As imagens, entretanto, nos vieram à mente por uma razão.
Ambos os governantes albergaram recentemente leis que põem sob responsabilidade do Estado a distribuição de bíblias nas escolas públicas. No caso do Ceará, a lei foi de iniciativa do Governador Elmano.
As leis são, a nosso ver, um ataque à laicidade do Estado (e são, portanto, inconstitucionais) e à democracia.
No último dia 12/11, o Prefeito de direita de Salvador (BA) sancionou Lei aprovada na Câmara Municipal de teor semelhante a outra aprovada no Ceará, de iniciativa do Poder Executivo, que encarrega o Estado de distribuição de bíblias em suas redes escolares.
A "coincidência" deixa o governador cearense Elmano em péssima companhia, diga-se de passagem.
Como sempre, o Governador fez este temerário movimento sem perguntar ao PT e sem se importar com a opinião dos petistas ou com o que pensa o Setorial Inter-religioso do partido, um dos mais ativos nos últimos tempos.
Obviamente, a sociedade civil, salvo a direita evangélica, também não foi ouvida. E nela, a sociedade, muito menos os especialistas em educação.
O fato, contudo, é que a lei cearense, como a lei municipal de Salvador, se constituem em um grave ataque ao Estado Democrático de Direito e à escola pública laica, condição da democracia, e, como se sabe, alvo preferencial da direita no país.
A tentativa de reunir de novo Estado e religião no âmbito de um único poder público, como no tempo do Império, é parte central, principalmente no plano da retórica eleitoral, do arsenal da direita em seus perigosos delírios de "guerra espiritual" contra o PT, a esquerda e a democracia em geral.
Lendo a lei do Ceará, não nos escapa o papel irônico do seu Art. 2° que manda botar placa nas escolas, dizendo que intolerância religiosa na escola é proibido. Ora, a discriminação de qualquer tipo já é proibida no Brasil por legislação supra. Depois, a placa é inútil frente a uma rede pública em que se escolheu fazer do credo religioso objeto da rotina escolar. Como se diz em bom cearês, o Art. 2° é só para tirar a suja.
É um pouco inacreditável termos de polemizar entre nós sobre este tema de novo.
Aqui, por óbvio, não se trata de uma discussão sobre religião. O mesmo Estado Democrático que proclamou há mais de 230 anos seu caráter civil, até por consequência, anunciou a liberdade privada de credo. Por ironia, aliás, foi um deputado comunista, Jorge Amado, quem introduziu em nossa legislação a liberdade de culto, por ocasião da adoção da Constituição de 1946.
Entre tantas outras razões, o Estado Democrático é necessariamente laico porque:
- não deve ser um ente privado, nem uma reunião de distintos interesses privados, mas público, concernente ao abrigo de todos os cidadãos, pois "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, como sexo, raça, religião, classe social ou qualquer outra" (Art. 5°, CF, 1988).
- coerentemente com isso, o Estado não se identifica nem favorece nenhuma opção religiosa, nem reconhece como preferencial nenhuma delas.
- é condição para que o Estado trate com igualdade todos os cidadãos que não os distinga conforme sua fé.
- em conclusão, o Estado deve ser laico justamente para respeitar a liberdade de credo. Assim, a única norma estatal diante das religiões deve ser a de assegurar a liberdade plena de seu exercício.
- quanto ao mais, o Estado e seus entes não invocam nenhum credo como balizador de suas ações. Lembre-se de que o Estado braseiro não tem exercido a defesa da liberdade de credo como deveria, visto os recorrentes ataques violentos aos lugares de devoção das religiões de matriz africana e mesmo a padres e pastores cristãos que tomam a defesa dos extratos mais vulneráveis da sociedade.
De outro lado, as leis Inconstitucionais aprovadas no Ceará e em Salvador parecem responder a algum tipo de restrição ao uso da Bíblia, que deveria, então, frente a isso, ser resguardado no âmbito da escola. Coisa que simplesmente não existe. Nada proíbe escolas e professores de inserir, sempre que pertinente, o livro dos cristãos em aulas de história, de filosofia, de sociologia, etc., como um dado objetivo da realidade. O que é inadmissível e o uso da bíblia como instrumento de instrução religiosa, coisa que cabe às igrejas, mas não ao sistema escolar.
Ainda neste aspecto, é bom que se diga que a Bíblia está já presente nas bibliotecas públicas, das escolas e das universidades, e o acesso a ela é livre, não justificando uma nova compra deste livro pelo poder público. O que deveria preocupar, aí sim, ao prefeito de Salvador e ao Governador Elmano é verificar se as escolas de suas redes respectivas contam todas com este item imprescindível ao trabalho pedagógico que é a biblioteca.
Neste contexto, sumariamente descrito, qual o significado de adotar leis como as do Ceará e a de Salvador? Esperamos que não, mas parecem vulgares manobras eleitorais para satisfazer a insaciável fome de poder das lideranças evangélicas, com o fim de angariar seu apoio em 2026.
O problema, além desta rasteira e mesquinha motivação eleitoral, é que se trata de um manobra que comporta um agravo de grande risco à democracia e, vejam só, à liberdade de credo e a isonomia no tratamento do Estado aos variados credos, posto que as leis aprovadas excluem abertamente parte considerável das fés professadas por cearenses e soteropolitanos.
Por fim, era de bom tom que os governos divulgassem respostas a perguntas comi:
- o que quer dizer o Art. 1° da Lei cearense: "fica autorizada a disponibilização, no acervo das escolas públicas da rede estadual de ensino, de exemplares da Bíblia e de demais livros sagrados"? Não há ao menos um exemplar da Bíblia em cada escola que tem biblioteca? O que seria "disponibilizar", então?
- com efeito, o Poder Público tem um levantamento dos livros necessários ao estudo da ciência e que estão ausentes das escolas?
- qual a dotação orçamentária para a compra e distribuição de livros sagrados?
- que livros sagrados serão distribuídos (Al Corão, a Torá, o Bagavadeguitá, o Livro de São Cipriano, o Livro de Mórmom, a Bíblia do Novo Mundo das Testemunhas de Jeová, entre outros, estão na lista?)?
- como ficam as religiões orais, como as de matriz africana, que não têm livros sagrados e são a segunda (quando não a primeira) religião da maioria dos brasileiros?
- todas as múltiplas e bem diferentes versões da Bíblia serão distribuídas, ou só aquela reconhecida por determinada denominação?
- a literatura ateia também será contemplada? - afinal, ateus também gozam de cidadania.
- todas as escolas dispõem de bibliotecas para abrigar estas bíblias que serão distribuídas?
Abaixo, a Lei que institui no Ceará a distribuição por conta do erário (orçamento público) de bíblias nas escolas da rede estadual cearense.
Em tempo, e para ser justo, a lei de Salvador prevê o uso paradidático da Bíblia (o que é uma segunda Inconstitucionalidade); a lei cearense, não.
Eudes Baima
Membro do Diretório Municipal do PT Fortaleza
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LEI Nº 19.386, de 07 de agosto de 2025. (D.O.07.08.2025)
DISPÕE SOBRE A DISPONIBILIZAÇÃO DE EXEMPLARES DA BÍBLIA E DE DEMAIS LIVROS SAGRADOS DE RELIGIÕES PROFESSADAS NO PAÍS, NAS ESCOLAS DA REDE PÚBLICA ESTADUAL DE ENSINO.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ. Faço saber que a Assembleia Legislativa decretou e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica autorizada a disponibilização, no acervo das escolas públicas da rede estadual de ensino, de exemplares da Bíblia e de demais livros sagrados de religiões professadas no País.
Art. 2º Fica instituída a obrigatoriedade de fixação de placas contendo o texto “É EXPRESSAMENTE PROIBIDA QUALQUER AÇÃO DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NESTE LOCAL” em todas as escolas da rede pública de ensino do Estado do Ceará.
Parágrafo único. As placas devem ter o tamanho mínimo de 50 (cinquenta) cm x 50 (cinquenta) cm, e sua confecção e instalação são de responsabilidade da gestão de cada unidade escolar.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
PALÁCIO DA ABOLIÇÃO, DO GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, em Fortaleza, 07 de agosto de 2025.
Elmano de Freitas da Costa
GOVERNADOR DO ESTADO
