Em memória de Clóvis Moura, Jacob Gorender, Robert C. Conrad e Theo L. Piñeiro, defensores intransigentes do sentido radical da Revolução Abolicionista.
Neste 13 de maio, transcorre mais um natalício do fim da escravatura no Brasil. Nosso país foi uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão colonial. Dos 523 anos de história do Brasil, mais de 350 transcorreram sob o látego da ordem escravista. Apesar da superação do escravismo ter sido a única revolução social vitoriosa no Brasil, constituindo o mais glorioso e significativo sucesso de passado nacional, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido. O 13 de Maio seguirá sendo combatido e destratado, até mesmo por muitos dos que deviam saudá-lo com orgulho e emoção.
A Abolição já foi data magna celebrada sobretudo pelos que a viveram e compreenderam sua dimensão histórica. Nas últimas décadas, ela tem sido caluniada e objeto de verdadeira conspiração de silêncio. Paradoxalmente, a desconstrução da Abolição foi lançada, em 1988, por dirigentes do movimento negro que, ao contrário, deveriam desdobrar-se na celebração e discussão da sua importância, servindo-se de sua memória na luta da pela segunda abolição, agora social, em aliança com todos os explorados e oprimidos.
Brasileiro cordial
O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi um dos grandes mitos nacionais. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição medonha motivara lutas fratricidas. Nos EUA, a Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, causou seiscentas mil vítimas. No Haiti, em 1804, quando foram consolidadas a independência e a destruição da ordem negreira, pelos trabalhadores escravizados, na mais violenta guerra social das Américas, não restava na ilha um só ex-escravista.
No Brasil, ao contrário, a transição ao trabalho livre teria sido efetuada sem violências, devido a instituições sensíveis ao progresso dos tempos, a líderes esclarecidos e à humanitária alma das chamadas elites. Neste cenário de paz e de concórdia, destacaria-se a imagem fulgurante de Isabel, a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros feitorizados e despreocupada com a sorte do trono, a regente imperial assinou, com pena de ouro, o diploma que pôs fim ao cativeiro e, dezoito meses mais tarde, à monarquia.
Sociedade Fraterna, Pátria da Democracia Racial
Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras de raças e de classes. As desigualdades remanescentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira, ancorada por uma concórdia estrutural vivida por ricos e pobres; por brancos, negros e pardos; pelos descendentes dos colonizadores e pelos povos originais. Ao menos, era o que se sugeria e, não raro, se afirmava.
Acontecimentos pátrios referenciais — a Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889, o fim da ordem oligárquica-federalista, em 1930, para não falar da Redentora, de 1964—, teriam como denominador comum terem ocorrido sem traumas, ou quase, devido ao caráter nacional, pacífico e consensual do povo brasileiro. Apresentou-se também o caráter patriarcal e transigente da ordem escravista como a grande construção de uma natureza magnânima nacional que quebrantava contradições de raça, credo e classe.
Desde os anos 1930, as origens de uma escravidão feliz, de um mundo estranho ao racismo, de um brasileiro transigente foram explicadas por Gilberto Freyre, o mais brilhante – e cabotino – intelectual produzido nessa já chamada Terra dos Papagaios, em Casa-Grande & Senzala. Literalmente chancelado pelo Estado brasileiro, esse ensaio, no início quase magrelo, ganhou páginas sobre páginas, não raro contraditórias, até o atual volume de dimensão XGG, esperando talvez o autor que a sua extensão soterrasse as sandices propostas.
Escravidão feliz
Em 1985, o Brasil viveu “redemocratização”, sob o permanente controle das classes dominantes, em que os bandidos da véspera mantiveram seus privilégios e foram anistiados em seus crimes. Entretanto, nos anos anteriores, a mobilização crescente dos trabalhadores das cidades e dos campos e o surgimento de entidades negras combativas haviam desnudado a triste realidade subjacente ao discurso da “fraternidade brasileira”, da “democracia racial”, de um país sem contradições de classe.
As narrativas laudatórias sobre a Abolição, sobre o caráter patriarcal e consensual da escravidão, sobre a fantasiosa democracia racial, sobre a ausência de contradições, oposições e ódios sociais e de classes se trincavam definitivamente contra a triste realidade contemporânea, que o movimento social desvelava em toda a sua extensão e profundidade.
Em fins dos anos 1970, diante dos mais míopes, desnudava-se situação onde a população negra encontrava-se opulentamente representada entre os segmentos populares mais explorados e marginalizados. Revelava-se, mais e mais, uma realidade onde a pele negra dificultava comumente o acesso ao trabalho, favorecia salários ainda mais escorchantes, constituía um verdadeiro passaporte para a prisão e, mesmo, para o cemitério.
A Luta pela Memória
Fora longa e dura a luta pela recuperação dos sentidos e realidades do passado escravista do Brasil. Inicialmente, prevaleceram as propostas pacificadoras e apologéticas de um escravismo neo-patriarcal, consagradas por Gilberto Freyre, como vimos. Apenas nos anos 1950, o trotskista francês Benjamin Péret e o comunista Clóvis Moura assinalaram de forma incontornável o caráter escravista da antiga formação social brasileira, o domínio da contradição opondo escravizados e escravizadores, a necessidade da destruição da escravidão para o avanço da antiga formação social brasileira.
Aquelas leituras revolucionárias foram literalmente canceladas, permanecendo sem desdobramentos imediatos no mundo das representações sobre o passado. Nos anos seguintes, as descrições benignas da escravidão e a “democracia racial” foram refutadas por sociólogos como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Roger Bastide. Porém, eles negaram a determinação do passado pelos trabalhadores escravizados, apresentados como não-agentes históricos de sua história.
Aqueles e outros autores propuseram que a superação do