quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Estado laico, práxis antirracista: porque devemos debater esses temas?



      Tive a oportunidade de estar em uma escola municipal de Fortaleza acompanhando uma sala de aula de 1° série do Ensino Fundamental cujo nome não revelarei por motivos éticos. Venho relatar esse fato porque ele é singular para entender os temas que dão título a esta crônica argumentativa. Já me deparei com algumas situações dentro de sala de aula e, por isso, sei o quanto ela é intensa e complicada. Mas, semana passada, enquanto os alunos estavam estudando Matemática, uma professora da própria escola entrou na sala para ensinar a Bíblia para as crianças. Pareceu-me que era uma atividade que essa professora realiza regularmente na escola em salas que não são as de sua regência.
      Quero conversar com você, leitor, sobre duas situações ocorridas nesse dia. Ela pregou na lousa um versículo da Bíblia e fez com que os alunos repetissem até decorá-lo. O atual desgoverno vive falando por aí que, nas escolas, acontece doutrinação por partes dos professores de esquerda. E a doutrinação religiosa pode? Então a escola pode ser sem partido, desde que seja com religião. A religião é de decisão pessoal e individual de cada pessoa. A própria legislação determina que seja facultativa e sendo vedada qualquer forma de proselitismo, ou seja, doutrinação religiosa (Art. 33, Lei nº 9394/96). A professora não deu opção aos alunos que não desejassem participar da aula nem apontou para a diversidade de credos. Fiquei pensando o quanto essa situação deve ser a realidade de muitas escolas. Isso não foi tudo.
      Satisfeita com a "decoreba" do versículo bíblico, a professora começou a ensinar as cores escuras e disse aos alunos e às alunas que as cores escuras não agradavam a Deus, pois eram as cores do pecado, diferentemente das cores claras que representam a paz, a alegria etc. Veja, a metade da sala era composta por alunos e alunas negras. Durante o tempo que estive lá, precisei trabalhar muito a dificuldade desses alunos em aceitar que o lápis “cor de pele”, na verdade, só representava uma cor e que não correspondia com a cor da pele da maioria deles. Foi um trabalho árduo proporcionar esse autoconhecimento para crianças de cinco e seis anos, mas houve avanços postos em xeque pela ação da professora.
      Para além da história, me pergunto aqui como nasce o racismo nos dias atuais? Melhor: como ainda hoje nascem pessoas racistas mesmo com tantos debates sobre raça que estamos travando? Naquele dia, comprovei um sentimento pessoal: as práticas desenvolvidas por pessoas cristãs favorecem a reprodução racista de uma sociedade que foi e continua sendo educada para reproduzir comportamentos opressores. Em uma conversa com um grande amigo sobre toda essa problemática, ele me lançou o seguinte questionamento: A mulher que se prestou ao papel de fazer isso na sala de aula era ciente do que estava fazendo, uma vez que o racismo estrutural é invisível aos olhos mais desatentos? Minha resposta é a seguinte: toda prática educativa, seja ela dentro ou fora de sala de aula, possui consequências sérias para a construção e o desenvolvimento do ser humano. Uma vez que você ensina que cores escuras são ruins e desagradam a um deus, o mínimo resultado que você obterá será a construção de futuros adultos com olhares racistas um para com o outro. Esse caso só comprova como o racismo está estruturalmente nas nossas relações; como a sociedade reproduz conceitos e comportamentos racistas sem perceber, causando um sério dano à sociedade.
      Para aprofundar o assunto, precisaríamos discutir formação e práxis docente, mas não é o caso deste texto. Quero dizer que o problema não é a religiosidade, mas impor uma religião às crianças de cinco e seis anos é um grande problema. Por isto formar o pensamento crítico é fundamental: para que as alunas e os alunos possam se defender e dizer não aos verdadeiros doutrinadores. O engraçado é, que diante de todas as problemáticas que temos que nos deparar nos ambientes educacionais, como falta de recursos para a própria manutenção da escola, falta de comida, falta de materiais didáticos etc., ainda temos que ouvir absurdos de que NÓS professores e futuros professores somos doutrinadores. Quem me dera ser, quem me dera! Eu me pergunto: a educação, o Estado, não é laico? Quem são os verdadeiros inimigos da educação? Talvez precisaria de outra crônica para debater isso. Até quando seremos obrigados a ouvir que nossas pequenas tentativas de práticas emancipatórias são doutrinações, enquanto a verdadeira doutrinação acontece debaixo dos nossos próprios olhos, ou melhor, nas nossas próprias salas de aula praticadas pelas mesmas pessoas que defendem uma educação sem partido e sem viés político ideológico! Eu pergunto: quem são os doutrinadores mesmo?

Cybely Ribeiro
Graduanda em Pedagogia - UECE.