terça-feira, 20 de setembro de 2022

Conexões ontológicas entre trabalho e ciência: uma breve aproximação



De acordo com o físico italiano Carlo Rovelli (2013), se entendermos por “ciência” a investigação sobre uma sistemática atividade experimental então seu início é mais ou menos com Galileu (1564-1642). No entanto, se compreendermos a “ciência” como um conjunto de observações quantitativas e modelos teórico-matemáticos capazes de colocar ordem nessas observações, fornecendo predições corretas então a astronomia matemática de Hiparco (190-120 AEC) e de Ptolomeu (100-170) era uma atividade científica.

Isso significa, numa primeira aproximação, que o termo “ciência” é bastante genérico e depende do nível de amplitude dado a ele. Porém, se olharmos do ponto de vista histórico, os dois momentos indicados revelam a aquisição de um novo instrumento socialmente construído para o conhecimento do mundo pelos seres humanos. Tal processo acompanha o desenvolvimento das forças produtivas, isto é, das capacidades humanas.

Chegando mais perto, é possível afirmar que o núcleo da atividade científica é a compreensão de como o mundo funciona. Mas, aqui surge uma pergunta essencial: por que os seres humanos precisam compreender como o mundo funciona? É algo opcional ou necessário?

Essas perguntas exigem entender uma característica essencial dos seres humanos sintetizada na capacidade de transformar o mundo de maneira subjetivamente orientada. Noutras palavras, os seres humanos transformam a natureza por meio de uma prévia ideação que orienta sua prática produtiva e social, desde as comunidades humanas mais primitivas até o presente.

Essa característica humana, que não existe na natureza, Karl Marx (1818-1883) e seu amigo Friedrich Engels (1820-1895) conceituaram como trabalho, o fundamento dos seres humanos (antropogênese) e da sociedade (sociogênese). Depois, o pensador marxista György Lukács (1885-1971) desdobrou a categoria trabalho em sua estrutura interna e diversas conexões sociais em uma obra clássica: Para uma ontologia do ser social.

Agora, atenção, afirmar que a atividade humana é teleologicamente ou conscientemente orientada não é sinônimo de um dualismo, uma alma (sede da consciência) e um corpo (agente no mundo material). Não existe um espírito tipo Gasparzinho, “o fantasminha camarada”, dissociado do nosso corpo, mas que o comanda. O indivíduo concreto que transforma o mundo para satisfazer suas necessidades é produto de um processo evolutivo natural, de um sistema nervoso complexo e de processos sociais cada vez mais avançados. A consciência é resultado da matéria orgânica e da vida social. Nesse sentido, não há consciência fora do ser biológico e do ser social: não há espírito sem matéria.

Então, segundo a perspectiva aqui desenvolvida, a compreensão subjetiva da realidade é uma necessidade histórica e social das comunidades humanas na busca de sua sobrevivência e da construção de um ambiente humanamente satisfatório. Dessa maneira, a atividade produtiva empurra os seres humanos a uma rudimentar, embrionária e não refletida “práxis científica”.

Benjamin Farrigton (1979), indica progresso intelectual na crescente capacidade dos homens e mulheres primitivos de escolher entre diferentes tipos de pedra, não faltando evidências de acumulação e previsão. O ato de selecionar pedras de acordo com seus propósitos e adaptando-as às suas necessidades revela a relação ontológica entre a atividade consciente de transformar o mundo e a necessidade de compreender as conexões da realidade.

Já o professor de psicologia em Havard, Steven Pinker (2022), vai mais longe ao falar do povo Sã do deserto do Kalahari, na região sul da África. Essa comunidade é classificada como uma das mais antigas do mundo. Seu estilo de vida proporciona um vislumbre de como os seres humanos viveram na maior parte de sua existência, como caçadores-coletores.

Pinker parte dos estudos do cientista Louis Lienberg, especialista em técnicas de rastreamento e pesquisador há décadas do povo Sã, o qual afirma que a razão da sobrevivência desse povo deve-se a uma mentalidade científica. Pinker sustenta que a partir de dados fragmentados, os membros do povo Sã encadeiam o pensamento até chegar a conclusões remotas com uma compreensão intuitiva da lógica, do pensamento crítico, do raciocínio estatístico, da correlação e causalidade, assim como da teoria dos jogos.

Bem, tirando alguns indícios de retroprojeção, Pinker indica a gênese da práxis científica na própria atividade produtiva que faz com que seres bípedes, com capacidade de se livrar do calor pela ausência pelos, com polegares opositores, com capacidade cerebral bem desenvolvida e vida social se tornem humanos.

O povo Sã dedica-se à caça de persistência. Por meio de sua subjetividade articulam suas capacidades sensíveis rastreando pegadas, emanações e dejetos dos animais, e outras pistas, perseguindo a caça até que desabe de exaustão e insolação. E, isso, de forma coletiva e organizada, articulando experiência acumulada, prévia-ideações e uma imagem aproximada do seu ambiente.

Esses fundamentos simples da Ciência no alvorecer da espécie humana, atualmente, por um caminho tortuoso e contraditório, desabrocham nas imagens estonteantes do telescópio espacial James Webb, nas profundezas reveladas da Fossa das Marianas, nas descobertas no coração da matéria, nos horizontes crescentemente ampliados do universo conhecido, nos avanços da neurociência, nas conexões maravilhosas do processo evolutivo da vida, na compreensão dos limites estruturais do capitalismo e nas possibilidades de emancipação social de bilhões de seres humanos.

 

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

Referências Bibliográficas

FARRIGTON, Benjamin. Ciencia griega. Barcelona: Icaria Editorial, 1979.

PINKER, Steven. Racionalidade: o que é, por que parece estar em falta, por que é importante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

ROVELLI, Carlo. Anaximandro de Mileto: o nascimento do pensamento científico. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

 

Esse texto refere-se a questões surgidas na disciplina “Materialismo histórico/ontologia do ser social: a questão do método” do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará PPGE-UECE, semestre 2022.2