sábado, 8 de janeiro de 2022

Algumas considerações sobre o tema da igualdade na filosofia burguesa

    Na Grande Revolução Francesa de 1789 a burguesia liderou a imensa massa das demais classes oprimidas pela nobreza (artesãos em decadência econômica, a pequena nobreza, camponeses pobres, proletários e desocupados) em torno da luta pela extinção dos privilégios feudais que impediam o livre desenvolvimento do capitalismo. Mas as classes despossuídas, populares, plebéias, lutaram imaginando que a revolução lhes garantiria “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, ou seja, que ela lhes tiraria da opressiva miséria em que se encontravam e, por conseguinte, que lhes traria condições dignas de vida; buscavam, assim, a igualdade substantiva, material, de posse de meios de vida, e não somente a igualdade formal de todos os homens perante a lei.

    Filósofos importantes, ainda no período de ascensão e consolidação do capitalismo, reconheceram neste a existência de uma grande desigualdade substantiva (de posses) entre os homens. Kant afirmou que “a igualdade geral (perante a lei) dos homens como sujeitos em um Estado coexiste muito facilmente com a suprema desigualdade nos graus das posses que eles têm. (…) Daí que a igualdade geral dos homens também coexiste com grande desigualdade de direitos específicos que podem ser muitos.”1 Hegel até justificou tal desigualdade como sendo um fato da natureza:

 

Os homens são feitos desiguais pela ‘natureza’, na qual a desigualdade está em seu elemento, e na sociedade civil o direito à particularidade está muito longe de anular essa desigualdade natural, tanto que a produz a partir do espírito e a alça até uma desigualdade de habilidade e recursos (riqueza), e mesmo de uma capacidade moral e intelectual. Opor a esse direito uma demanda por igualdade é loucura do entendimento que toma como real e racional sua igualdade abstrata e seu ‘dever-ser’.2 grifos nossos

 

    Mas nem sempre foi assim. 150 anos antes da Revolução Francesa de 1789 o filósofo Thomas Hobbes assim escreveu sobre o tema da igualdade entre os homens em sua clássica obra Leviatã:

 

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável par que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro também não possa aspirar tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer se aliando a outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras e especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama ciência; a qual muito poucos têm, é apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida – como a prudência – ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque a prudência nada mais é que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam3 grifos nossos

 

    Por que Hobbes - que participou do imenso movimento intelectual e ideológico que iria preparar o terreno para as revoluções burguesas dos séculos XVII (Inglaterra) e XVIII (França), o Iluminismo - defendeu a igualdade em geral entre os homens e pensadores posteriores como Kant e Hegel reconheceram e justificaram a existência da desigualdade material, econômica, entre as pessoas?

    A resposta nos é dada por Lukács para quem, na época em que Hobbes viveu, “a demanda por igualdade substantiva não pôde aparecer com seu poderoso desafio social na agenda histórica”, o que de fato só viria a ocorrer em 1789 na França. Portanto, “na concepção filosófica hobbesiana, não havia necessidade de assumir uma posição retrógrada diante da igualdade e aliciar a natureza para pretensamente depor a seu favor. Pelo contrário, por razões filosóficas bem específicas, Hobbes conseguiu tornar absolutamente clara sua visão da plena consonância da natureza com a igualdade humana.4 grifo nosso.

    Em outras palavras, na época de Kant e principalmente na de Hegel a demanda por igualdade substantiva não era mais tolerada por um capitalismo não mais nascente, posto que já estabelecido, consolidado.

    Em nosso passeio pela história avancemos agora para o ano de 1848, seis décadas após a Revolução Francesa de 1789, quando o capitalismo se consolidara não só na França mas também em outros países da Europa. Foi nesse ano que irrompeu a chamada Primavera dos Povos, caracterizada por Fernando Claudín como “a revolução mais européia de toda a história da Europa5 porque ela teve início em Paris e depois alastrou-se para a Áustria, Prússia, Baviera, Saxônia e outros estados da confederação alemã (lembrando que a Alemanha ainda não era um país unificado nesta época); para os estados poloneses ocupados pela Prússia, para a Boêmia e Hungria, que desejavam se livrar da dominação austríaca; para toda a Itália (na época ainda não unificada), com destaque para a Lombardia ao norte do país, mas também para o Piemonte, estados papais, para o reino de Nápoles, etc., sendo portanto um processo revolucionário que abrangeu praticamente toda a Europa continental desde o Atlântico até os limites do império russo.

    A revolução europeia de 1848 contou com um ator político que pela primeira vez atuava com independência política em relação à burguesia: o proletariado. De fato, Fernando Claudín lembra que “os proletários estavam nas primeiras filas dos insurretos de Paris e Berlim, de Viena e de Milão, exigindo algo mais que sufrágio universal6. E igualmente importante: nesta revolução a demanda por igualdade substantiva, representada por bandeiras como a redução da jornada de trabalho, contrariava frontalmente os interesses da burguesia.

    Assim, na Primavera dos Povos a burguesia teve que lutar não só contra a nobreza reacionária, com vistas à conquista do poder político, como também teve que empreender uma luta contra um novo e formidável oponente histórico, o proletariado industrial. Lembremos aqui que o poder político almejado pela burguesia dar-se-ia através de um regime representativo que garantisse a sua presença no parlamento e no governo (e não a presença do proletariado ou das demais classes despossuídas). Como bem refere Claudín, “para Marx e Engels, nem o sistema representativo constitucional a que aspirava a burguesia alemã, nem a monarquia parlamentarista de Luis Felipe eram regimes democráticos. Como tampouco o sistema parlamentar inglês, que excluía a classe operária do mecanismo eleitoral. Para eles, como para a generalidade dos comunistas e democratas daquele tempo, a república e o sufrágio universal não eram compatíveis com a dominação da burguesia: eram reivindicações associadas à instauração de um poder proletário e popular.7 Ilustrativo disso é que durante a revolução de 1848 a burguesia liberal da cidade alemã de Colônia elegeu um conselho municipal através do voto censitário, excluindo a participação da massa do povo na eleição deste órgão representativo.

    Assim, somente a burguesia liberal, e não a massa do povo, passou a ter representação parlamentar. Diante, portanto, do perigo de instauração de um poder proletário e popular que poderia adotar medidas tendentes à consecução da igualdade substantiva, a burguesia alemã resolveu fazer um acordo com a nobreza e com a monarquia alemãs, abrindo mão de considerável parcela do poder político que ela conquistaria com a instauração de uma república.

    Esta inflexão política da burguesia, em 1848, inaugurou o seu posicionamento no campo da reação política mediante alianças com as classes reacionárias, o que significou limitar a sua própria participação no poder político com o objetivo de impedir um desenvolvimento da revolução que resultasse numa democracia popular que poderia comprometer o seu domínio econômico, ou seja, a exploração da classe trabalhadora.

    Tal inflexão política teve consequências para a filosofia burguesa que se produziu depois de 1848 e, por conseguinte, sobre como os pensadores comprometidos em dar suporte ideológico ao capitalismo passaram a tratar o tema da igualdade entre os homens. Aqui se destaca Nietzche que, propugnando por um “novo Iluminismo” em contraposição ao “velho”, afirma o seguinte: “O novo Iluminismo – o velho existiu no sentido da horda democrática, da igualação de todos. O novo lluminismo quer indicar o caminho às naturezas dominantes; em que medida a estas (como ao Estado) tudo é permitido, o que não se encontra livre aos seres da horda.8 Para Nietzche, portanto, o “novo Iluminismo” por ele proposto deve defender não a igualdade de todos mas sim uma desigualdade que garanta a total liberdade e poder às elites dominantes e ao Estado, o que não seria permitido para as classes populares.

    Mas Nietzche não se limita aqui a combater a idéia da igualdade substantiva, material, de posse de meios de vida; ele também combate a idéia democrática-burguesa de igualdade formal, política, perante a lei, o que para ele se justifica numa época em que o movimento socialista se afirmava como uma formidável força política, por exemplo, na Alemanha, com a consolidação de um poderoso partido operário de massas (partido social-democrata alemão). Lukács nos lembra que “Nietzche prevê, desde o desmoronamento das suas ilusões ‘democráticas’, uma era de grandes guerras, revoluções e contrarrevoluções, de cujo caos emergirá o seu ideal: o império absoluto dos ‘senhores da terra’ sobre a ‘horda’ tornada dócil, sobre os escravos devidamente amansados. Já nas notas de Nietzche do tempo de sua ‘Genealogia da Moral’, diz-se que: ‘O problema é: para onde vamos? A situação carece de um novo terrorismo’. E, nos materiais preparatórios da ‘Vontade do Poder’, ele se pronuncia sobre os ‘novos bárbaros’, sobre os futuros ‘senhores da terra’: ‘Manifestamente, eles só despontarão e se consolidarão depois das descomunais crises socialistas.

    É evidente que esses só se tornarão visíveis após terríveis crises socialistas. (…) A imagem do europeu de hoje me dá muita esperança: está se formando uma raça dominante corajosa, sobre a vasta base de uma massa de hordas extremamente inteligentes’. E, na medida em que ele (Nietzche) sonha com essas metas e com a via que leva a elas, surgem, de vez em quando, imagens do futuro que contêm uma antevisão da legenda hitlerista: ‘As classes dominantes apodrecidas perverteram a imagem do dominador. O Estado, como o que ministra a justiça, é uma covardia, pois falta o grande homem conforme o qual se pode medir9 grifos nossos

    Para fazer frente, pois, às demandas socialistas por igualdade substantiva, Nietzche defende mesmo a eliminação da igualdade formal, jurídica, perante a lei, com vistas a possibilitar a aplicação do terrorismo por parte de um homem forte que lidere os senhores da terra na missão de amansar os escravos, os trabalhadores, o que de fato veio a ocorrer nos fascismos do século XX: lembremos que Hitler destruiu o movimento operário alemão, seus sindicatos e partidos, eliminou as liberdades democráticas e foi gradualmente eliminando os direitos dos judeus na sociedade alemã, acabando por negar-lhes o direito fundamental à própria vida mediante a consecução do holocausto.

    Em coerência com tal posicionamento Nietzche também combateu o acesso universal à educação como um meio de dotar as classes populares de um instrumento na luta por igualdade substantiva:

 

A educação universal, quer dizer, a barbárie, constitui, precisamente, o pressuposto do comunismo… A educação universal se converte em ódio contra a verdadeira cultura… Não ter necessidades é para o povo a maior desgraça, disse, uma vez, Lassalle10. Por isso as associações de educação operária, cuja intenção, como me foi dito repetidas vezes, era a de produzir necessidades… Logo, o impulso para universalizar ao máximo a educação tem a sua fonte em uma laicização completa, em uma subordinação da educação ao enriquecimento e à felicidade terrena vulgarmente entendida.11 grifo nosso

 

    E, ainda, significativamente, Nietzche afirma que “fantasmas como os da dignidade do homem, da dignidade do trabalho, são os produtos miseráveis da escravidão que se esconde de si mesma. Época infeliz, em que o escravo necessita de tais conceitos, em que é incitado a refletir sobre si e para além de si! Infelizes sedutores, que destruíram a inocência do escravo com a fruta da árvore do conhecimento!12

    Aqui também se nota certa correspondência entre o pensamento de Nietzche e o ódio ao conhecimento e à ciência propagandeado pelos fascismos do século XX e atualmente por partidos políticos de extrema-direita.

    A conclusão a que se chega é que a filosofia burguesa não poderia continuar a defender o princípio da igualdade quando o desenvolvimento histórico do capitalismo o negou de fato. A realização da igualdade entre os homens tinha de passar a ser uma bandeira político-filosófica do pensamento socialista, o que de fato veio a ocorrer principalmente a partir do século XIX.

 

 

SÁVIO BASTOS

 

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1Citação de Istvam Meszaros em Para Além do Leviatã - Crítica do Estado, ed. Boitempo, 2021, p. 118.

2Citação de Istvam Meszaros em Para Além do Leviatã - Crítica do Estado, ed. Boitempo, 2021, p. 153.

3Para Além do Leviatã - Crítica do Estado, ed. Boitempo, 2021, p. 153.

4Para Além do Leviatã - Crítica do Estado, ed. Boitempo, 2021, p. 153.

5In Marx, Engels y la Revolucion de 1848, Siglo veintiuno de España Editores, 1975, pág. 10.

6Fernando Claudín, Marx, Engels y la Revolucion de 1848, Siglo veintiuno de España Editores, 1975, pág. 10.

7Fernando Claudín, Marx, Engels y la Revolucion de 1848, Siglo veintiuno de España Editores, 1975, pág. 40.

8Citação de Georg Lukács em “A Destruição da Razão”, Ed. Instituto Lukács, p. 302.

9Citação de Georg Lukács em “A Destruição da Razão”, Ed. Instituto Lukács, p. 296.

10Político socialista alemão do século XIX.

11Citação de Georg Lukács em “A Destruição da Razão”, Ed. Instituto Lukács, p. 285.

12Citação de Georg Lukács em “A Destruição da Razão”, Ed. Instituto Lukács, p. 286.