sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Triste Fim de Policarpo Quaresma: uma sátira do povo brasileiro

fevereiro 24, 2023


O romance Triste fim de Policarpo Quarema, publicado em 1915, narra as peripécias da personagem Policarpo Quaresma, um patriota comicamente ingênuo e visionário que, com seu nacionalismo exaltado e utópico, sugere alguns projetos para a construção de uma identidade genuinamente brasileira acreditando contribuir por meio destes para o desenvolvimento e o crescimento de seu país.

De autoria de Afonso Henrique de Lima Barreto, mulato nascido no Rio de Janeiro, em 1881, que teve uma vida humilde e determinada pelo preconceito. Tendo sido seu pai tipógrafo e sua mãe professora, os perdeu ainda muito jovem e, desde cedo, teve que trabalhar para prover o sustento da família. A dedicação ao jornalismo e à literatura possibilitou à Lima Barreto imprimir uma crítica contundente e categórica aos aspectos sociais e políticos de sua época.

Nessa obra, o autor denuncia o preconceito racial, as relações sociais baseadas em interesses, principalmente da classe média suburbana e a corrupção dos políticos. Esse romance que é a segunda obra e a mais conhecida de Lima Barreto, inicialmente foi publicado nos folhetins do jornal do comércio, no Rio de Janeiro, em 1911, e, posteriormente em formato de livro, em 1915, tendo sua edição custeada pelo próprio autor.

O romance é dividido em três partes compostas de cinco capítulos cada uma. Na primeira parte, em seu primeiro capítulo, o autor apresenta Policarpo Quaresma “um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito”, “esquisito e misantropo”, assim julgavam os vizinhos.

Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre para baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava (BARRETO, p.09).

O autor apresenta também os ideais nacionais do personagem, que tenta defendê-los no decorrer de toda a narrativa por meio de suas expressões e ações. Quaresma mantinha uma biblioteca farta de livros de História do Brasil, de literatura de autores nacionais, fato que evidencia a exaltação ao nacional. Ele acreditava que ter o conhecimento inteiro do Brasil o levaria a “meditações sobre os seus recursos, para depois apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa” (BARRETO, p.11).

Encontram-se também nesse capítulo inicial, críticas contundentes e categóricas à aristocracia suburbana e à cultura europeia. Ao consultar historiadores, cronistas e filósofos, Quaresma concluiu que o violão era o instrumento genuinamente brasileiro e a modinha, a forma musical artística original. O personagem também exalta a riqueza e diversidade dos alimentos oferecidos pelas terras brasileiras, afirmando a potência e grande capacidade de produzir e de alimentar a sua população.

No segundo e terceiros capítulos, “a convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes cometimentos” (BARRETO, p.20). No intuito de resgatar a cultura folclórica, defendendo como sendo os costumes da tradição genuinamente brasileira, Quaresma faz empreende pesquisas e visitas à uma velha preta que cantava cantigas antigas e acompanha Ricardo Coração dos Outros em apresentações artísticas de modinhas e outras canções folclóricas.

Sem o reconhecimento esperado, tal projeto não vai em frente. Dentro de pouco tempo, empolgado com seu nacionalismo, Quaresma decide encaminhar um requerimento para a Câmara no qual sugere o estabelecimento do Tupi-guarani como língua oficial do país. No quarto e quinto capítulos, os acontecimentos narrados aludem a esse episódio e suas consequências. O quarto capítulo encerra-se com um breve diálogo entre Quaresma e Ricardo Coração dos Outros:

- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.

- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

- É bom pensar, sonhar consola.

- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens... (BARRETO, p.54).

 

Ainda nesses capítulos, as cenas narradas retratam o contexto da época acerca do casamento e da submissão da mulher, que era educada para casar e servir ao marido, a superficialidade das relações entre as classes sociais e, abordam também a temática da loucura, condição direcionada à personagem Ismênia, uma jovem abandonada pelo noivo e ao próprio Quaresma, que passa meses internado em um hospício após ser considerado insano pelo seu superior e ter tido alguns delírios.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da a loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após (BARRETO, p.56).

Considerada um enigma indecifrável da própria natureza humana, a loucura foi uma condição que esteve presente na vida de Lima Barreto, o qual esteve internado em um hospício repetidas vezes. Na cena em que se descreve a chegada de visitantes ao manicômio, o autor afirma que a loucura é uma das condições humanas que iguala as pessoas:

[...] Como em todas as portas dos nossos infernos sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos (BARRETO, p. 57).

Na segunda parte do romance, nos cinco capítulos são retratados os episódios em que Quaresma se dedica ao sítio Sossego, lugar que passa a morar depois que sai do hospício. Baseando-se na ciência, em seu conhecimento geográfico e, na certeza absoluta, das ‘excelências do Brasil’, “planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos” (BARRETO, p. 70).

         Acompanhado de sua irmã Adelaide e de seu empregado Anastácio, Quaresma dedica-se inteiramente à agricultura, momento em que ocorre no romance uma intensa valorização da fauna e da flora brasileira, exaltando-se a fertilidade das terras, a variedade do clima, o que permitiria uma produção agrícola fácil e rendosa. Para ele, tudo que se plantasse, dava, era uma questão de método e de dedicação.

         O projeto agrícola de Quaresma também não foi bem sucedido. Além de muitas dificuldades em realizar o comércio de sua produção, ele foi multado pelos políticos, o que ocorreu devido não concordar em apoiar o candidato apontado pelo tenente Antonino, sua estrutura agrícola não produziu boas safras e as formigas saúvas devoraram sua lavoura.

Com a experiência, Policarpo percebeu o descaso do governo para com a população rural e, considerando necessária uma reorganização da administração, escreveu ao marechal Floriano Peixoto, então Presidente da República, sugerindo a implementação de leis agrárias e de medidas que iriam melhorar e dar novas bases à vida agrícola.

Na terceira parte, Quaresma abandona o sítio e larga a família para dedicar-se à defesa da Pátria. Alista-se no Exército, fica à frente da revolta das armadas e luta pela integridade do país, apesar das decepções. Nesse contexto, a personagem denuncia a negligência e corrupção militarista ao ter que comprar a própria patente, bem como os desmandos e a desmedida e cruel violência incrustada no meio militar.

A manifestação de sua discordância em relação à truculência com a qual os prisioneiros “inimigos” eram tratados leva Quaresma a ser preso, considerado traidor da pátria. No capítulo cinco, antes de ser morto pelos próprios companheiros de farda, ele afirma sua decepção para com a pátria:

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia, A que existia de fato, era a do Tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati (BARRETO, p. 184).

Satirizado, desqualificado e, até criminalizado, pela sua paixão pelo país, Policarpo Quaresma representa cada brasileiro e cada brasileira que luta, diária e incansavelmente, individual e coletivamente, pela melhoria das condições de vida e reivindica políticas e medidas que promovam o bem estar social da população, uma vez que nosso país tem riqueza natural e patrimonial suficientes para tornar isso uma realidade concreta.


Marcilia Nogueira do Nascimento

Doutoranda em educação pela Universidade Estadual do Ceará - UECE - PPGE

 

Referências bibliográficas

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 2. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2017.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Lula precisa criar uma base social para avançar nas reformas estruturais

janeiro 23, 2023

 

 

A vitória eleitoral contra o bolsonarismo representou uma derrota parcial da tendência de fascistização do regime político, da recolonização do Brasil e do processo de aprofundamento das desigualdades sociais.

 No entanto, isso foi só o primeiro passo.

A tentativa golpista de criar um caos em 8 de janeiro e a oposição da oligarquia financeira às tímidas propostas de reforma revelam que o governo Lula sofre a possibilidade de cerco e derrubada.

Para evitar a possiblidade de golpe, o governo Lula deve tomar a iniciativa de fortalecer uma base social para garantir reformas estruturais no sentido de retirar o Brasil do atraso e fortalecer o protagonismo de um projeto socialista para nosso país.

Um governo eleito contra uma coalização reacionária, como no Brasil, precisa tomar medidas imediatas para deter o golpismo, consolidar um amplo apoio de massas e desestruturar as bases sociais do bolsonarismo e da oposição burguesa de direita. As mudanças exigidas precisam de um conjunto de forças sociais que participem do processo de reformas estruturais, recebendo seus benefícios e, portanto, com disposição de defender esse processo e seus resultados.

Todo processo de mudanças radicais começa com fatos que criam condições históricas novas, gerando interesses a favor de novas conquistas e disposição para defender o aprofundamento das transformações diante de resistências reacionárias. Pode-se dar o exemplo da Revolução Socialista Russa de 1917. A ação dos camponeses destruiu a propriedade latifundiária e qualquer tentativa de retorno à situação anterior implicava no enfrentamento com milhões de trabalhadores dispostos a defender suas conquistas.

Essa lição histórica é importante porque muitos governos reformistas ou de esquerda recuam de mudanças necessárias, procurando se sustentar fazendo concessões às classes dominantes e pedindo paciência para as bases. Tal postura desmoraliza o movimento que levou à eleição desses governos, levando-o à desmobilização e ao afastamento dos trabalhadores e setores populares, que não tem nada a defender.

Então nesses primeiros seis meses de governo Lula são necessárias medidas econômicas e políticas para enfrentar problemas essenciais para a maioria dos brasileiros como: questão agrária, desemprego, miséria, fome, falta de saúde e educação pública, baixos salários, transporte, moradia, inúmeras formas de opressão social entre outras mazelas.

Por isso, também é importante uma ampla mobilização por reformas. As direções sindicais, populares e a intelectualidade democrática têm uma responsabilidade imensa nesse processo.

         O tempo urge.

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O governo soviético

dezembro 12, 2022


Texto retirado do livro da jornalista, feminista e ativista política estadunidense Louise Bryant (1885-1936) Seis meses na Rússia Vermelha. Utilizamos o texto em inglês presente em www.marxists.org/archive/bryant/works/russia/ch05.htm e a tradução ao português feita pela editora Lavra palavra (BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: Lavrapalavra, 2022, p. 44-45).

 

Os sovietes[1] foram uma forma natural de organização para as massas russas devido a longa experiência de suas primitivas instituições comunitárias. Eles devem sua forte influência sobre o povo ao fato de serem os órgãos políticos mais democráticos e sensíveis jamais inventados.

O soviete é um órgão de representação proporcional direta baseado em pequenas unidades da população com um representante para cada 500. O soviete é eleito por sufrágio igual, voto secreto, com pleno direito de revogação. Um soviete não é eleito com frequência regular. Os representantes ou delegados, no entanto, podem ser convocados e reeleitos por seus constituintes a qualquer momento. Dessa forma, o semblante do soviete registra imediatamente o sentimento das massas da população. Os sovietes são baseados diretamente nos trabalhadores nas fábricas, nos soldados nas trincheiras e nos camponeses nos campos.

Cada cidade tem seu Soviete de representantes de Soldados e Trabalhadores. As diferentes partes[2] da cidade também têm seus sovietes. As províncias, os condados e algumas aldeias possuem Sovietes de Agricultores.  O Congresso dos Sovietes de Toda Rússia é formado por representantes dos sovietes das províncias, que também podem ser eleitos diretamente, sendo a proporção de um representante para 25 mil pessoas.

O Soviete de Toda a Rússia geralmente se reúne a cada três meses. Elege um Comitê Central Executivo, que é o Parlamento do País. O Comitê Central Executivo é composto por quase 300 membros. Os Comissariados do Povo, que são o Gabinete ou Ministério, do qual Trotsky é um comissário, Lunacharsky outro, e assim por diante, são eleitos pelo Comitê Central Executivo. Os comissários são homens simples na direção de um colegiado responsável por cada departamento do governo. Lênin é o presidente dos Comissariados.

O propósito geral dos Sovietes não é simplesmente uma representação territorial, mas também de ser um corpo de classe – um corpo representativo principalmente de uma classe – a classe trabalhadora.



[1] Conselhos.

[2] Bairros, distritos.

 

 

 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Sobre esse tal "MERCADO"

novembro 22, 2022

 

 

 O mercado parece um deus. Ele é incontrolável e manda na vida de bilhões de pessoas. Fica triste, calado ou nervoso, às vezes é vingativo, mas, no fim de tudo, só quer o nosso bem. Numa perspectiva mais refinada, que é vendida por professores liberais, instituições financeiras, grandes empresas de comunicação, organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL) ou ideologias como o anarcocapitalismo, o “livre mercado” é o princípio básico da vida feliz em sociedade.

Segundo essa ideologia o mercado precisa ser livre. Então, quando qualquer governo tenta interferir para impor o que os participantes do mercado podem ou não fazer, os recursos são impossibilitados de circular para a sua utilização mais eficaz. Se os indivíduos não podem fazer as coisas que consideram mais lucrativas, elas perdem o isentivo de investir e inovar... e a sociedade entra em decadência.

Segundo o Jornal Folha de São Paulo, um dos representantes desse tal mercado livre:

 

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), propõe aumento da inflação e dos juros, menos emprego e crescimento econômico, mais ganhos para os rentistas. Esses seriam os efeitos práticos e prováveis da proposta petista para a expansão incondicional do gasto público, enfim apresentada ao Congresso na quarta-feira (16)[1].

 

Segundo essa narrativa, o mercado não quer romper com o “teto de gastos”. Combater a fome e ter uma política contra a miséria. Investir na saúde e educação públicas significa uma expansão incondicional do gasto público.

Agora, a hora da verdade. A identidade secreta do mercado chama-se oligarquia financeira.

Segundo o conceito leninista, o capital financeiro é o conjunto do capital industrial, incluindo o agrário, e comercial fundidos ao capital bancário. O capital financeiro supera a existência isolada do capital industrial na esfera da produção, do capital comercial na esfera da circulação e do capital bancário na esfera do crédito. É a forma superior do capital no período imperialista que sucedeu a fase de livre concorrência. As três formas isoladas do capital ainda existem, mas nas margens da estrutura central que comanda o capitalismo. O núcleo do capital financeiro está concentrado nos países imperialistas sob a hegemonia econômica, política e militar dos Estados Unidos (EUA).

No Brasil, o capital financeiro se concentra num pequeno grupo de burgueses nacionais e estrangeiros, que forma a camada superior das classes dominantes, controlando todos os setores da economia. Essa oligarquia financeira detém realmente o poder: faz o Estado a sua imagem e semelhança; influência os rumos políticos do país; controla as principais instituições de hegemonia (imprensa, instituições religiosas, estrutura educacional), concentra a maior parte do mais-valor produzido pelos trabalhadores e subordina as demais frações capitalistas, tornando-as contribuintes.  

A oligarquia financeira não é a favor do “teto de gastos”. Por quê?

Simples, o “teto dos gastos” é uma limitação imposta aos gatos do governo, em particular os investimentos sociais e produtivos, para que sobre dinheiro para continuar pagando os juros da dívida pública aos grandes bancos. De fato, o capital financeiro vem abocanhado mais da metade do Orçamento Federal.

Em 2021, segundo a Auditoria Cidadã da Dívida[2], o Orçamento Federal Executado (pago) foi de R$ 3,876 trilhões, dos quais 50,78% foram pagos em juros e amortizações da dívida do Estado para bancos e especuladores, ou seja, para o parasitismo do capital financeiro.

Bem, uma imagem vale mais que mil palavras.

 


 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário -IMO



[1] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/11/lula-pede-mais-juros.shtml

[2] https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gasto-com-divida-publica-sem-contrapartida-quase-dobrou-de-2019-a-2021/


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Bolsonarismo e fascismo: paralelos históricos

novembro 03, 2022

 

 

Diferentemente do que pensam os irracionalistas pós-modernos, é possível conhecer a lógica dos processos históricos. Primeiro, porque a história é um produto da atividade dos seres humanos, que para satisfazer suas necessidades precisam constantemente transformar o mundo, ao mesmo tempo, transformando-se e se autocriando. Segundo, porque desde que surgiram as classes sociais o motor da história é a contradição entre elas, isto é, a luta de classes. Terceiro, porque é possível extrair do encadeamento da diversidade dos fenômenos históricos determinados padrões e tendências em torno dos quais gravitam singularidades que não se repetem.

Nesse sentido, pode-se compreender, numa primeira aproximação, o bolsonarismo como um movimento reacionário de massas. Sob o seu manto estão católicos tradicionalistas e conservadores, protestantes pentecostais e históricos, monarquistas, integralistas, neonazistas, militares, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Polícia Federal (PF), membros das forças de segurança pública estaduais, artistas, milícias, políticos e diversos setores da burguesia. A ideologia bolsonarista não é coerente e sistematizada, mas gira em torno de ideias-forças como mercado, liberdade, autoridade, racismo, xenofobia, machismo, desigualdade natural e um profundo anticomunismo. Na verdade, o cerne do bolsonarismo é uma reação às conquistas progressistas da humanidade e das classes trabalhadoras como o sufrágio universal, a soberania popular e os direitos sociais.

O sufrágio universal (masculino) e direto foi sancionado pela Constituição de 24 de junho de 1793, como resultado do processo de radicalização da Revolução Francesa. Infelizmente, as turbulências da situação interna e externa, além dos avanços e recuos do processo revolucionário francês e europeu, dificultaram a efetivação desse método democrático. No entanto, essa primeira contestação radical das estruturas de poder aristocráticas, passando por cima do direito divino e da discriminação política das grandes massas, assustou as classes dominantes.

Por isso, ideólogos da burguesia liberal como Benjamin Constant (1767-1830), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Jonh Stuart Mill (1806-1873) apresentaram formas para restringir o sufrágio universal e a radicalização da soberania popular. O intento era limitar os direitos políticos para impedir que a população trabalhadora impusesse, no seu interesse, medidas sociais e econômicas. Daí propostas de voto censitário, eleições indiretas e exclusão de analfabetos, mulheres, pobres, pessoas de origem colonial, negros e não-proprietários do direito ao sufrágio universal. Tais mecanismos visavam neutralizar politicamente as massas populares, restringindo a luta pela redistribuição de renda e propriedade propiciada pela ampliação dos direitos democráticos para as grandes maiorias.

Com o avanço do movimento operário e a criação de partidos socialistas no século XIX as tensões aumentaram e uniram-se burguesia e latifundiários, liberais e conservadores, contra proletários e camponeses. Mas, foi em 1917, na chamada Revolução de Outubro, quando operários e camponeses, homens e mulheres trabalhadores tomaram o poder na Rússia sob a direção do Partido Comunista, que qualquer luta por liberdade e direito social foi denominada de “comunismo”.

É no período entre guerras (1918-1939) que surge a força política reacionária que ajuda a compreender o bolsonarismo atual: o fascismo. Nascido na Itália em 1919 teve seu ápice na Alemanha nazista, mas deitou raízes em vários países da Europa, da América e chegou até à Ásia. No Brasil, apresentou-se como Ação Integralista Brasileira (AIB), tendo como líder o escritor Plínio Salgado (1895-1975). Entre suas grandes lideranças estavam Gustavo Barroso (1888-1959), simpatizante do racismo nazista, e Miguel Reale (1910-2006), pai do jurista Miguel Reale Júnior, que em 2015, junto aos juristas Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, protocolou na Câmara dos Deputados um pedido de abertura de processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, que levou ao golpe de Estado de 2016.

A experiência italiana e alemã indicaram um padrão clássico desse movimento:

 

1) o ascenso do fascismo expressou uma profunda crise social do capitalismo, cuja função histórica foi alterar pela violência as condições de reprodução do capital a favor dos grupos monopolistas;

 

2) o aprofundamento da crise social desestruturou o regime democrático-burguês, mais vantajoso para o domínio capitalista, porém a burguesia, com o acirramento da luta de classes, tendeu a instaurar formas mais centralizadas do Poder Executivo do Estado;

 

3) como existia uma imensa desproporção entre a burguesia e as classes populares (assalariados, camponeses), um Estado policial puro, em plena crise, teria dificuldades de atomizar e desmoralizar milhões de trabalhadores e suas organizações (sindicatos, partidos, cooperativas), o que levou a grande burguesia a buscar apoio num movimento de massas reacionário (fascismo/nazismo);

 

4) um amplo movimento de massas reacionário (fascistas, nazistas) foi construído com base na mobilização da pequena burguesia enraivecida pelas consequências da crise capitalista, com um conjunto de preconceitos e rancor psicológico para motivar o ataque às conquistas do movimento operário e democrático;

 

5) para o movimento fascista triunfar na Itália e na Alemanha foi preciso esmagar o movimento operário e democrático das massas populares, institucionalizando a guerra civil;

 

6)  o fascismo/nazismo vitorioso, cumpriu sua missão para com o capital financeiro que pode implementar altas taxas de exploração do trabalho, simultaneamente o movimento reacionário de massas se burocratizou, enquanto as ditaduras fascista e nazista esmagavam sua própria base de massas, perseguindo e eliminando os descontentes.

 

Guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, além de particularidades próprias do Brasil, é possível identificar que o movimento de extrema direita bolsonarista apresenta evidentes contornos fascistas. Seu objetivo maior é aniquilar direitos sociais, conquistas populares e organizações dos trabalhadores para que, por meio de um regime policial-militar seja possível garantir um padrão de acumulação capitalista com taxas maiores de exploração. No meio dessa barbárie está o futuro governo Lula e milhões de trabalhadores e trabalhadoras que precisão romper com o ciclo da fome, da miséria, do desemprego, dos baixos salários, da precarização, da falta de moradia, da carestia, da pouca da saúde pública e da educação destruída.

Para dias melhores, o primeiro passo deve ser romper com os bloqueios físicos e políticos do bolsonarismo, isolar seus apoiadores, fortalecendo as organizações de classe e construído um projeto alternativo à barbárie fascista capitalista que apresente reformas estruturais com o apoio do movimento operário-popular.

 

Frederico Costa 

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO