Um tema intensamente discutido é o das transformações que a literatura viveu na dobra do século XX para o XXI, notadamente nas sociedades dependentes em que temas como globalização e colonialidade, à moda de Quijano, adquirem grande relevância.
Mas não quero fazer aqui um exercício de Sociologia da Literatura. Almejo apenas socializar com o leitor ligeiras notas de uma leitura recente. Trata-se de um livro escrito e publicado na periferia do capitalismo, expressão particular de um espaço geográfico mundial em que globalização e colonialidade se articulam; mas, especialmente, é uma obra que diz respeito a um tipo de literatura que se pratica aqui na dobra do século.
Grosso modo, estamos (eu e você leitor) diante de um pequeno livro que pode nos fornecer elementos para uma compreensão lapidar de um sítio da arte literária do nosso tempo e da Nuestra América, na qual, queira-se ou não, estamos inseridos, aliás, inseridos (sobretudo!) em suas teias e em seus labirintos.
No livro de Leonardo Costaneto, o leitor,
de repente, está em Minas e se vê diante da personagem Fátima e da
ancestralidade africana, quase a dizer que não tem Brasil sem Angola, o que
reforçaria a tese de Lélia Gonzalez centrada na noção de Améfrica ou amefricanidade;
mas não demora, as narrativas criam asas - à maneira de uma literatura em
trânsito - e viajam até Santiago, Buenos Aires, Colônia de Sacramento etc.Leonardo Costa Neto - Angie, Belo Horizonte: Caravana, 2021, 62p.
O livro está organizado em dois grandes quadros – Buenos Aires (ambiente urbano em que o protagonista encontra Angie) e Na Margem Oposta – e no seu interior se formam pequenos quadros ou contos (12 ao todo), com prevalência absoluta do narrador em primeira pessoa. Nessa perspectiva, do narrador em primeira pessoa (homodiegético) de O fim de alguma coisa, passando pelo narrador em terceira pessoa onisciente de Marocho, desliza-se para o narrador-protagonista (narrador autodiegético), que domina as narrativas do terceiro ao último conto.
O eixo nodal da obra é o conto Angie, pois depois dele todas as demais narrativas, de algum modo, remete a ele. Em consequência, o leitor há de perceber a coerência entre o título e os contos que compõem o livro.
Juntem-se então as pontas.
Do ponto de vista da linguagem, os textos reúnem marcas da criação literária contemporânea. Assim, a contemporaneidade é um traço da escrita de Leonardo Costaneto. Onde localizar esse traço geral? Em primeiro lugar, na linguagem coloquial, um desenvolvimento da revolução modernista. Sem perder inteiramente a atenção na gramática, o autor renuncia às formalidades que marcaram o período literário pré-moderno. Nesses termos, o despojamento é o signo que define o estilo do escritor mineiro: “A história não durou muito, comentou antes de tomar um longo gole” (Angie, p. 33); “Alto lá! Que bobagem é essa? Que delírio extravagante e sem sentido, pensei respirando fundo” (Gatinho acuado, p. 50).
Mas a sua filiação à contemporaneidade não cessa nesse ponto. Os contos curtos e com finais abertos remetem à persistência de posições modernistas (a exemplo de Joyce em Música de câmara) que, em larga medida, foram mantidas e aprimoradas por autoras e autores contemporâneos. Nas narrativas de Costaneto, o leitor é convidado a ser coautor dos desfechos que, em geral, aparecem em uma configuração distintivamente aberta, sugestiva, carregada de significados. Em suma, os finais são mais sugeridos do que ditos.
Isso pode ser observado no desfecho de O fim de alguma coisa, traduzido na inquirição da mãe: “- Esse é o meu filho?” (p. 22); no epílogo de Marocho, o método narrativo reaparece: “Fascinado, nos olhos de Marocho se acendeu um brilho raro, que encontrou de pronto o palor frio da lâmina afiada” (p. 26); em Corrida urgente, o procedimento se repete: “ – Pra onde você quiser, Leo” (p. 30) . Já No quarto ao lado, a lubricidade - à moda de O quatrilho - é vivamente sugerida: “Dali por diante não me recordo de muita coisa, somente que vimos o dia amanhecer da varanda do quarto ao lado” (p. 39). E assim segue nas demais narrativas. Enfim, o leitor ou leitora pode criar o remate à luz do próprio processo narrativo, no qual as pistas ou indícios são suficientemente robustos.
Em terceiro lugar, ao ressaltar aspectos típicos da sociedade globalizada, o narrador exibe referências características dos tempos atuais: “Foi ali, num lampejo, que me veio a ideia de cadastrar meu carro na Uber” (Corrida urgente, p.27); “ (...) me pagou por transferência e mandou o comprovante para o meu WhatsApp” (Corrida urgente, p. 28); “Eu a conheci em um site de encontros entre sugar babies e sugar daddies (Angie, p. 31). Enfim, um bom número de situações indica o cotidiano da história em sua contemporaneidade eivada de globalização, novas subjetividades, relações dissolutas, precariedade, neoliberalismo e alusões às novas tecnologias.
Registram-se, também, questões que vão além desse panorama histórico, dentre as quais pode-se ressaltar a retomada dos arquétipos (que começa com a mãe do primeiro conto e quase encerra os relatos com a memória do pai), e identidades (latinoamericanidade e ancestralidade africana – essa última expressa nas personagens de Maria de Fátima e Dandara). Nesse escopo, os pequenos textos que conformam Angie versam sobre impressões pessoais, evocações familiares, paisagens latino-americanas e outros indicadores que estruturam os elementos de subjetividade que, em geral, marcam o que há de genuíno em uma obra literária.
Outro aspecto a lembrar, o conto Angie divide águas no plano narrativo. É como se as estórias se dividissem antes e depois dele. Desse modo, é como se o encontro do protagonista e a moça que “adorava viajar” representasse uma margem, ao passo que o que vem depois constituísse a sua margem oposta. Geograficamente, essa passagem se concretiza em viagem: Buenos Aires é o que ficou para trás. Colônia do Sacramento representa a busca de uma viragem, tendo em si o alvo de uma reabilitação amorosa. Quem sabe, o início de uma nova aventura (no sentido mais amplo do termo).
O texto enxuto, conciso, direto, praticamente sem rodeios, convida a uma leitura rápida, de um só gole, e, paralelamente, mostra não o escritor maduro de longa trajetória (que não é seguramente o caso), com cada coisa em seu lugar (na hipótese de isso existir), mas um criador com inúmeras tensões, reticências e hesitações. É desse material instável, nascente, às vezes impreciso, que o novo se faz. Até onde irá o moço de Minas é uma questão que não cabe ao presente. “Quem viver, verá”.
Fábio Queiróz
Professor do departamento de história da Universidade Regional do Cariri - URCA