quinta-feira, 27 de maio de 2021

A concepção de práxis em Adolfo Sánchez Vázquez: breve nota



         Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011) foi um dos mais célebres filósofos marxistas do século passado. Pensador revolucionário, preocupou-se durante toda a sua trajetória intelectual com a necessidade de vincular a teoria com a prática. Suas ideias ajudaram a depurar o marxismo dos dogmatismos e reducionismos fomentados sobretudo pelo stalinismo e seus consortes. Nasceu em Algeciras, Espanha. Foi para o México em 1939 onde exilou-se e passou a estudar filosofia na UNAM. Publicou inúmeras obras: As ideias estéticas de Marx (1965), Filosofia da Práxis (1967), Estética e marxismo (1970), Do socialismo científico ao socialismo utópico (1975), Ensaios marxistas sobre filosofia e ideologia (1983), Filosofia e circunstâncias (1997), Entre a realidade e a utopia (2000), entre outros.

         Em seu mais importante livro, A filosofia da práxis, Vázquez discute a noção de práxis a partir da tradição do pensamento crítico, enfatizando principalmente as contribuições do marxismo sobre o tema. Nesse sentido, segundo o filósofo espanhol, o marxismo não é uma simples teoria,  tampouco uma mera cosmovisão de mundo, mas fundamentalmente uma prática revolucionária da realidade histórica.

         Em Vázquez a concepção de práxis não está limitada apenas a um âmbito. Ela perpassa a arte, a inventividade teórica, a transformação revolucionária da sociedade, a organização e luta de classes. Estes são exemplos de práxis criadoras na medida em que expressam a unidade entre subjetividade e objetividade, pensamento e realidade, reflexão e ação no contexto dos processos que constituem o movimento concreto do devir histórico, singular, único e irrepetível. O fluxo do tempo configura a gênese, o desenvolvimento, as contradições e a reprodução da vida em sua totalidade.

         “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”, afirma Sánchez Vázquez. Para o filósofo marxista, é necessário distinguir a práxis enquanto uma forma de atividade específica. Dessa maneira: “Por atividade em geral entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) modifica uma matéria-prima dada”. Justamente por sua generalidade, essa caracterização da atividade não especifica o tipo de agente (físico, biológico ou humano) nem a natureza da matéria-prima sobre a qual atua (corpo físico, ser vivo, vivência psíquica, grupo, relação ou instituição social) nem determina a espécie de atos (físicos, psíquicos, sociais) que levam a certa transformação” (Vázquez,  2007, p. 220).

         Nessa acepção ampla, atividade contrapõe-se a passividade, e seu âmbito é a efetividade, portanto não a do simplesmente possível. Toda ação de um agente é concreta, ou seja, sua ação efetiva não é só uma possibilidade. Quem atua, faz isso mediante uma relação em que o todo e as partes constituem uma totalidade processual, pois os atos deslocados, isolados, desarticulados ou justapostos, não representam uma atividade. O que caracteriza especificamente uma atividade humana, é quando os “atos dirigidos” a um objeto determinado visando transformá-lo, se realiza como um resultado ideal, ou uma finalidade posta, o que resulta em um produto efetivo, concreto, real.

         “Esse modo de articulação e determinação dos diferentes atos do processo ativo” distingue radicalmente a atividade especificamente humana de qualquer outra que se encontra em um nível meramente natural. Essa atividade implica a intervenção da consciência, graças à qual o resultado existe duas vezes – e em tempos distintos: como resultado ideal e como produto real” (Vázquez, 2007, p. 221). Em virtude dessa capacidade de antecipar idealmente um resultado real que deseja lograr, a atividade propriamente humana possui, assim, um caráter consciente. Com efeito, para se falar em atividade humana é preciso que se elabore nela um resultado real, uma finalidade a ser cumprida, “como ponto de partida”, e “uma intenção de adequação”, independentemente de como seja plasmado o modelo ideal originário.

         A atividade humana, dessa forma, é uma atividade que se orienta com base nos fins. Estes só existem por causa do homem, como produtos de sua consciência ponente. Nesse sentido, toda ação verdadeiramente humana reside na ideação de um fim, a qual está sujeitada ao curso da própria atividade criadora. O fim constitui a expressão através da qual os indivíduos agem diante da realidade. “Quem se propõe a realizar uma viagem, construir uma cadeira, pintar um quadro ou transformar um regime social, mostra determinada atitude diante de uma situação real, presente. Se  o homem vivesse em plena harmonia com a realidade, ou total conciliação com seu presente, não sentiria a necessidade de negá-los idealmente nem de configurar em sua consciência uma realidade ainda inexistente” (Vázquez, 2007, p. 222).

         Ao prefigurar idealmente em sua consciência um fim a ser alcançado, o homem, necessariamente, nega a realidade concretamente existente. E consequentemente, “afirma outra que ainda não existe”. Os fins são produtos da consciência, portanto, a atividade dirigida pelos homens é consciente. Contudo, não se trata aqui, segundo Vázquez, de uma atividade desenvolvida por uma consciência pura, mas seguramente, por um “homem social” que não pode renunciar à produção de fins em nenhuma forma de atividade concreta, incluindo, decerto, a “prática material”.

         O fim, com efeito, é a representação do resultado de uma atividade real, prática, e que não é exclusivamente uma pura atividade da consciência. Esse processo possibilita o indivíduo criar uma relação de interioridade com seus diferentes atos e com seus produtos, pois a sua consciência visa estabelecer o fim como leis de suas próprias ações, leis estas que regem e subordinam os próprios produtos da criação humana.

         Desse modo, a antecipação ideal do resultado efetivo, possibilita a conformação dos atos singulares dos indivíduos numa totalidade dirigida pelo fim. Isto é, a capacidade da consciência humana de idealizar o resultado real, é o que diferencia radicalmente os homens de qualquer outra atividade animal, que exteriormente pode ser semelhante a ela. Nas palavras de Vázquez (2007, p. 223): “Levando em conta a semelhança externa que se pode dar entre certos atos animais e humanos, é preciso concluir que a atividade própria do homem não pode reduzir-se à sua mera expressão exterior, e que dela forma parte essencialmente a atividade da consciência”. Ou seja, essa atividade se desenvolve com base na produção de fins que prefiguram idealmente o resultado real que se deseja conseguir, entretanto, esse processo também se manifesta, como produção de conhecimento, na forma de conceitos, conjecturas, teorias e legalidades mediante as quais os indivíduos conhecem a realidade concreta.

         Aqui Adolfo Sànchez Vázquez assinala uma questão sumamente importante, que é a diferença entre a atividade cognoscitiva e a teleológica. A primeira se refere a uma realidade presente que se busca conhecer, a segunda trata de uma realidade futura, e que portanto, ainda não existe. A atividade cognoscitiva se preocupa com a realidade já posta, realizada pela ação dos homens no seu processo de produção e reprodução das condições materiais de existência, já a atividade teleológica visa, sobretudo, criar o novo, engendrar objetivações qualitativamente novas em face de uma realidade que se quer transformar, seja em sentido econômico, político, cultural, moral, estético etc.

         Toda atividade especificamente humana é uma atividade prática. Seja o trabalho humano, a arte, ou a práxis revolucionária, constituem atividades dirigidas por finalidades, cuja realização exige uma certa capacidade cognitiva. Assim, toda atividade prática está radica no caráter real, objetivo, da materialidade da natureza e da realidade do mundo social sobre os quais os indivíduos atuam, se valendo dos meios e instrumentos necessários para a execução de sua ação orientada.

         Segundo Vázquez, existem inúmeras formas de práxis. Nesse sentido, o objeto sobre o qual o indivíduo exerce sua ação pode ser: 1) a materialidade da natureza; 2) os produtos elaborados por uma práxis anterior, que se convertem em matéria de uma nova práxis; 3) o próprio ser humano, isto é, a sociedade como objetividade material “ou objeto da práxis política ou revolucionária”, aqui consiste nos indivíduos concretos e suas relações concretas.

         De modo geral, podemos elencar as seguintes expressões objetivas da práxis em Sánchez Vázquez: A práxis produtiva, que diz respeito a atividade prática produtiva, ou a relação material e transformadora que os homens estabelecem com a natureza pela mediação do trabalho, cuja principal característica é a produção de objetos úteis para a satisfação de determinadas necessidades. A práxis artística, que consiste na produção ou criação de obras de arte, e assim como o trabalho que transforma uma matéria-prima da natureza em um objeto útil para satisfação de necessidades determinadas, ela satisfaz uma necessidade geral humana de expressão e comunicação.

         A práxis experimental, que compreende a atividade científica experimental que satisfaz, originalmente, as necessidades da pesquisa teórica e, em específico, as da comprovação de hipóteses. Essa forma de práxis consiste na atuação de um investigador sobre um objeto material determinado visando modificá-lo de acordo com as condições em que se realiza um fenômeno. Em outras palavras, o investigador reproduz um fenômeno da natureza em laboratório para melhor compreendê-lo, sem as perturbações e intempéries que possam dificultar seu estudo.

         A práxis política, essa forma de práxis expressa o fato de o homem ser sujeito e objeto dela, ou seja, a práxis na qual ele atua sobre si próprio. Essa atividade prática possibilita desenvolver diversas modalidades de ação. No interior dela concorrem diversos atos orientados para sua transformação enquanto ser social e, por isso mesmo, destinados a mudar suas relações políticas, econômicas, sociais, culturais etc. Conforme sua atividade toma por objeto não um indivíduo isolado, mas diferentes grupos e classes sociais, bem como a sociedade em sua totalidade, ela pode ser considerada práxis social. De acordo com Vázquez, no interior de uma sociedade profundamente divida pelo conflito entre as classes sociais, pelo poder, organização, direção e estruturação da sociedade, a política acaba se constituindo numa atividade prática mediada pelas diversas expressões da articulação real de seus membros, vivendo em constante embate de ideias, projetos, programas e uma luta ideológica que exerce uma forte influência na maneira como os indivíduos atuam no cotidiano. A práxis política consiste, desse modo, na participação de amplos segmentos da totalidade da vida social.

         A atividade teórica, essa forma de atividade especificamente humana, considerada do ponto de vista do seu desenvolvimento histórico, existe em função de sua relação com a prática, pois é nela que encontra seu fundamento, suas finalidades e o critério de justificação de sua verdade. Contudo, em si mesma a atividade teórica não é uma forma de práxis. Ainda que “a prática teórica” concorra para transformar percepções, noções, conceitos e representações, e engendre uma forma específica de produtos que são as hipóteses, teorias e leis, em nenhum desses processos se transforma a realidade. Esta ausente aqui, como afirma Vázquez, o lado material e objetivo da práxis, portanto, não pode ser legítimo falar de “práxis teórica”.

         A práxis constitui uma atividade material, capaz de transformar a realidade de acordo com os fins adequados. Fora de sua circunscrição, subsiste apenas a atividade teórica que não se efetiva, na medida em que é apenas uma atividade puramente espiritual. Entretanto, por outro lado, não existe práxis que seja puramente material, isto é, sem a elaboração de fins conhecimentos que caracteriza a atividade teórica.


Antonio Marcondes

GPOSSHE/UECE/GEM/UFC

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007.