética da realidade, apreendida em seu aspecto ontológico e epistemológico, permite alcançar uma resolução positiva e se desviar do “formalismo matemático” e do “ontologismo metafísico”. Essa concepção dialética da totalidade da realidade efetiva comporta “analogias estruturais” entre os vários segmentos das relações humanas como a linguagem, a economia, as relações de parentesco, por exemplo, representando um entendimento de que a realidade social em sua objetividade dialética está imbricada numa interação dinâmica entre a “analogia estrutural” e a “especificidade dos fenômenos em causa”.

Este princípio da totalidade concreta como perspectiva teórica de pesquisa dialética da realidade social, parte da afirmação de que todos os fenômenos da realidade podem ser apreendidos como um todo estruturado. Todo fato social, portanto, se constitui como um processo histórico, quando é compreendido como um momento do todo. A conexão entre a parte e o todo; a singularidade e a universalidade mediada dialeticamente por processos que interagem entre si, com todas as suas relações e contradições intrínsecas, sugere um sentido ontológico e gnosiológico imanente à própria estrutura hierárquica do mundo real, à relação dialética entre aparência e essência e à relação entre sujeito e objeto no processo de conhecimento.

            Para Kosik (2011, p. 49):


[...] Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade. Do mesmo modo, o todo de que não foram diferenciados e determinados os momentos é um todo abstrato e vazio (KOSIK, 2011, p. 49).

 

Pelo fato de que o real é um todo dialeticamente estruturado, que se cria e se processa, a pesquisa do conhecimento dos fatos ou sistemas de fatos da realidade objetiva, se apresenta como um conhecimento do lugar em que eles se situavam na totalidade da própria estrutura do real, pois, diferentemente, dos postulados do racionalismo e do empirismo, afirma o filósofo marxista, o pensamento dialético tem como ponto de partida o pressuposto de que o conhecimento humano se desenvolve num movimento dinâmico e contraditório, onde sujeito e objeto se determinam mutuamente. A realidade estruturada num todo significa que um conhecimento concreto da própria realidade não configura “um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções” (Kosik, 2011, p. 50).

Este processo de concretização no dizer de Kosik (2011), se caracteriza pela interação “do todo para as partes e das partes para o todo”, do fenômeno para a essência, da totalidade para as contradições, reciprocamente. Isso resulta numa configuração objetiva onde os processos de correlações entre essas esferas se clarificam mutuamente, até atingir a concreticidade. Esse processo de concretização é um “processo em espiral” de “mútua compenetração e elucidação” das categorias. Nesse sentido, o processo de abstratividade dos elementos é suprassumida em uma correlação dialética, baseada na interação “quantitativo-qualitativa, regressivo-progressiva”.

O todo, assim, da realidade, se cria a si mesmo mediante a relação dinâmica das partes. Sobre isso assevera Kosik: “[...] A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes (KOSIK, 2011, p. 50, itálicos no original).

O debate em torno da cognoscibilidade ou não da realidade concreta em si, como conhecimento da totalidade dos acontecimentos, funda-se na perspectiva empirista e racionalista, que afirma a ideia de que o conhecimento se processa a partir de um método de análise somatória. Estes pressupostos que fundamentam na configuração “atomística da realidade” como uma aglomeração indistinta de fatos, processos e coisas.

Na concepção dialética o real é compreendido e prefigurado como uma totalidade que não se constitui apenas como uma soma de relações, fatos e processos, mas também como a sua produção, estrutura e formação. À totalidade dialética, nos informa Kosik (2011, p. 51), “pertence a criação do todo e a criação da unidade, a unidade das contradições e a sua gênese”.

A concepção da realidade como uma totalidade, sofreu fortes ataques no século XX desferidos principalmente pelos empiristas e existencialistas. Para estes o mundo, especialmente no pós-segunda guerra, passou por um contundente processo de pulverização e, assim, deixou de se constituir como uma totalidade estruturada, redundando, por conseguinte, num caótico processo social. Nesse sentido, caberia ao sujeito a tarefa de reorganizar do mundo estilhaçado (KOSIK, 2011).

Num mundo marcado pelo caos, a ordenação das coisas é determinada pelo “sujeito transcendental”, ou pela posição subjetivista, para qual a totalidade do mundo desembocou numa fragmentação das perspectivas existenciais. A possibilidade de se conhecer o mundo em sua totalidade é um problema que Karel Kosic (2011) entende, como uma questão fundamentada na concepção de que o sujeito que conhece o mundo é sempre um sujeito determinado socialmente.

            Pois para o filósofo tcheco:


O sujeito que conhece o mundo, e para o qual o mundo existe como cosmo ou ordem divina ou totalidade, é sempre um sujeito social; e a atividade que conhece a realidade natural e humano-social é atividade do sujeito social. A distinção entre sociedade e natureza anda pari passu com a incompreensão de um fato: a realidade humano-social é tão realidade quanto as nebulosas, os átomos, as estrelas, embora não seja a mesma realidade (KOSIK, 2011, p. 52, itálicos no original).

 

Para a concepção materialista a realidade social pode ser apreendida em sua objetividade; em sua totalidade concreta, quando se desvela a estrutura essencial da realidade social mesma; quando a pseudoconcreticidade é suprimida, quando se conhece a reciprocidade dialética entre base e superestrutura e o homem enquanto sujeito da história. O homem concebido enquanto sujeito histórico-social, como sujeito da práxis objetiva humana é o fundamento, portanto, da compreensão da realidade social como uma totalidade concreta.

        O problema segundo Kosik (2011) da concreticidade ou da totalidade do real, nesse sentido, não está relacionado à “completicidade” ou “incompleticidade” dos fatos, às variações ou às mudanças de perspectivas, mas, igualmente, ao problema fundamental baseado na indagação sobre, o que é a realidade? Ou como se produz a realidade social? “Nessa problemática que indaga o que é a realidade social mediante a verificação de como é criada esta mesma realidade social, está contida uma concepção revolucionária da sociedade e do homem” (KOSIK, 2011, p. 53, itálicos no original).

A conexão interna dos fatos históricos e o próprio fato como reflexo de um dado contexto constitui um fundamento, cuja expressividade teórica, reside na concepção de que cada fato na sua essencialidade ontológica reflete toda a realidade concreta. Assim, a configuração objetiva da análise dos fatos consiste na “riqueza” e “essencialiadade” que eles conformam e expressam na unidade dialética entre ser e pensamento no interior da totalidade histórico-concreta. A realidade social existe, como um conjunto de fatos, mas num sentido de uma totalidade hierarquizada e articulada de fatos (KOSIK, 2011).

Tomemos aqui o exemplo da história. A justificação de que a história é a disciplina que busca descrever os fatos tal “como deveriam ter acontecido” sem a sua necessária interpretação e avaliação crítica, ignorando que os fatos têm uma significação objetiva e sem estabelecer a necessária distinção do que é essencial e acessório é, incorrer num equívoco científico. Kosik problematiza essa questão em tela da seguinte forma:


O historiador deve examinar a ação tal como ela efetivamente ocorreu. Mas que significa isso? A história real é a história da consciência humana, história de como os homens tomaram consciência da contemporaneidade e das ações que ocorreram, ou é a história de como as ações efetivamente ocorreram e de como deveriam ter-se refletido na consciência humana? Surge aqui um duplo perigo: descrever os fatos históricos tal como deveriam ter ocorrido e, portanto, racionalizar e tornar lógica a história, ou então narrar acriticamente os acontecimentos sem avaliá-los, o que, porém, equivale a desprezar o caráter fundamental do trabalho científico que consiste em distinguir o essencial do acessório, assim como o sentido objetivo dos fatos. A existência mesma da ciência depende da possibilidade de fazer semelhante distinção. Sem ela não haveria ciência (KOSIK, 2011, p. 55, itálicos no original).

 

Como afirma Kosik (2011), a mistificação e a equivocada consciência humana relacionada aos fatos contemporâneos ou pretéritos são elementos constituintes da história. Ou seja, as falsas ideias ou a consciência humana equivocada sobre própria realidade, não podem ser encaradas pelo historiador como apenas um fenômeno acessório ou casual, “ou que a eliminasse[m] como mentira e falsidade” que nada tivesse a ver com história, estaria alterando a própria história.
A concepção materialista concebe a existência de um duplo contexto de fatos: “o contexto da realidade”, onde os fatos existem em sua objetividade real imanente, e o “contexto da teoria”, no qual os fatos se constituem num segundo momento, mediados de forma ordenada, onde antes tinham sido extraídos de seu contexto original da realidade. E assim, pode-se conceber que a riqueza do real está na sua contraditoriedade e multiplicidades de significações (KOSIK, 2011).
Kosik clarifica de forma fundamental que o ponto de vista da totalidade concreta não tem nada de semelhança com a totalidade “holística”, “organicista ou neo-romântica”, que conforma o todo, sem considerar as mediações dialéticas com as partes efetuando assim, uma “mitologização do todo”. Do ponto de vista metodológico, a totalidade concreta comporta um processo genético-dinâmico, que pressupõe relações interativas, movimentos e contradições objetivamente determinadas. Pois, “[...] A totalidade não é um todo já pronto que se recheia com um conteúdo, com as qualidades das partes ou com as suas relações; a própria totalidade é que se concretiza e esta concretização não é apenas criação no conteúdo mas também criação do todo (KOSIK,2011, p. 59, itálicos no original).

A totalidade criada como uma estrutura significativa se apresenta como um processo que conforma ao mesmo tempo, a criação do conteúdo objetivo do real e a significação de todos os seus componentes e partes constitutivas. O que configura uma conexão mutuamente articulada. Para Kosik (2011), dessa questão emerge o problema relativo à afirmação de qual dimensão se constituiria como uma determinação primeira no processo de compreensão da realidade objetiva, se a totalidade ou as contradições. Ou seja, o que confere prioridade à totalidade e o que cofere prioridade às contradições. De acordo com Karel Kosik:     “O problema não consiste em reconhecer a prioridade da totalidade face às contradições, ou a das contradições face a totalidade, precisamente porque tal separação elimina tanto a totalidade quanto as contradições de caráter dialético: a totalidade sem contradição é vazia e inerte, as contradições fora da totalidade são formais e arbitrárias” (KOSIK, 2011, p. 60, itálicos no original).

As contradições e a totalidade formam uma unidade dialética mediada por uma interação dinâmica recíproca. Dessa forma, o que separa efetivamente a concepção materialista da totalidade da concepção estruturalista, por exemplo, é que a concreticidade da totalidade é determinada pelas contradições histórico-sociais e, a legalidade imanente própria das contradições na totalidade. Portanto, a totalidade como princípio metodológico constitutivo do método dialético materialista, reside no entendimento de que a totalidade é a totalidade unitária da base e superestrutura com seus movimentos, processos, influências mútuas e relações diversas. Sendo a base seu elemento preponderante em última instância. Do contrário, a totalidade se torna abstrata e vazia.

Entende-se dessa maneira, que a totalidade concebida à luz do materialismo histórico é produto da sociedade humana. O homem é um sujeito histórico-social que no processo de produção e reprodução de sua existência material é, criador da base e da superestrututa. Produz a realidade social como um conjunto de relações sociais, instituições e ideias. Neste processo de criação da realidade objetiva também produz a si mesmo, como um ser histórico-social, provido de sentidos e poderes plenamente humanos, realizando o processo contínuo da “humanização do homem”.

Por fim, ainda destacamos, com as palavras de Kosik que “[...] A totalidade concreta como concepção dialético-materialista do conhecimento do real [...] significa, portanto, um processo indivisível, cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento de sua autêntica objetividade [...]” KOSIK, 2011, p. 61, itálico no original). A realidade concreta é assim, um produto da práxis humana objetivo-subjetiva, que se desenvolve num processo dialético constitutivo imanente da própria realidade historicamente determinada pelos sujeitos sociais em suas relações reais.


Antonio Marcondes

Doutor em educação pela UFC e membro dos grupos GPOSSHE (UECE) e GEM (UFC)

            

Referências bibliográficas    

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 9ª reimpressão no Brasil, 2011. 

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

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Notas

[1] Aqui destaca Karel Kosik (2011, p. 45) que na concepção dialética do conhecimento se manifesta, principalmente, a “relação dialética da verdade absoluta com a relativa, do racional com o empírico, do abstrato com o concreto, do ponto de partida com o resultado, do postulado com a demonstração [...]”.

[2] Aqui cabe uma analogia com a concepção de ideologia de G. Lukács: “[...] A ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos dos ser social; nesse sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade (LUKÁCS, 2013, p. 465, itálico no original).

sábado, 23 de janeiro de 2021

GRAMSCI, 130 anos!

janeiro 23, 2021

 

       Há 130 anos nascia em Alis, na região italiana da Sardenha, o dirigente comunista italiano Antonio Gramsci.

 

       Gramsci aderiu muito jovem ao Partido Socialista Italiano, vindo a ser um de seus dirigentes na virada dos anos de 1910 para a década de 1920, não por acaso, anos que sucederam à Revolução de Outubro na Rússia. Liderou neste momento a tendência Comunista dentro do PSI, que foi onde a batalha contra o reformismo foi mais prolongada dentre os partidos da social-democracia europeia. O PSI chegou a se filiar à III Internacional (Internacional Comunista), fundada pelos dirigentes internacionalistas que vinham da luta contra o reformismo na II Internacional (Internacional Socialista), sob impulso da Revolução Russa.

 

       É uma experiência praticamente solitária esta da opção de um velho partido social-democrata pela nova Internacional e a ação da Fração Comunista, que Gramsci integrava, foi decisiva neste embate.

 

       O partido, contudo, travado pelo peso da direção burocrática, não esteve à altura da situação revolucionária aberta na Itália entre 1919 e 1920, marcada pela emergência dos conselhos de fábrica, órgãos de mobilização do proletariado com vocação de instrumentos de poder.

 

       Ao contrário de se pôr como direção do movimento, o PSI exerceu um peso oposto à mobilização, desaguando na traição aberta ao processo revolucionário.

 

       Este fato de significado maior, a responsabilidade do PSI na derrota dos Conselhos de fábrica, empurram os comunistas à ruptura e à fundação do Partido Comunista Italiano, Seção da Internacional Comunista.

 

       A derrota dos Conselhos, impedindo uma saída operária para a crise da Itália arruinada pela I Guerra, abriu a via da “solução” fascista. Com efeito, em 1922, os fascistas marcham sobre Roma, abrindo o curso que culminaria na Ditadura de Mussolini.

 

       O enfrentamento do fascismo será um fator importante na elaboração da Internacional Comunista a cerca da luta pela unidade do proletariado (Frente Única Operária) e da luta deste para se colocar à cabeça da nação oprimida contra o imperialismo, no caso dos países semicoloniais (Frente Única Antiimperialista). Esta elaboração se consubstanciou nas Teses do Oriente, escritas por Trotsky e adotadas pelo 4o. Congresso da Internacional Comunista. A formulação das teses teve na base, dentre outros elementos importantes (como a luta de libertação nacional na China), o debate sobre o fascismo italiano. Gramsci participa ativamente da elaboração da linha da Frente Única. A discussão será fundamental na polêmica aberta com o grupo de Amadeo Bordiga, que desenvolvia uma linha ultraesquerdista de nenhum acordo para a ação com setores reformistas, pequeno-burgueses e democráticos no enfrentamento do fascismo.

 

       Gramsci faz prevalecer a linha de Frente Única da Internacional que se consubstanciará nas Teses que o PCI vai adotar em seu congresso de 1926, realizado em Lyon, França, dada a perseguição  do Governo fascista. Bordiga findará se separando do PCI, formando o Grupo Prometeo, separação que se tornará irreversível com a decomposição stalinista da Internacional e do PCI sob o controle de Togliatti. Bordiga jamais renunciará ao ultraesquerdismo, o que o distanciará igualmente de Trotsky e da Oposição de Esquerda.

 

       A oposição de esquerda à direção do PCI, conhecida como Grupo dos 3, reivindicará Gramsci, a linha da Frente Única e o essencial das Teses de Lyon. Cabe razão aos que dizem que a expulsão de Pietro Tresso (codinome Blasco) e dos “3” do partido pela camarilha de Togliatti, em 1930, marca o último suspiro de Gramsci no PCI. Blasco seria assassinato por esbirros de Stalin em 43, quando combatia os nazistas como membro da resistência na França.

 

O lugar de Gramsci na liderança comunista na luta contra o fascismo será amplamente reconhecida inclusive pelo inimigo de classe. Detido pela polícia fascista, Gramsci será condenado ao cárcere. O juiz que pronunciou sua sentença sintetizou numa frase o significado desta prisão para a burguesia e para o regime fascista: “Temos que impedir esse cérebro de funcionar durante 20 anos".

 

       No cárcere, Gramsci acompanhará muito precariamente a luta entre bolchevismo e stalinismo no seio da Internacional Comunista e do Partido Russo. Embora tenha condenado a perseguição a Trotsky, Zinoviev e Kamenev (a Oposição Unificada), em especial numa carta enviada ao Presidium da Internacional Comunista, que o burocrata Togliatti impediu que chegasse ao destino, Gramsci, com informações limitadas da situação soviética, acaba por avalizar a pseudoteoria do “socialismo num só país”.

 

       Curiosamente, Gramsci parece temer no internacionalismo de Trotsky uma tendência ao totalitarismo, perigo que ele deduzia de um debate superado entre o fundador do Exército Vermelho e Lenin sobre o papel dos sindicatos no chamado período do comunismo de guerra. Trotsky defendeu então a militarização dos sindicatos como forma destes se juntarem ao esforço de reconstrução do país depois da I Grande Guerra e da Guerra Civil. Não deixa de ser instigante imaginar como Gramsci reagiria ao regime totalitário instaurado pela burocracia stalinista como produto da liquidação dos sovietes como órgãos do poder operário e a consequente expropriação do poder que o proletariado arrebatara em 1917.

 

       Gramsci também não pôde se posicionar diante da política ultraesquerdista do 3o. Período imposto por Stalin à Internacional e a seus partidos, com trágicas consequências na Alemanha, onde o divisionismo, compartillhado pelos Comunista alemães e pela social-democracia, abriu caminho ao nazismo. Stalin, que Gramsci considerou portador de um realismo necessário à construção do socialismo, rasgava ali as Teses sobre o Oriente e a linha da Frente Única em cuja elaboração Gramsci colaborou decisivamente com Trotsky.

 

       As teses desenvolvidas por Gramsci na prisão, em particular a reflexão acerca da questão da hegemonia no quadro do Estado em sociedades complexas, serão amplamente manipuladas, em especial pela direção stalinista do PCI, para forrar uma política reformista de colaboração de classe que, neste partido, chegará ao paroxismo.

 

A prisão de Gramsci tinha um sentido preciso para o fascismo. Era preciso decapitar a classe operária! Eliminar seu dirigente mais capaz e influente. Era, portanto, um ato  racional, destinado a debilitar cabalmente a resistência dos trabalhadores ao fascismo. Com efeito, em condições de saúde deploráveis, Gramsci é libertado em 1934, mas apenas para morrer sob o peso dos sofrimentos vividos no cárcere de Mussolini.

 

Eudes Baima

Professor da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos - FAFIDAM/UECE

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Bolsonaro e a ideologia de mercado

janeiro 22, 2021


Foto: Jon Tyson

O ano de 2021, no Brasil, iniciou-se com uma série de desgraças, mas sem nenhuma relação com uma suposta ira divina. Chegou-se, de fato, ao resultado previsto do golpe de 2016, que culminou com a eleição fraudulenta de um governo de extrema direita, orientado por uma ideologia radical de mercado. O governo Bolsonaro, aparentemente incompetente, seguiu o receituário liberal ao gosto do imperialismo e da burguesia.

Ataque a direitos trabalhistas, destruição da previdência pública, retirada de recursos da saúde, educação e saneamento básico. Além de diversas formas de incentivo à iniciativa privada, isto é, a grandes grupos econômicos estrangeiros e nacionais.

    Bolsonaro, como indivíduo singular, é beócio, fascista, negacionista, fundamentalista entre outras coisas. Mas, o que sustenta seu governo, composto de figuras tão toscas como ele? Por que as classes dominantes o aceitam, apesar das críticas tópicas? Simples, porque o governo Bolsonaro vem fazendo o trabalho sujo para a produção e reprodução do capitalismo periférico brasileiro, com toda sua carga estrutural de superexploração, racismo, patriarcalismo e submissão ao imperialismo.

Os fios que atam esse governo de destruição nacional e os interesses de nossas classes dominantes, herdeiras de escravistas e senhores de terras, é a denominada ideologia de mercado. Como toda ideologia, busca tornar a práxis cotidiana de milhões de pessoas coerente e justificada para manter determinada estrutura social funcionando. A ideologia de mercado surge e se consolida com o avanço do capitalismo, que emprega a força de trabalho de homens, mulheres e crianças para produzir valores mercantis superiores ao valor da força de trabalho desses indivíduos sem meios de produção.

Adam Smith (1723-1790), intelectual orgânico da burguesia em ascensão, no clássico “A riqueza das nações: uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações” (1983), procurou apresentar uma fundamentação teórica para a economia de mercado capitalista. Nesse texto, Adam Smith justifica o mercado por meio de uma concepção ontológica do indivíduo.

Cada indivíduo, na busca de seu interesse egoísta, acaba contribuindo para a formação do interesse geral. Assim, a “mão invisível” do mercado garante a harmonia dos interesses individuais. Daí a necessidade de submeter-se ao absolutismo e aos caprichos da lógica de mercado, como a de um deus calvinista. Dessa maneira, o peso da “mão invisível” seria mais leve, modelando os costumes e pacificando o mundo. Interessante que esse determinismo impessoal do mercado se liga, no pensamento de Smith, com uma teoria moral sustentada no altruísmo, isto é, no sentimento natural de simpatia pelo próximo.

Bem, a história mostrou efetivamente como a constituição do mercado mundial conduziu a destruição de civilizações inteiras nas américas, ao escravismo colonial e às maiores guerras. E como, até os dias atuais, o interesse egoísta de poucos convive com a superexploração e a miséria de bilhões.

De crise em crise, o capitalismo de livre concorrência pariu a estrutura econômica monopolista, o imperialismo e novos ideólogos do mercado. Friedrich Hayek (1899-1992), por exemplo, buscou vincular a defesa do mercado com uma ontologia da existência egoísta ainda mais brutal. 

Para Hayek, em “Direito, legislação e liberdade” (1985), o axioma inicial é que o mercado se impôs por sua compatibilidade com a liberdade individual. No entanto, os indivíduos nunca podem entrar em acordo em termos de fins, porém, o mercado supera essa dificuldade por necessitar apenas de consenso mínimo quanto aos meios. Apenas em sociedades tribais seria possível um acordo explícito sobre valores comuns. Na sociedade moderna, com grande número de informações disponíveis torna-se inevitável a regulação do mercado. Então, eticamente os indivíduos devem em primeiro lugar perseguir de maneira mais eficaz o fim pretendido, sem se preocupar com o papel que este desempenha no tecido das atividades sociais. É o mercado que realiza a coerência entre as múltiplas ações individuais, ajustando-as numa totalidade social. Nessa visão, o mercado é mais do que um mecanismo comercial de ligação entre vendedores e compradores. É o alicerce da harmonia social, processo que Hayec denomina de catalática, por indicar uma estrutura de troca de informações e de ajustamentos recíprocos. O mercado torna-se um jogo catalático que possibilita a coexistência de vários projetos individuais díspares no seio de uma sociedade instrumental que não tem fins nem objetivos próprios. 

Na realidade, tal sociedade instrumental sem fins nem objetivos próprios é a que vem provocando, em termos gerais, crise ambiental, crescente desigualdade social, parasitismo financeiro, cerceamento de direitos democráticos, regressão cultural e diversas formas de barbárie.

No Brasil, como denominar as medidas de combate à pandemia de COVID-19 por parte do governo Bolsonaro e dos governadores, que seguem a receita de austeridade liberal? Quem estabeleceu o teto de gasto público? Quem vem sucateando o SUS? Quem sufoca o orçamento para as universidades públicas? Quem é cúmplice do fundamentalismo religioso contra a ciência? Quem orientou a Petrobrás a fechar há um ano a Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná (Fafen-PR), que poderia produzir 30 mil metros cúbicos (m³) de oxigênio por hora?

É só pensar sobre a retenção de tubos de oxigênio em Manaus, por um tácito empresário hayekiano, interessado apenas em perseguir o fim de lucrar mais. Essa é a filosofia que rege o mundo atual.

O que está em crise não é só o governo Bolsonaro. É o golpismo e a ideologia de mercado, própria das classes dominantes. Ideias ruminadas em grandes meios de comunicação, em púlpitos de templos, em entidades empresariais, na caserna, nas universidades e em diversos aparelhos de hegemonia privada.

Diante disso, urge divulgar valores e práticas de solidariedade, de coletivismo, de fraternidade, de liberdade e de igualdade social. É preciso a formulação de um conteúdo econômico, social e político alternativo às falácias da ideologia de mercado. É preciso não ter vergonha de defender a propriedade social da saúde, da educação, do saneamento básico, da previdência, da energia elétrica, dos meios de comunicação, dos transportes e dos mecanismos da cultura. É preciso destacar a urgência de reforma agrária e urbana, de soberania nacional.  Contra a apropriação privada de riqueza, a propriedade social dos meios de produção; contra a regulação de mercado, o planejamento democrático; contra o golpismo das classes dominantes, o poder da auto-organização dos produtores e produtoras.

A vida deve estar acima dos lucros. Vamos refletir: o capitalismo não foi a primeira nem será última forma de sociabilidade humana.


Frederico Costa

Professor da Faculdade de Educação de Itapipoca da Universidade Estadual do Ceará - FACEDI/UECE

 

Referências

SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HAYEK, Friedrich. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. A miragem da justiça social. São Paulo: Visão, 1985.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O neofascismo e a tragédia no Amazonas

janeiro 15, 2021

FOTO PÚBLICA
 

"Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?"

Milton Nascimento / Fernando Brant

 
GUERRA CIVIL E A TRAGÉDIA AMAZÔNICA

Neste artigo, discuto o nexo entre o governo de características neofascistas, que se assenhoreou de Brasília, e a tragédia que se abate no Amazonas, bem como qual deve ser o centro da tática dos que lutam pela derrocada desse condomínio governamental de extrema-direita.
Estamos em meio a uma guerra civil, pois fascismo é sinônimo de guerra civil. Cada batalha vencida pelos fascistas significa mais corpos no chão. Em suma, mais mortos. O caos, o sufoco, as mortes - nada disso é por acaso. Manaus é um exemplo. A morte por asfixia em janeiro de 2021, em grande parte, foi determinada pelo triunfo fascista nas ruas da capital amazonense no final de 2020. Essa vitória bolsonarista foi antecipada pela retomada das aulas em setembro e o triunfo da extrema-direita na eleição municipal manauara.
Aqui, cabe uma pergunta: eram fascistas todos os que se mobilizaram e cercaram o palácio do governo amazonense no último mês de dezembro? Seguramente, não. Mas, em última análise, as pessoas foram arrastadas pelo programa e o grito de guerra dos neofascistas que, desde Brasília, movem as suas peças no tabuleiro de xadrez da luta política.
O fato é: Manaus sufoca. O governo municipal (o que saiu e o que entrou) é responsável. O governador, idem. Agora, é preciso hierarquizar responsabilidades. Nesse sentido, o bolsonarismo é o fator mais decisivo na criação de um quadro social em que se morre sem oxigênio.
Mourão declara que não tinha como prever o que ia acontecer em Manaus. Além disso, defende a "tese" de que não é possível "disciplinar" o povo brasileiro. Ora, o governo não só previu o que podia acontecer como aplicou uma linha na qual o genocídio era o ponto de chegada. Nessa perspectiva, os genocidas da capital federal disciplinaram um setor de massas apto a assegurar o triunfo dessa linha.
Logo, a variante do vírus - que é apontada como a causa principal desse novo estágio da mortandade no Amazonas - tem responsabilidade no aumento letal de casos da Covid-19, em Manaus, provavelmente, mas a câmara de asfixia só se explica por uma presença recorrente: a do neofascismo e a sua política de morte.


A LUTA POLÍTICA CONTRA A NECROPOLÍTICA FASCISTA


Ao longo da história, o fascismo se caracteriza como aparelho mobilizador, assentado na provocação, no desespero e na violência. Além disso, transforma a contrainformação em uma norma pétrea de suas técnicas e práticas.
Não por acaso, Bolsonaro diz que fez a sua parte. Sem dúvida que sim. O qual era a sua parte? A difusão de ordens do dia no sentido de desenvolver a necropolítica. A resultante mais trágica trafica, agora, pelas casas, hospitais e ruas amazonenses. O fascismo, como corrente histórica, sempre viu a morte como "encenação", "estética" e "performance". Por isso, a pandemia é só uma "gripezinha" e, ao fim e ao cabo, todos iremos morrer.
O certo é que não há como conter a "performance da morte" sem derrotar o fascismo, independentemente da sua cepa. A luta pelo Fora Bolsonaro precisa voltar ao centro da luta política. Pode-se discutir a forma pela qual se deve defenestrar esse governo. O que não deve ser discutido é o seu conteúdo. Se isso parece extremo ou duro, pensemos, antes disso, no extremo e no duro que é a morte sob a regência de um governo em que a bússola do fascismo afia e aponta a sua agulha no rumo do norte da morte.
Na guerra civil em curso, ora latente, ora aberta, só a luta popular será capaz de deter a avalanche bolsonarista e, desse modo, remover a sua política genocida. É sob a bandeira do Fora Bolsonaro que se pode unir e mobilizar as forças sociais capazes de apontar uma nova direção a um país que não para de enterrar os seus mortos.

Fábio José de Queiroz
Professor da URCA - Universidade Regional do Cariri