Fiz este texto para me ajudar a entender e a fixar o
pensamento de Lukács. Não o considero, pois, um artigo, mas espero que ele
possa contribuir para o debate no grupo. As páginas referidas em parênteses
referem-se à “Estética” de Lukács, na tradução em castelhano da Editora Grijalbo.
Nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade
há uma tendência a produzir formas de pensamento que não conseguem ultrapassar
as formas ingênuas e espontâneas, necessariamente antropomorfizadoras,
características do pensamento cotidiano que, portanto, não refletem
autenticamente a natureza e o mundo social dos homens.
Engels explica que este fato é a fonte da
proliferação e domínio da religião nos primeiros estágios de desenvolvimento do
gênero humano e que o paulatino avanço da ciência, ou seja, do conhecimento
real da natureza e do mundo formatado pela humanidade vai desembocar, na Idade
Moderna, no deslocamento dos deuses de sua posição dominante na concepção de
mundo dos homens, pelo menos no nível da teoria (filosofia), mediante a
afirmação gradual de que a natureza e o mundo dos homens são regidos por leis
naturais e sociais, e que a sociedade é produto da atividade dos próprios
homens, não havendo, portanto, desígnios divinos na criação e evolução da
natureza ou da sociedade.
Segundo Lukács, foi na Grécia antiga que, pela
primeira vez, o homem tornou-se consciente desse embate entre as concepções
antropomorfizadoras e desantropomorfizadoras, ou seja, científica. O
pressuposto do desenvolvimento da metodologia científica na Grécia residiria na
sua estrutura socioeconômica: a existência de paridade entre os proprietários
de terras e de escravos e o fato dessa propriedade ser fundada no pertencimento
à comunidade; não havendo a escravidão do tipo que ocorria no Oriente (o Estado
como proprietário dos escravos), que impunha regimes tirânicos, a democracia
política pôde florescer e se estender ao campo religioso, razão por que pôde
haver um desenvolvimento próprio da ciência sem uma interferência decisiva das
necessidades sociais e ideológicas da religião; no antigo mundo grego não foi,
assim, possível fazer da filosofia e da religião uma só coisa e, muito
importante, a religião não logrou formar uma casta separada do povo que fosse
detentora exclusiva do saber e da fé e, portanto, também do conhecimento. É a
primeira vez, portanto, que a humanidade faz a separação clara do reflexo
científico em relação ao reflexo cotidiano e ao religioso.
Lukács destaca que a filosofia grega estabeleceu os
problemas decisivos acerca da especificidade do reflexo científico da
realidade, sendo que, em muitos casos, também os clarificou; também esclareceu
a função social do reflexo científico de estar a serviço da vida, o de sempre
regressar à vida para enriquecê-la (p. 153), aduzindo, no entanto, que isto
ocorreu com maior envergadura no terreno do conhecimento social, como na ética,
do que na metodologia das ciências da natureza, isto porque o modo de produção
e reprodução da vida do antigo povo grego impossibilitou a aplicação das leis
da natureza então descobertas ao mundo da produção, haja vista que a escravidão
acarretava o desprezo social pelo trabalho produtivo. Plutarco cita, por
exemplo, que Platão foi violentamente contra as leis da geometria serem usadas
para a criação de máquinas produtivas, pois, em seu entender, seria uma
humilhação para a geometria a sua utilização prático-mecânica, ao mundo
corporal e sensível. Arquimedes só autorizou a utilização prática de suas
descobertas científicas para fins militares, de defesa de Siracusa, ou seja,
motivado por um superior sentimento patriótico. A consequência desse fato é de
que, na Grécia antiga, a ciência não deu uma contribuição efetiva à produção e
vice-versa. Isto acarretou o fato de que, nas posteriores etapas de
desenvolvimento da filosofia da natureza, haverá a influência decisiva de
reflexos antropomorfizadores.
A despeito disto, Lukács assinala que a linha
fundamental do pensamento grego antigo é a fundação de uma objetividade real do
conhecimento, cuja construção deveria ser feita sem a influência de elementos
da subjetividade humana, o que seria atingido através da crítica das ilusões
perceptivas dos sentidos, dos paralogismos (raciocínios falsos feitos com boa
fé), da imediatez do pensamento cotidiano que produz todos esses erros. Destaca
ainda que a filosofia dos pré-socráticos é um ponto de involução na história do
pensamento humano neste sentido de ser um esforço de ultrapassagem decisiva da
“subjetividade humana, com seus limites, deficiências e preconceitos” (p. 154),
com vistas a refletir com a maior fidelidade possível a realidade tal como ela
é. O ponto culminante neste desenvolvimento são o pensamento de Demócrito e
Epicuro, para quem “todo o mundo fenomênico humano se considera tal como o
produto, segundo leis, das relações e dos movimentos das partes elementares da
matéria” (p. 154). Os antigos gregos, assim, descobriram o modelo metodológico
correto para lograr conhecer a realidade, mesmo que não o tenham aplicado de
forma sistemática nos estudos particulares dos fenômenos naturais.
Lukács conclui então que “se se analisam os
fundamentos metodológicos conseguidos desde Tales até Demócrito-Epicuro, é
possível assentar duas informações básicas: em primeiro lugar, que uma captação
verdadeiramente científica da realidade objetiva não é possível mais do que
mediante uma ruptura radical com o modo de concepção personificador,
antropomorfizador. O tipo científico do reflexo da realidade é uma
desantropomorfização tanto do objeto quanto do sujeito do conhecimento: do
objeto, ao limpar o seu ser-em-si de tudo o que é aduzido pelo antropomorfismo
(na medida do possível); do sujeito, ao fazer com que o comportamento deste a
respeito da realidade consista em criticar constantemente suas próprias
intuições, representações e formações conceituais para evitar a penetração de
atitudes antropomorfizadoras que deformaram a objetividade na captação da
realidade. O desenvolvimento concreto será resultado de uma fase posterior;
porém, os fundamentos metodológicos estão já assentados na cultura grega: que o
sujeito do conhecimento tem que imaginar seus próprios instrumentos e modos de
proceder para fazer, com sua ajuda, que a recepção da realidade seja
independente das limitações da sensibilidade humana e para automatizar, por
assim dizer, o seu autocontrole.” (p. 154)
Lukács destaca que a evolução do pensamento
desantropomorfizador na filosofia grega não se deu apenas contra o pensamento
religioso, mas também contra o pensamento do cotidiano. Na filosofia posterior
à dos gregos, a crítica ao pensamento cotidiano desemboca num idealismo religioso
ou semirreligioso; isto porque, contraditoriamente, o paulatino avanço do
conhecimento científico, no período que vai do fim da Antiguidade ao fim da
Idade Média, é menos capaz de impedir o comportamento cognoscitivo geral
antropomorfizador do que a ciência menos desenvolvida da Grécia antiga, o que
indica de forma clara que o decisivo, neste problema, foi a diferença da
organização social conformadora da polis grega, mais democrática em relação à
Europa feudal e cristã da Idade Média; Lukács refere inclusive que Hegel
percebeu isso, ao ver uma diferença entre o ceticismo antigo, que critica a
antropomorfização do pensar resultante da apreensão da realidade pelos meros
sentidos humanos, portanto subordinado à subjetividade do sujeito cognoscente,
e o ceticismo moderno, que combate a objetividade do pensamento científico e
filosófico que se fez possível pelos avanços do pensamento
desantropomorfizador.
Para a filosofia grega, ressalta Lukács, o
conhecimento se baseia no reflexo correto da realidade objetiva. No entanto, a
questão do reflexo para os gregos não transita da interpretação filosófica da
realidade objetiva para o predomínio das questões epistemológicas (teoria do
conhecimento); por mais diverso que seja o reflexo da realidade para Platão e Aristóteles,
nem um nem outro nega a sua importância central; ocorre que, como vimos, a
própria filosofia grega postula a necessidade de conhecer a realidade em si
(essência) que é diversa daquela que percebemos pelos sentidos (fenômeno); para
Platão, a resposta ao “como” se chegar à essência das coisas é dada em sua
teoria da formação dos conceitos que, iluminando a intuição sensível e as
representações, devem refletir da forma mais fiel possível a realidade
objetiva.
Quando a filosofia posterior à grega assenta a
predominância das questões epistemológicas em relação à elaboração filosófica
da realidade objetiva, encontra, nesta teoria dos conceitos de Platão, a base
para tal transição, esquecendo que para Platão o conceito é o reflexo o mais
próximo e correto possível da realidade objetiva. Ao se esquecer disto, a
filosofia se torna idealista, ou seja, as ideias deixam de ser um “mero”
reflexo da realidade e passam a ter existência própria, autônoma e, por vezes,
superior em relação à própria realidade objetiva. Há uma autonomização e,
portanto, uma separação do mundo das ideias em relação ao mundo real. Portanto, como diz Lukács, “com esta
inflexão em direção à teoria do conhecimento se empreende, ao mesmo tempo, o
caminho do idealismo.” (p. 160)
Com o idealismo o sujeito cognoscente passa a ter que
refletir em sua mente o mundo das ideias, portador das essências das coisas, e
o mundo empírico, que compreende a realidade objetiva como simples manifestação
fenomênica das ideias. E essa duplicação do reflexo, observa Lukács,
constitui um sério risco ao reflexo correto da realidade objetiva, ao aduzir
que “a separação entre o mundo ideal e a realidade, a realidade autêntica –
metafísica - que Platão atribui ao primeiro, conduz o pensamento humano – como viu
Aristóteles claramente desde o primeiro momento e o criticou resolutamente – ao
nível já superado do antropomorfismo.” (p. 160)
De fato, Lukács explica que Aristóteles, em sua
crítica a Platão, informa que este considera que a essência de uma coisa tem a
mesma constituição da coisa que é perceptível pelos sentidos humanos; a
diferença está em que uma é eterna (a essência da coisa) e a outra é perecível
(a coisa perceptível pelos sentidos). Aristóteles informa que esse caminho
conduz ao antropomorfismo e, por conseguinte, à religião, e o explica da
seguinte forma: “Assim se fala do homem em si, do cavalo em si, da saúde em si,
sem que com isso se tenha nenhuma outra alteração do objeto; igual que quando
se afirma a existência dos deuses, porém imaginando-os completamente iguais aos
homens. Pois não se tem feito assim mais que predicar aos homens o predicado da
eternidade, e naquele outro caso não se tem feito mais que imaginar ideias,
iguais aos objetos sensíveis, porém com o predicado da eternidade.” (citado na
p. 161)
Assim, para Lukács, “a antropomorfização do mundo
das ideias nasce diretamente do fato de que a filosofia idealista atribui à
essência uma existência própria junto a – ou melhor dizendo por cima da – do
mundo fenomênico. Esta nova existência própria tem que dotar-se, naturalmente,
com traços próprios, e como esses traços não são refigurações do mundo
material, o que podem ser senão
extrapolações do ser humano?” (p. 161, grifo meu).
E a forma dessa extrapolação do ser humano, de antropomorfização
incidente sobre a refiguração do mundo material, tem sua origem no processo de
trabalho, onde parte-se da ideia do que se vai construir para
poder-se efetivamente construir algo; primeiro o homem imagina a coisa que
ele vai construir, a sua forma, os materiais e as ferramentas que vai utilizar,
tudo em conformidade com o objetivo final que tem em mente; passa então a
realizar o trabalho até dar aos materiais escolhidos a forma final imaginada em
sua mente. Esse momento intelectual passa a ser predominante em relação à
execução material do trabalho. Aristóteles realizou a clara separação entre
a gênese natural (dos objetos da natureza) e a gênese artificial (oriunda do
trabalho), sendo que essa clara distinção “[…] possibilita o conhecimento da
essência do trabalho e impede, ademais, uma errônea generalização da mesma, a
acrítica aplicação de suas categorias à realidade extra-humana.” (p. 162) Assim
disse Aristóteles: “Pela arte se origina tudo aquilo cuja forma está
previamente na alma… assim vai procedendo o pensamento até chegar à última
condição que pode produzir um mesmo (uma coisa, ou no caso do exemplo de
Aristóteles, a saúde); o movimento que sai deste ponto e que leva à saúde se
chama então uma produção. Assim resulta que, em certo sentido, a saúde se
origina da saúde, uma casa se origina de uma casa, a casa material de uma casa
imaterial. Pois a arte do médico e a arte do construtor é a forma da saúde no
primeiro caso, e da casa no segundo.” (p. 161/62)
Lukács diz que é essencial ao trabalho que as
propriedades da matéria apareçam ao trabalhador como possibilidades diante da
consecução do objetivo a que ele se propõe no processo do trabalho; essas
possibilidades são concretas e delimitadas; Plotino, epígono de Platão, as
considera no entanto de forma abstrata e absoluta, portanto ilimitadas, e as
contrasta com o elemento intelectual do trabalho, aqui também considerado de
modo abstrato e absoluto e não de modo concretamente determinado, como de fato
é no processo do trabalho; com essa abstração e absolutização do elemento
intelectual do trabalho (que assim não é delimitado pelas características e
propriedades da realidade objetiva), abre-se a possibilidade de pensar que a
realidade extra-humana dos produtos naturais (extratrabalho) também pode ser
criada “intelectualmente”, ou seja, subjetivamente por um “ser”.
Plotino considera ainda que “o potencial nunca
poderia passar à atualidade se o potencial tivesse a primeira classificação,
posição, no reino do ente (do criador); […] pois não pode por-si a si mesmo em
movimento, por isso que o atual tem que existir antes dele (antes do
potencial); […] Pois certamente não engendra a matéria a forma, o sem qualidade
a qualidade, nem nasce da potencialidade a atualidade”. Plotino parte da ideia
de que o potencial não pode, por si só, gerar o atual; ou seja, o que é
meramente potencial, como não tem movimento, não pode, por si mesmo somente,
criar o atual, o existente, o que tem movimento; assim ele defende que somente
o atual, o já existente, pode criar um outro atual, um outro existente; como
ele toma como modelo de criação o processo do trabalho e, por isso entende que
o momento intelectual (a prévia ideação separada, autonomizada da realidade
objetiva) é o princípio criador necessário para a gênese de algo, ele defende
que esse momento intelectual é já atual, ou seja, põe e é movimento, sendo pois
também causa do próprio movimento; as ideias, portanto, são a causa do ser e do
devir do mundo material (idealismo objetivo).
Vê-se aqui que Plotino considera o princípio criador
(o elemento intelectual do trabalho) como um momento superior em relação ao que
se produz ou ao momento da execução prática do trabalho, que ele nem considera
em seu raciocínio. Lukács informa que tal perspectiva de Plotino e do idealismo
objetivo grego em geral não decorre pura e simplesmente da pura projeção
abstrata do processo do trabalho à gênese do mundo natural, mas também de um
condicionamento social decisivo do modo de produção escravista da época: o
forte desprezo pelo trabalho, sobretudo o físico. Isto teve a consequência
filosófica de imprimir à relação entre o mundo ideal e o mundo fenomênico uma
sujeição hierárquica deste último ao primeiro, ou seja, aquilo que cria (a
essência, a ideia) é superior ao que se produz ou à execução do trabalho no
plano material; Lukács diz que isso não decorre necessariamente do idealismo
filosófico, tanto que, em Hegel, sob o influxo já de relações capitalistas de
produção, uma parte do que é objetivamente criado (as ferramentas, os
instrumentos de trabalho) são consideradas superiores à satisfação das
necessidades humanas (aos fins do trabalho, à prévia ideação), isto porque as
ferramentas são expressão do domínio do homem sobre a natureza, são duradouras,
enquanto a satisfação das necessidades do homem refletem a sua dependência da
natureza, sendo o gozo humano passageiro e logo esquecido.
Lukács arremata que “o idealismo objetivo da
Antiguidade que, em seu mundo ideal, convertia a essência, separada e
independentizada do mundo fenomênico, em fundamento real da realidade, não
tinha mais saída possível que a de conceber essa causação, assim estatuída, de
um modo antropomorfizador, mitologizador, como “processo de trabalho” da gênese
do ser e do devir do mundo, embotando consequentemente a tudo o que havia
conseguido a anterior filosofia em relação à desantropologização do
conhecimento e a sua fundamentação como ciência.” (p. 162/163)
Esta hierarquia entre o mundo ideal (superior) e a
realidade material (inferior) teve forte influência no pensamento posterior.
Diz Lukács que a “involução da concepção do mundo no sentido de um novo
antropomorfismo, fenômeno que começa com Platão, determinou o destino do
pensamento científico na Europa durante quase um milênio, produzindo a queda no
esquecimento das antigas conquistas” (desantropomorfizadoras) (p. 164).
Assim, ocorre que nesse novo antropomorfismo há um
movimento para garantir que o pensamento desantropomorfista se circunscreva à
pesquisa científica particular, inclusive à sua metodologia, incorporando assim
as conquistas científicas de campos específicos, enquanto que a investigação
das causas últimas, de fundo, de visão e de concepção de mundo, esteja sob
controle do pensamento antropomorfista, sobretudo o da religião. Isto também
ocorreu no Oriente, sendo que neste, em razão da existência de uma casta de
sacerdotes que monopolizava o saber, não floresceu o pensamento
desantropomorfista típico da filosofia grega anterior a Platão.
Há ainda um outro importante aspecto do neoplatonismo
que Lukács observa em Plotino: o mundo ideal é substantivado mas dele se exclui
o devir do mundo fenomênico e a quantificação da realidade material. De fato,
Plotino afirma sobre o mundo ideal: “a propósito da substância inteligível e dos
correspondentes gêneros e princípios” há que supor uma hipostasia inteligível,
como algo que é verdadeiramente e é um em grau supremo, a saber, sem o devir
dos corpos e a percepção e as dimensões sensíveis”. Mas Plotino também postula,
como vimos, um mundo existente caracterizado pela suprema atualidade (o que tem
movimento) contraposta à mera potencialidade da matéria, “captado numa
imediatez que é sensível, não sensível e suprassensível, e concebido como
essência pura, como substância única e força motora da realidade propriamente
dita.” (p. 165)
Para captar esse “mundo essencial” Plotino se vale da
noção de “intuição intelectual”, que toma da ciência momentos – deformados – da
desantropomorfização. Isto porque a realidade, captada pela sensibilidade
imediata e sem a consideração do devir e da quantificação do real (objeto da
matemática), não pode “conceituar-se com os meios normais do pensamento” que,
por sua vez, para serem desantropomorfizadores, não podem prescindir da
“indispensável abstração quantificadora e da captação das leis do devir”. Mas
não só por isso, defende Lukács. É que a captação desantropologizadora da
realidade material pressupõe a apreensão mais pura do objeto em si, “com a
maior eliminação possível das propriedades da receptividade humana, enquanto
uma ‘realidade inteligível’ platônica está indissoluvelmente vinculada à
natureza do homem como homem”, ou seja, à subjetividade humana (p. 166). A
inteligibilidade aqui é mais orientada para o próprio sujeito do conhecimento
do que para o objeto. O momento predominante é a antropomorfização em relação à
desantropologização, o que é reforçado pela impossibilidade de se obter um
reflexo correto da realidade material ao se fazer a abstração do processo do
devir e da sua característica de poder ser quantificada. Essa impossibilidade,
por seu turno, reforça o referido viés antropológico platônico no processo de
obtenção do conhecimento.
Esse modo de pensar cria o postulado de se “levantar
acima do nível antropológico do homem e, simultaneamente, preservar esse nível
– depurado, e até conduzi-lo a si mesmo mediante essa purificação”. Nisso Lukács
identifica o parentesco do neoplatonismo com a religião: como não há a
apreensão das verdadeiras legalidades que operam na realidade objetiva, da
essência por trás da aparência no sentido do autêntico materialismo, o homem
mantém-se na esfera da cotidianidade caracterizada pela união imediata de
teoria e prática; mas a
verdadeira realidade, para o platonismo, é o mundo ideal das essências únicas,
puras e eternas, deste modo faz-se necessário elevar-se deste nível da
cotidianidade para se atingir o verdadeiro conhecimento. Essa elevação se faz
mediante a eliminação da realidade objetiva do que não é puro, único e eterno,
ou seja, das leis do devir e da quantidade. Após tal purificação,
retorna-se à vida cotidiana em cuja esfera há um abandono do normal
comportamento humano diante da realidade: “como o objeto (a realidade
inteligível, o mundo ideal) é mais que humano, também o sujeito tem que
levantar-se por cima de seu próprio nível para ser capaz de recebê-lo” (fl.
166). Deste modo, o homem oscila entre o pensamento cotidiano e o pensamento
que tem por objeto o sobre-humano, o transcendente à sua própria realidade
humana.
Lukács entende que, desse modo, as doutrinas das ideias
(idealismo) e da religião entendem que o homem só encontra a sua essência (ou a
alma humana só encontra a si mesma) deste modo antropomorfizador e que para
tais doutrinas, portanto, o pensamento científico desantropomorfizador leva à
desumanização do homem, ao perder-se de si mesmo; que a desdivinização, a
dessacralização do mundo é um real perigo para o ser-homem do homem, para a
integridade humana, aduzindo que, embora esta conclusão já está presente nos
neoplatônicos, só atinge seu pleno desenvolvimento na Idade Moderna, como por
exemplo em Pascal.
Na verdade, para Lukács tal conclusão é falsa, pois
de fato ocorre o contrário: “a desantropomorfização a que leva a cabo a ciência
é um instrumento do domínio do mundo pelo homem; é um passo à consciência, uma
elevação ao nível do método daquele comportamento intelectual que apenas se
inicia com o trabalho, separa o homem do animal e lhe ajuda a fazer-se homem. O
trabalho e a forma consciente mais alta nascida dele, o comportamento
científico, não é pois somente um instrumento do domínio do mundo dos objetos,
mas também, por isso, um meio indireto que, pelo descobrimento cada vez mais
rico da realidade, enriquece o homem mesmo, lhe faz mais completo e humano do
que seria sem ele. Ao contrário, a
elevação por cima da cotidianidade, no sentido da intuição intelectual e da
religião, parte da ideia de que o núcleo humano é para o homem mesmo tão
transcendente como o mundo ideal ou a “realidade” religiosa em relação ao mundo
objetivo, ao mundo terreno. Todos os métodos propostos por essas tendências,
desde a doutrina do eros, até a ascese, o êxtase, etc., tendem a despertar esse
desejo do homem de transcender a si mesmo, e a contrapor tal desejo de forma rude,
excludente, hostil e recusatoriamente ao homem real” (p. 167).
Lukács destaca que a criação desse mundo ideal,
transcendente, empobrece o homem porque nesta criação não há a apreensão das
leis que regem a realidade objetiva, não havendo, por conseguinte, o aumento do
domínio do homem sobre o seu mundo concreto. É uma criação que não aumenta as
capacidades do homem tendo em vista a sua vida real. Isto porque, do ponto de
vista objetivo, o mundo ideal ou transcendente é pensado como qualitativamente
superior ao mundo humano, ao que é perceptível pelos sentidos e que pode se
tornar autenticamente inteligível ao homem (no sentido de poder ser realmente
objeto da razão humana), sendo, por isso mesmo, formado por momentos
profundamente marcados pelo pensamento antropomorfizante; e do ponto de vista
subjetivo, “o homem tem que romper com o seu concreto ser humano, inclusive com
sua personalidade moralmente formada, para poder estabelecer um contato fecundo
com esse mundo”. (p. 167)
E para Lukács a verdadeira ética é aquela que mantém
íntegra a personalidade do homem como tal, como ser concretamente existente,
sensível, socializado, com uma práxis referida ao aumento de suas próprias
capacidades em suas trocas com outros seres humanos e com a natureza, num
autêntico vínculo com a sua humanidade que é necessariamente
desantropomorfizante em relação aos objetos desse mundo concreto. Ele diz que
“precisamente neste ponto apresenta, ao contrário, uma ruptura (com a
personalidade humana) o momento subjetivo daquele ascenso ao mundo ideal: pois
inclusive o ser humano eticamente realizado é, em comparação com o sujeito
digno e capaz de intuição intelectual do mundo das ideias, algo meramente
terrenal, material, hierarquicamente baixo” (p. 167) Há uma desvalorização,
então, da personalidade verdadeiramente humana. Isto também ocorre pelo fato de
que o mundo ideal ou a religião impõem exigências abstratas ao homem que
ultrapassam os limites de sua própria condição humana, o que lhe desvia do
caminho de “superação concreta daqueles momentos do homem que lhe atam à
superfície da cotidianidade e lhe impedem explicitar com suas próprias forças o
essencial de si mesmo” (p. 167)
Para o filósofo húngaro é um desenvolvimento
necessário que as correntes éticas que se fundam na intenção de explicitar o
núcleo humano imanente do homem utilizem conceitos e descrições cientificamente
objetivas, desantropomorfizadoras. Reversamente, “a ultrapassagem
abstrato-transcendente do humano, teorética e praticamente generalizado, tem
que levar a uma aproximação a – ou até uma realização de – usos, ritos etc.,
mágico-religiosos”, numa predominância dos reflexos antropomorfizadores (p.
167).
Sávio Bastos
Membro do Gposshe