segunda-feira, 14 de setembro de 2020

São Bernardo, uma resenha

    

Graciliano Ramos constrói o romance São Bernardo com um caráter essencialmente brasileiro, mais especificamente nordestino. Utilizando uma linguagem simples e despojada, apresenta a paisagem árida e cruel do sertão nordestino e narra a história também simples, porém, ambicioso, autoritário, rude, egoísta e desumano. o social e o psicológico se fundem, criando uma obra de análise profunda das relações humanas.

    Considerado um marco na literatura brasileira pós-30, esse romance tem como pano de fundo histórico a chamada modernização conservadora ocorrida na década de 20 que culminou com a revolução de 30 e 32. Sob esse cenário, o autor constrói as configurações do espaço, dando significação ao meio agreste e rural, ambiente condicionante do ser e de sua trajetória. Coronelismo, cangaço, ignorância, miséria, são algumas conotações que permeiam o sertão nordestino influenciando de forma determinante os indivíduos e suas histórias.

    Paulo Honório, coronel industrialista, é a personagem principal, o núcleo do romance, firmando-se dentro da obra como um ponto cardeal, visto, por ele, passam todos os vetores que conformam as demais personagens. É em relação a ele, aos valores que ele consolida, às ações que ele realiza que se definem as outras personagens bem como os outros elementos que constituem a narrativa.

    Tendo todo o controle em suas mãos, o fazendeiro Paulo Honório conta sua vida, o modo desonesto como enriqueceu e construiu seu patrimônio, a violência com que tratava seus empregados e os trabalhadores de sua fazenda e a indiferença com que sempre tratou os outros. A partir de sua visão, revela a sua própria história, na tentativa de compreender os fatos passados em sua vida, sua acelerada ascensão social e seu profundo sofrimento interior.

    A atitude dura e dominadora com que assumiu as dificuldades ajudou Paulo Honório à vencê-las. Porém, em relação à Madalena, simples professora desempregada (que vivia com uma tia velha), com quem se casou a fim de garantir um herdeiro para sua fazenda, São Bernardo, a dureza e brutalidade não o ajudou. Pelo contrário, o distanciou consideravelmente da esposa. Possuindo valores completamente diferentes do marido, Madalena é a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto, ou seja, não consegue dominar, nem mesmo compreender.

    É um elemento tão singelo em sua singularidade e tão carregado metaforicamente, o pio da coruja que, ao causar um estremecimento em Paulo Honório, desperta suas lembranças e motiva o relato da ruína de suas conquistas diante da impossibilidade de compreender o outro, principalmente sua mulher, Madalena que, cansada de travar diariamente uma luta com o marido, se suicida.

    Iludido pela ganância, Paulo Honório perde-se em uma simplificação cega da realidade ao contemplar apenas a materialidade, a objetividade, desconsiderando as relações intersubjetivas. Por fim, encontra-se atormentado pelo passado fracassado, transtornado intimamente pela perda de Madalena, única possibilidade de humanização. É o balanço trágico de um homem que, perdido nos laços perversos e implacáveis do sistema social capitalista, acabou por desumanizar-se para poder viver.

    Enfim, uma obra que possui uma importância não apenas dentro do estilo literário ao qual pertence, o Modernismo, mas por sua mediação simbólica, pelas representações e conotações dos dramas psicológicos e sociais, pelas quais envolve o leitor, aproximando-o de uma realidade concreta, levando-o a refletir e a tentar descobrir os sentidos da vida e do mundo humano. Uma leitura tão arisca e áspera tanto quanto encantadora e emocionante considerando a solidez e a grandeza literária de São Bernardo.

Marcilia Nogueira

Professora da Rede estadual do ensino do Ceará, pesquisadora do Gposshe.

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