sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dez dias que abalaram o mundo

Foto: Steve Harvey

Fabrício Rocha
Bancário, Bahia


A linguagem é uma das maiores e mais belas capacidades humanas. Fruto de um longo e árduo processo evolutivo que, entre outras coisas, permitiu ao homo sapiens se diferenciar e se sobrepor aos demais hominídeos e ao conjunto da natureza, a linguagem, devido a ação do tempo, somado a interação do homem com seus semelhantes e com os diversos ambientes geográficos, se complexou de tal maneira que surgiram inúmeros idiomas, dialetos, línguas e com toda esse amálgama, a forma escrita.

A possibilidade de ordenar as palavras para nos comunicarmos, para descrever um ambiente, um fato, contar uma estória ou descrever a história, produzir conhecimento é algo mágico. São infinitas as emoções e reações que a leitura pode nos causar. A depender da forma como as palavras são conectadas para expressar um sentido e significado, podemos dar vazão ao melhor da nossa humanidade mas também expressar aquilo que o ser humano possui de mais vil e abjeto. Podemos também viajar, conhecer o mundo independentemente das coordenadas de latitude e longitude, a qualquer época, século, década, ano etc. É impressionante como podemos, por exemplo, nos sentir parte vivente de um determinado momento histórico, é como se fossemos protagonistas do evento, vivenciado as emoções, as dores e alegrias em tempo real.

Pois bem, foi essa a sensação que eu tive ao ler o livro “Dez dias que abalaram o mundo, história da revolução russa” do jornalista norte-americano John Reed. Nascido nos Estados Unidos, Reed foi um ativista e jornalista formado por Havard que atuou como correspondente no México, Europa e na Rússia. Presenciou e escreveu sobre a revolução mexicana, sobre a primeira guerra mundial e por fim, sobre a revolução russa. Morreu bastante novo, aos 43 anos, de tifo em 1920 na Rússia.

Dez dias que abalaram o mundo é um relato, senão o maior e melhor, da Revolução Russa. Clássico da literatura política, este livro inicia um marco no mundo da narrativa jornalística. Basicamente nos relata os 10 dias que se seguiram ao 25 de outubro de 1917 - no calendário juliano, ou 7 de novembro - nos termos do calendário gregoriano.

John Reed descreve nos três primeiros capítulos os antecedentes e os preparativos para a gloriosa revolução de outubro. Em seguida temos todos os detalhes dos primeiros dias de vida da recém nascida revolução socialista, do primeiro governo operário e camponês da história moderna. O leitor se vê envolvido nas tramas, nas discussões entre os diversos atores individuais e coletivos. A sensação que temos é que estamos presencialmente acompanhando Reed na participação de todos os eventos que ele descreve, tanta é a minúcia em que as ruas, os prédios e seus componentes internos são descritos; tamanho são os detalhes em que o ambiente social, político e econômicos são relatados. Em diversos momentos me encontrei como espectador dos debates apaixonados e tensos que ocorreram nas ruas de Petrogrado, no Smolni, na Dulma, em Moscou e cidades vizinhas, nos sovietes, no front de guerra, nos quarteis e outros ambientes.

Da derrubada do governo provisório à tomada do palácio de inverno, das primeiras batalhas contra a reação formada por todas as forças hostis ao novo governo, Reed dá voz por meio de sua escrita, do seu relato aos mais diversos personagens, desde os eminentes líderes de todos os partidos e facções políticas envolvidos nos atos da revolução, aos camponeses, aos operários, soldados, homens e mulheres do povo com seus sonhos, suas visões de mundo e perspectivas.

Num momento revolucionário, de crise social, de radicalização, setores conservadores, sujeitos vacilantes se apropriam de termos e símbolos até então demonizados com dois objetivos: manter as estruturas conservadas e para que as mudanças inevitáveis se deem em limites bem controlados. Palavras como socialismo, revolução e governo operário faziam parte do repertório de reformistas e revolucionários, dos mencheviques, socialistas moderados, socialistas revolucionários, mas somente os bolcheviques, com Lenin e Trotsky a frente, foram capazes de levar até as últimas consequências as demandas dos operários, soldados e camponeses e conjuntamente com um programa político bem definido ultrapassarem os limites da conciliação e de fato concretizar o caráter socialista da revolução na tomada do poder político e estatal.

Desde o início dos seus primeiros dias de vida, nada foi fácil para o governo operário e camponês. Para garantir a sobrevivência da revolução, bolcheviques tiveram que lutar tanto contra os inimigos externos - o governo provisório derrubado pela revolução de outubro manteve a Rússia imersa na primeira guerra mundial- quanto com os inimigos internos. Todos os representantes da velha ordem, latifundiários, capitalistas, monarquistas e a esquerda reformista se uniram, inclusive em armas, para destruir o recém governo saído da revolução e corroborado pelo Segundo Congresso de Sovietes dos Deputados Operários e Soldados.

Para aqueles que acham que a fakenews é um problema contemporâneo, ficará surpreso ao constatar como a mentira é um instrumento de arma política utilizado em circunstâncias de crises e rompimento do tecido social de uma ordem carcomida como foi o exemplo da revolução russa. Os inimigos do governo revolucionário utilizaram sem pudor desse expediente para espalhar mentira em todas as direções e provocar confusão com o objetivo de fazer a balança pender para o lado da contrarrevolução.

O estudo da revolução russa sempre será um poço de exemplos, de conhecimento intermináveis para a esquerda revolucionária. Aqueles que abandonaram a perspectiva da transformação radical sempre se esforçaram para deixar a revolução russa circunscrita aos limites do início do século XX, mas é inevitável, ao ler o livro Dez dias, fazer paralelos, levando em consideração a diferença temporal, entre o caleidoscópio político e a conjuntura da Rússia revolucionária e atual conjuntura brasileira. O debate entre a reforma e revolução sempre esteve por trás das mais diversas realidades sociais desde que o capitalismo se constituiu enquanto um sistema mundial dominante.

O livro termina no momento em que a união dos operários e camponeses é ratificada pelo congresso dos sovietes dos camponeses de toda Rússia. Em seguida a cidade de Petrogrado é tomada por um turbilhão pessoas, trabalhadores de todas as atividade econômicas, soldados, mulheres dos mortos que defenderam a revolução dos ataques, filhos e filhas destes últimos fizeram uma grande homenagem aos verdadeiros heróis do povo e ao mesmo tempo comemoraram a consolidação do novo regime representado pela união dos operários e camponeses. Este foi um dos poucos momentos em que a revolução respirou, por menor que fosse, com um pouco de alívio. O pior ainda estaria por vir.

Quer ter a sensação de vivenciar o maior acontecimento do século XX? Leia Dez dias que abalaram o mundo.