terça-feira, 5 de julho de 2022

CURRAIS: as origens sangrentas da classe operária no Ceará

 

  

Desde 2019 circula nas salas mais alternativas do circuito cinematográficos o filme Currais, produção cearense dirigida por David Aguiar e Sabina Colares, baseado no livro "Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e Poder na Seca de 1932”, fruto da pesquisa de mestrado de Kênia Sousa Rios, defendida na PUC-SP (leia aqui: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10380/1/2014_liv_ksrios.pdf).

95% dos municípios do Ceará se encontram no semiárido, espaço climático com pouca e mal distribuída precipitação de chuva e, assim, marcado por frequentes e trágicos períodos de seca que infligem terríveis sofrimentos ao povo trabalhador. A seca, contudo, para além de um fato objetivo, se perpetua como forma de opressão e superexploração dos trabalhadores, tanto por meio da manipulação e roubo dos recursos destinados ao socorro das vítimas, como através do recrutamento dos desvalidos para o trabalho em troca, quando muito, de salários aviltantes, quando se pode falar de salário.

Políticas sociais de amparo aos trabalhadores rurais nordestinos, aplicadas ao longo dos governos Lula e Dilma, amenizaram, embora não tenham mudado a estrutura de poder amparada na seca, o que exigiria uma real reforma agrária que ainda não se realizou no Brasil.

Secas de proporções bíblicas estão registradas na história do Ceará: 1877-79, 1915, 1932. A literatura, especialmente a cearense, rompeu o pesado silêncio das fontes oficiais sobre a devastação humana das grandes secas, como em Aves de Arribação, de Antônio Sales (1913) e o mais conhecido O Quinze, impressionante romance juvenil de Raquel de Queiroz (1930).

A marca de todas as secas é a migração forçada dos flagelados para os centros urbanos, em particular para as capitais. Este fenômeno se reduziu no citado período dos governos encabeçados pelo PT, mas reapareceu nos últimos anos. No início do Século 20, em especial no Quinze, as autoridades, a Igreja Católica, as famílias mais ricas, a pretexto de amparar as vítimas da seca, passaram a implementar ações de higienização para isolar os migrantes. Nascem aí os campos de concentração de flagelados. O primeiro deles foi o campo do Alagadiço, depois, bairro São Gerardo.

 

A seca de 32 que empurrou meio milhão de pessoas à migração pelo território nordestino em busca de trabalho, comida ou de qualquer ajuda, é o momento abordado por Currais. O filme, um documentário cujo fio narrativo são personagens fictícios que interagem com depoentes reais, em geral, descendentes dos flagelados de 32, mostra Romeu, cujo avô que o criou no bairro operário do Pirambu, em Fortaleza, deixou fitas cassete com relatos de suas lembranças de concentrado no campo da Cidade de Senador Pompeu, no Sertão Central cearense, procura recompor a história dos campos de 32.


Na seca de 32, a política de aprisionar flagelados em campos passou a ser adotada pelo Governo Getúlio Vargas. Interventores estaduais e oficiais do Exército, com apoio da Igreja e outros setores das elites locais passaram a administrar a recepção, alocação e gestão daquelas multidões de flagelados. O nome que o povo deu aos campos já diz tudo: currais. Com efeito, aqueles seres humanos eram tratados como animais.

Foram 8 campos abertos em todos o estado, onde se aprisionavam, às vezes aliciados por falsas promessas, homens, mulheres e crianças. Currais, o filme, se concentra em especial no campo de Senador Pompeu, no Sertão Central e do Pirambu, em Fortaleza. Os retirantes internados nos campos de concentração se estimam em no mínimo metade do total dos atingidos pela seca de 32, ou seja, algo como 70 mil pessoas.

 

O objetivo era segregar os migrantes e impedi-los de chegar às cidades, especialmente a Fortaleza, mas os campos se transformaram rapidamente em unidades de concentração de mão-de-obra semiescrava, onde não se poupavam nem as crianças. O nível de óbitos era enorme. Em um único ano os mortos chegaram a cerca de 1000 num só campo, enterrados em valas comuns.

Os concentrados de Senador Pompeu, estimados em cerca de 16 mil pessoas, foram esgotados até a morte na construção do Açude Patu, dando origem à tradição dos mortos do Patu cujo martírio é celebrado hoje numa procissão anual.

 

Currais, a partir de uma personagem real, Dona Dira, interpretada pela atriz Zezita Matos, e de depoimentos de lideranças operárias e populares do bairro do Pirambu, resgata as origens da classe operária urbana no Ceará. Dira, militante do PCB, alfabetizada pela célula do partido no bairro, acumulou um grande acervo sobre a tragédia de 32. As sequências em que Dira resgata, por meio de seus documentos, a realidade do campo do Pirambu marcam o ponto mais alto de Currais.

Currais é um documento precioso sobre o surgimento da classe operária cearense no início do Século XX. O campo de concentração do Pirambu fez surgir no seu entorno fábricas de óleo, têxteis e de beneficiamento de castanha de caju. O campo do Pirambu alimentou estas empresas por meio do trabalho semiescravo, explorado em jornadas cujo limite era somente a resistência física dos trabalhadores e especialmente das operárias castanheiras cujas condições subumanas de trabalho ainda podem ser encontradas hoje.

O emprego desta mão-de-obra com métodos de opressão intensa em empresas capitalista modernas que surgiam em Fortaleza não fez recuar a barbárie, o que a manutenção das covas comuns nas imediações das fábricas prova. O capital “modernizou” as relações de trabalho no Ceará sobre a cova onde se enterraram os corpos esgotados e literalmente mortos de trabalhar.

Currais, um filme que quebra o radical apagamento da história dos campos de concentração no Ceará, deve ser visto por todos os que querem entender as origens sangrentas da classe operária cearense.

CURRAIS, 2019

Direção: Sabina Colares, David Aguiar

Roteiro Sabina Colares, David Aguiar

Elenco: Rômulo Braga, Zezita Matos, Vitor Colares

Disponível em: Youtube, Globo Play e Apple Play, todos em versões pagas.

 

Eudes Baima
Professor da Universidade Estadual do Ceará - FAFIDAM/UECE