sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Triste Fim de Policarpo Quaresma: uma sátira do povo brasileiro


O romance Triste fim de Policarpo Quarema, publicado em 1915, narra as peripécias da personagem Policarpo Quaresma, um patriota comicamente ingênuo e visionário que, com seu nacionalismo exaltado e utópico, sugere alguns projetos para a construção de uma identidade genuinamente brasileira acreditando contribuir por meio destes para o desenvolvimento e o crescimento de seu país.

De autoria de Afonso Henrique de Lima Barreto, mulato nascido no Rio de Janeiro, em 1881, que teve uma vida humilde e determinada pelo preconceito. Tendo sido seu pai tipógrafo e sua mãe professora, os perdeu ainda muito jovem e, desde cedo, teve que trabalhar para prover o sustento da família. A dedicação ao jornalismo e à literatura possibilitou à Lima Barreto imprimir uma crítica contundente e categórica aos aspectos sociais e políticos de sua época.

Nessa obra, o autor denuncia o preconceito racial, as relações sociais baseadas em interesses, principalmente da classe média suburbana e a corrupção dos políticos. Esse romance que é a segunda obra e a mais conhecida de Lima Barreto, inicialmente foi publicado nos folhetins do jornal do comércio, no Rio de Janeiro, em 1911, e, posteriormente em formato de livro, em 1915, tendo sua edição custeada pelo próprio autor.

O romance é dividido em três partes compostas de cinco capítulos cada uma. Na primeira parte, em seu primeiro capítulo, o autor apresenta Policarpo Quaresma “um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito”, “esquisito e misantropo”, assim julgavam os vizinhos.

Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre para baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava (BARRETO, p.09).

O autor apresenta também os ideais nacionais do personagem, que tenta defendê-los no decorrer de toda a narrativa por meio de suas expressões e ações. Quaresma mantinha uma biblioteca farta de livros de História do Brasil, de literatura de autores nacionais, fato que evidencia a exaltação ao nacional. Ele acreditava que ter o conhecimento inteiro do Brasil o levaria a “meditações sobre os seus recursos, para depois apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa” (BARRETO, p.11).

Encontram-se também nesse capítulo inicial, críticas contundentes e categóricas à aristocracia suburbana e à cultura europeia. Ao consultar historiadores, cronistas e filósofos, Quaresma concluiu que o violão era o instrumento genuinamente brasileiro e a modinha, a forma musical artística original. O personagem também exalta a riqueza e diversidade dos alimentos oferecidos pelas terras brasileiras, afirmando a potência e grande capacidade de produzir e de alimentar a sua população.

No segundo e terceiros capítulos, “a convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes cometimentos” (BARRETO, p.20). No intuito de resgatar a cultura folclórica, defendendo como sendo os costumes da tradição genuinamente brasileira, Quaresma faz empreende pesquisas e visitas à uma velha preta que cantava cantigas antigas e acompanha Ricardo Coração dos Outros em apresentações artísticas de modinhas e outras canções folclóricas.

Sem o reconhecimento esperado, tal projeto não vai em frente. Dentro de pouco tempo, empolgado com seu nacionalismo, Quaresma decide encaminhar um requerimento para a Câmara no qual sugere o estabelecimento do Tupi-guarani como língua oficial do país. No quarto e quinto capítulos, os acontecimentos narrados aludem a esse episódio e suas consequências. O quarto capítulo encerra-se com um breve diálogo entre Quaresma e Ricardo Coração dos Outros:

- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.

- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

- É bom pensar, sonhar consola.

- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens... (BARRETO, p.54).

 

Ainda nesses capítulos, as cenas narradas retratam o contexto da época acerca do casamento e da submissão da mulher, que era educada para casar e servir ao marido, a superficialidade das relações entre as classes sociais e, abordam também a temática da loucura, condição direcionada à personagem Ismênia, uma jovem abandonada pelo noivo e ao próprio Quaresma, que passa meses internado em um hospício após ser considerado insano pelo seu superior e ter tido alguns delírios.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da a loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após (BARRETO, p.56).

Considerada um enigma indecifrável da própria natureza humana, a loucura foi uma condição que esteve presente na vida de Lima Barreto, o qual esteve internado em um hospício repetidas vezes. Na cena em que se descreve a chegada de visitantes ao manicômio, o autor afirma que a loucura é uma das condições humanas que iguala as pessoas:

[...] Como em todas as portas dos nossos infernos sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos (BARRETO, p. 57).

Na segunda parte do romance, nos cinco capítulos são retratados os episódios em que Quaresma se dedica ao sítio Sossego, lugar que passa a morar depois que sai do hospício. Baseando-se na ciência, em seu conhecimento geográfico e, na certeza absoluta, das ‘excelências do Brasil’, “planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos” (BARRETO, p. 70).

         Acompanhado de sua irmã Adelaide e de seu empregado Anastácio, Quaresma dedica-se inteiramente à agricultura, momento em que ocorre no romance uma intensa valorização da fauna e da flora brasileira, exaltando-se a fertilidade das terras, a variedade do clima, o que permitiria uma produção agrícola fácil e rendosa. Para ele, tudo que se plantasse, dava, era uma questão de método e de dedicação.

         O projeto agrícola de Quaresma também não foi bem sucedido. Além de muitas dificuldades em realizar o comércio de sua produção, ele foi multado pelos políticos, o que ocorreu devido não concordar em apoiar o candidato apontado pelo tenente Antonino, sua estrutura agrícola não produziu boas safras e as formigas saúvas devoraram sua lavoura.

Com a experiência, Policarpo percebeu o descaso do governo para com a população rural e, considerando necessária uma reorganização da administração, escreveu ao marechal Floriano Peixoto, então Presidente da República, sugerindo a implementação de leis agrárias e de medidas que iriam melhorar e dar novas bases à vida agrícola.

Na terceira parte, Quaresma abandona o sítio e larga a família para dedicar-se à defesa da Pátria. Alista-se no Exército, fica à frente da revolta das armadas e luta pela integridade do país, apesar das decepções. Nesse contexto, a personagem denuncia a negligência e corrupção militarista ao ter que comprar a própria patente, bem como os desmandos e a desmedida e cruel violência incrustada no meio militar.

A manifestação de sua discordância em relação à truculência com a qual os prisioneiros “inimigos” eram tratados leva Quaresma a ser preso, considerado traidor da pátria. No capítulo cinco, antes de ser morto pelos próprios companheiros de farda, ele afirma sua decepção para com a pátria:

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia, A que existia de fato, era a do Tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati (BARRETO, p. 184).

Satirizado, desqualificado e, até criminalizado, pela sua paixão pelo país, Policarpo Quaresma representa cada brasileiro e cada brasileira que luta, diária e incansavelmente, individual e coletivamente, pela melhoria das condições de vida e reivindica políticas e medidas que promovam o bem estar social da população, uma vez que nosso país tem riqueza natural e patrimonial suficientes para tornar isso uma realidade concreta.


Marcilia Nogueira do Nascimento

Doutoranda em educação pela Universidade Estadual do Ceará - UECE - PPGE

 

Referências bibliográficas

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 2. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2017.