sábado, 3 de junho de 2023

Lutando na Espanha



LUTANDO NA ESPANHA, DE GEORGE ORWELL: DIRETO DO FRONT


O fim dos direitos autorais sobre a obra de George Orwell, que caiu em domínio público em 2021, inundou as livrarias de livros seus, publicados por diferentes editoras no Brasil.

Uma dessas obras foi Lutando na Espanha (Homage to Catalonia), em que Orwell narra sua participação no processo revolucionário na Espanha e, mais especificamente, sua experiência como voluntário na milícia do Partido Operário de Unificação Marxista – POUM, que correspondia à 29ª Divisão do Exército Republicano, combatendo na frente de Huesca, no período da guerra civil.

Um tanto esquecido, o livro voltou à baila nos anos de 1990 quando foi adaptado para o cinema por Ken Loach com o nome de Terra e Liberdade, filme de 1995.

Provavelmente, a descrição que George Orwell faz de Barcelona quando de sua chegada, em plena guerra civil, seja, ao lado da História da Revolução Russa, de Leon Trotsky, ou de Prosper-Olivier Lissagaray, em sua História da Comuna, o mais perto que a literatura chegou do retrato de uma revolução proletária (veja trecho abaixo). Esta passagem, logo no início do livro, concentra as qualidades da narrativa de Orwell: urgência, vibração, realismo, só possíveis pelos olhos de alguém que, mesmo que brevemente, atuou no drama espanhol.

Estas qualidades de um testemunho ocular dão a Lutando na Espanha uma vivacidade que nem as melhores análises teóricas e políticas podem ocupar, inclusive o elenco de artigos de Leon Trotsky que acompanham os acontecimentos desde 1931 até a vitória das falanges franquistas em 1939, enfeixados em Portugal com o título de Escritos sobre Espanha (TROTSKY, 1976). É certo, claro, que se tratam de obras de diferentes naturezas.

A REVOLUÇÃO PODERIA TER VENCIDO A GUERRA CIVIL

Orwell chegou em Barcelona em dezembro de 1936 e sua descrição da cidade mostra uma revolução em curso. Impulsionado pela situação, o escritor abandona seu projeto original de ser correspondente de guerra e se integra na milícia formada por militantes do POUM, escolha que correspondia a sua condição de socialista antistalinista. No espectro da esquerda espanhola, naquele momento, o partido aparecia, ao lado dos anarquistas como uma alternativa ao PC Espanhol e à refração stalinista na Catalunha, o Partido Socialista Unificado da Catalunha (PSUC). Orwell, alistado ao lado dos militantes do POUM, nunca se filiou ao partido, tendo, em certos momentos se oposto à orientação partidária.

Lutando na Espanha tem a maior parte de suas páginas ocupadas pela cruenta narrativa da luta da 29ª Divisão republicana, a milícia do POUM, no front, cobrindo o período em que o autor esteve ativo, de sua chegada à Catalunha em meados de 1936, até sua baixa por ferimento em ação e sua desmobilização e volta para a Inglaterra. O tempo que se estendeu até maio de 1937 corresponde ao período em que o entusiasmo dos combatentes advinha do fato de que “a terra foi tomada pelos camponeses, muitas fábricas e a maior parte dos transportes foram apreendidos pelos sindicatos, igrejas foram destruídas e os padres fascista expulsos ou mortos”.

Orwell considera que só as forças da classe operária, expressa sobretudo pelos sindicatos, especialmente na Confederação Nacional do Trabalho (CNT), de viés anarco-sindicalista, seria capaz de opor uma verdadeira resistência às falanges franquistas: “Nos primeiros meses da guerra, o verdadeiro oponente de Franco não era tanto o Governo [republicano] quanto os sindicatos” (...) se eles não tivessem agido de maneira espontânea e mais ou menos independente, é perfeitamente concebível que Franco nunca tivesse sofrido resistência”.

Na observação de Orwell, o Governo desempenhou um papel contrarrevolucionário desde o início da guerra civil, atemorizado diante da iniciativa popular que, enquanto demonstrava uma enorme disposição de luta contra o fascismo, desenvolvia uma intensa atividade revolucionária, ameaçando a propriedade privada. Só em fins de 1936, acuado ao mesmo tempo pela ação dos sindicatos e pela ofensiva fascista, é que o governo cederá e distribuirá armas aos trabalhadores: “único passo que poderia salvar a situação imediata, o armamento dos trabalhadores só foi dado de má vontade e em resposta a violento clamor popular”, conta Orwell.

O armamento obrigado das massas era um episódio do ascenso revolucionário que se combinava com a resistência ao levante dos fascistas, apoiados pelos regimes de Mussolini e de Hitler. George Orwell constata: “junto com a coletivização das indústrias e dos transportes, tentou-se se implantar os rudes primeiros passos de um governo operário por meio de comitês locais, patrulhas operárias em substituição às antigas forças policiais (...) o que aconteceu na Espanha foi, de fato, não apenas uma guerra civil, mas o início de uma revolução”.

A tensão entre revolução e contrarrevolução no campo republicano se tornou aos olhos de Orwell a alternativa entre vencer ou perder a guerra contra Franco. Para ele, o aprofundamento da revolução, a expropriação das fábricas e dos campos, poderia ter assegurado a vitória contra as falanges. A revolução poderia vencer a guerra.

O STALINISMO DESARMA A REVOLUÇÃO E ABRE CAMINHO PARA A VITÓRIA DO FASCISMO

O armamento das massas a que o Governo teve de ceder em fins de 1936 permitiu um salto na atividade dos trabalhadores. Após alguns êxitos na resistência a Franco, a pressão da burocracia soviética sobre a Frente Popular foi redobrada.

Como a situação aparece aos olhos de Orwell? “Os camponeses possuíam a maior parte das terras e provavelmente a manteriam a menos que Franco ganhasse; as grandes indústrias foram coletivizadas, mas se permaneceriam coletivizadas ou se o capitalismo seria reintroduzido, dependeria finalmente de qual grupo obtivesse o controle”. Era este, como vemos, para Orwell, o conteúdo da luta do proletariado contra Franco. A classe operária não separava a derrota do fascismo da obtenção do seu próprio poder político.

A luz vermelha acendeu para as democracias europeias que sovinaram qualquer apoio ao povo espanhol em face do perigo da instalação de um novo governo fascista no continente. França e Inglaterra abandonam a resistência espanhola à própria sorte. O PCE e o PCUS sob as ordens de Moscou e no âmbito da política da Frente Popular, forçavam o governo à direita.

Esta pressão do stalinismo que levou à defenestração da ala de Caballero do Partido Socialista e empoderou Negrín coincide com o fornecimento de armas e com o envio de especialistas militares pela URSS. Uma imensa chantagem que condicionava a continuidade da ajuda soviética a sucessivos e mais profundos atos de preservação da propriedade privada por parte do governo republicano desaguará numa violenta ofensiva contra o povo armado e contra as organizações operárias: “a virada geral para a direita data de cerca de outubro-novembro de 1936, quando a URSS começou a fornecer armas ao governo”, conta Orwell.

O PCE passa a ocupar espaços muitos maiores no governo nacional e no da generalitat catalã: “a expulsão do POUM da generalitat foi feita sob as ordens da URSS”, atesta Orwell, que conclui: “a guerra foi essencialmente uma luta triangular. A luta contra Franco tinha que continuar, mas o objetivo simultâneo do governo era recuperar o poder que permanecia nas mãos dos sindicatos”.

Os meios para disciplinar as massas consistiram no esmagamento geral das milícias e sua substituição pelo chamado Exército Popular, controlado por assessores soviéticos e destituído do espírito revolucionário que animava os grupos de combatentes organizados pelos sindicatos e partidos operários. A odiada polícia civil foi restaurada em oposição ao armamento geral. Durante meses, mesmo no quadro de um exército regular e sob a vigilância da polícia, o povo se recusa a se desfazer de suas armas. Mesmo protagonista de episódios heroicos, as Brigadas Internacionais, sob o ferrolho dos soviéticos, fazem parte deste processo de disciplinamento e de dissolução da organização do povo armado. Na visão de Orwell, a situação se sintetizava no seguinte: “a grosso modo, o alinhamento de forças era esse. De um lado, a CNT-FAI, o POUM e uma seção dos socialistas defendendo o controle dos trabalhadores, do outro, os socialistas de direita, liberais e comunistas defendendo um governo centralizado e um exército militarizado”.

A situação chega no ponto de fervura em maio de 1937 quando, de modo aparentemente injustificado, a generalitat catalã resolve desalojar os militantes da CNT da Central Telefônica de Barcelona que estava há meses sob controle dos anarquistas. A ação militar desencadeia uma onda de batalhas de rua entre as forças governamentais e combatentes anarquistas, do POUM e do pequeno grupo da 4ª Internacional, que tinham na retaguarda setores de massas mais ou menos amplos agarrados desesperadamente às conquistas revolucionárias anteriores.

Orwell narra o episódio com o colorido de quem foi testemunha ocular e participante dos combates. Orwell estava presente na defesa de um local do POUM que a polícia tentava tomar e conta com graça como o dirigente do partido, Georges Kopp, dissuadiu com simpatia e diplomacia, apelando à solidariedade de classe, os policiais de invadir o recinto.

Os acontecimentos de maio de 1937, entretanto, marcam o início do desmantelamento dos dispositivos revolucionários espontâneos que as massas da Catalunha ergueram no curso de sua ação revolucionária. Não mais que um mês depois, em 15 de junho, o POUM era declarado ilegal sob a acusação genérica de trotskismo e de traição em favor de Franco. Logo a acusação se estende aos anarquistas e chega aos verdadeiros militantes trotskistas espanhóis. As prisões da generalitat catalã se enchem de pessoas do povo, os setores que não cederam a entregar suas armas, que se acumulam em condições subumanas sob a mira de metralhadoras soviéticas. Centenas de militantes espanhóis e estrangeiros que tivessem tido qualquer relação com o POUM ou com a CNT (por exemplo, ter documento de baixa da 29ª Divisão) estavam sujeitos ao encarceramento. Com pensões e hotéis sob intensa vigilância tanto da polícia catalã quanto de agentes da GPU russa. Os militantes eram obrigados a dormir pelas ruas de Barcelona em situação de total ou parcial clandestinidade. George Orwell vagou dias pelas ruas da cidade, enquanto tentava um contato com sua mulher, hospedada num hotel local, e buscava as vias para escapar pela fronteira francesa.

A imprensa stalinista em todo o mundo é inundada por calúnias contra os militantes do POUM, os anarquistas e os trotskistas, apresentados como colaboradores de Franco e Hitler. Curiosamente milhares deles seguiram na linha de frente combatendo nas fileiras do Exército Popular, indiferentes à campanha de difamação de que eram vítimas na imprensa stalinista.

Andrés Nin, o principal dirigente do POUM, em data que não pode ser precisada, entre maio e julho de 1938, é preso pela polícia secreta soviética e não mais seria visto vivo ou morto.

HISTÓRIA IMEDIATA

Orwell escreveu o relato de sua experiência ainda com o cheiro de pólvora em suas narinas, tão logo retornou clandestinamente à Inglaterra. Apesar da experiência amarga de ver o stalinismo botando a perder a principal esperança do proletariado mundial em face da reação em toda linha daqueles anos, Orwell, de volta para casa, vê a Inglaterra como uma paisagem morta e sem perspectiva em comparação com a caótica Espanha de onde retornava.

Espanta como um relato imediato dos acontecimentos é capaz de transmitir uma descrição tão exata do papel das forças políticas no desenrolar do drama revolucionário, em especial de identificar no stalinismo a componente contrarrevolucionária central. Principalmente num contexto do enorme prestigio da URSS e da propaganda que vendia Stálin como o único amigo do povo espanhol.

A argúcia de Orwell não é capaz compreensivelmente de entender o papel, embora secundário, que a política oscilante de Nin e de seu POUM teve no curso dos acontecimentos. Sobretudo em 1936, quando, antes da ingerência soviética, teria tido a oportunidade de abrir uma via independente da Frente Popular. O que é compreensível na narração de um combatente recém saído literalmente das trincheiras do seu partido o qual, em todo caso, fora vítima da perseguição stalinista.

O relato de Orwell se detém no ano de 1937. Não chega até os acontecimentos bárbaros de Guernica e tampouco ao desenlace trágico a guerra civil. Anos depois, no fim dos anos de 1940, Orwell escreve uma breve reminiscência de sua estada na Espanha. Suas opiniões se mantêm grosso modo, mas o tom e o ânimo do escritor já são outros. O texto chamado Retomando a Guerra Civil Espanhola exala o cansaço e o ceticismo, quanto à revolução, de um homem cuja argúcia viu, literalmente no meio da fuzilaria, o essencial dos acontecimentos revolucionários, mas que, apartado do proletariado, manteve a integridade mas não a confiança no futuro.

LUTANDO NA ESPANHA (TRECHO)

"Isso foi no final de 1936, sete meses atrás, e ainda assim é uma época já recuada numa enorme distância. Acontecimentos posteriores a relegaram ao esquecimento muito mais completamente do que o fizeram com 1935 ou, até mesmo, 1905.

Eu viera à Espanha com a ideia vaga de escrever artigos jornalísticos, mas quase de imediato me alistei na milícia, porque naquele momento e naquela atmosfera isso parecia o mais apropriado a fazer.

Na prática, os anarquistas continuavam a controlar a Catalunha, e a revolução continuava a todo o vapor. Para aqueles que estavam ali desde o início, provavelmente parecia,

mesmo em dezembro ou em janeiro, que o ímpeto revolucionário estava se esgotando; no entanto, para um recém‑chegado da Inglaterra, Barcelona tinha um aspecto assombroso e arrebatador.

Pela primeira vez, eu me via numa cidade onde a classe trabalhadora assumira as rédeas. Quase todos os prédios mais importantes haviam sido tomados pelos trabalhadores e estavam adornados com bandeiras vermelhas, ou com as bandeiras rubro‑negras dos anarquistas; todos os muros estavam pichados com a foice e o martelo e com as iniciais dos partidos revolucionários; a maioria das igrejas havia sido saqueada e suas imagens, queimadas. Aqui e ali igrejas eram sistematicamente demolidas por grupos de trabalhadores.

Todas as lojas e todos os cafés exibiam um aviso dizendo que haviam sido coletivizados; até mesmo os engraxates tinham

sido coletivizados e as suas caixas, pintadas de vermelho e de preto. Garçons e atendentes de lojas o olhavam nos olhos e o tratavam de igual para igual.

Os tratamentos servis e mesmo os cerimoniosos haviam temporariamente desaparecido. Ninguém dizia mais 'Señor' ou 'Don', ou mesmo 'Usted', todos se chamavam de 'Camarada' e 'Tú', e diziam 'Salud!', em vez de 'Buenos días'.

Uma das primeiras experiências que tive, ao tentar dar gorjeta a um ascensorista, foi ouvir um sermão do gerente do hotel.

Não existiam mais carros particulares, todos haviam sido requisitados; e todos os bondes e táxis, bem como grande parte dos outros meios de transporte, estavam pintados de vermelho e de preto.

Cartazes revolucionários estavam por todos os lados, flamejando nos muros com vermelhos e azuis vívidos, que faziam os poucos

anúncios remanescentes parecerem manchados de lama. Descendo as Ramblas, a larga artéria central da cidade onde multidões circulavam sem parar de uma ponta a outra, os alto‑falantes berravam canções revolucionárias ao longo do dia e noite adentro.

E o aspecto da multidão era o mais curioso de tudo. Na aparência, era uma cidade na qual as classes abastadas tinham praticamente deixado de existir. Exceto por algumas mulheres e alguns estrangeiros, não havia mais gente 'bem‑vestida'. Quase todo mundo usava trajes grosseiros de trabalhadores ou macacões azuis, ou então uma variante do uniforme das milícias. Tudo isso era curioso e comovente. Muito escapava à minha compreensão, mas reconheci de pronto que se tratava de uma situação pela qual valia a pena lutar.

Também acreditei que as coisas eram como pareciam ser, que se tratava mesmo de um Estado dos trabalhadores, e que toda a burguesia havia escapulido, ou sido morta, ou passado voluntariamente para o lado dos trabalhadores; não me dei conta de que boa parte dos burgueses abastados estavam apenas amoitados e temporariamente se fazendo passar por proletários, por enquanto."

(ORWELL, George. Lutando na Espanha: homenagem à Catalunha. Londrina: Família Cristã, 2021, p. 8-9)

Lutando na Espanha: homenagem à Catalunha.

George Orwell

Editora Biblioteca Azul

R$ 25,00 (R$ 9,90, versão para Kindle) pelo Amazon.

Terra e Liberdade, filme de 1995

Direção de Ken Loach

Inglaterra

Disponível no Youtube:

Leia também:

TROTSKY, Leon. Escritos Sobre Espanha. Lisboa: Arcádia, 1976.

Eudes Baima
Professor da Universidade Estadual do Ceará - FAFIDAM/UECE