sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Alcance e limites das tendências desantropomorfizadoras na Antiguidade

 


Fiz este texto para me ajudar a entender e a fixar o pensamento de Lukács. Não o considero, pois, um artigo, mas espero que ele possa contribuir para o debate no grupo. As páginas referidas em parênteses referem-se à “Estética” de Lukács, na tradução em castelhano da Editora Grijalbo.

Nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade há uma tendência a produzir formas de pensamento que não conseguem ultrapassar as formas ingênuas e espontâneas, necessariamente antropomorfizadoras, características do pensamento cotidiano que, portanto, não refletem autenticamente a natureza e o mundo social dos homens.

Engels explica que este fato é a fonte da proliferação e domínio da religião nos primeiros estágios de desenvolvimento do gênero humano e que o paulatino avanço da ciência, ou seja, do conhecimento real da natureza e do mundo formatado pela humanidade vai desembocar, na Idade Moderna, no deslocamento dos deuses de sua posição dominante na concepção de mundo dos homens, pelo menos no nível da teoria (filosofia), mediante a afirmação gradual de que a natureza e o mundo dos homens são regidos por leis naturais e sociais, e que a sociedade é produto da atividade dos próprios homens, não havendo, portanto, desígnios divinos na criação e evolução da natureza ou da sociedade.

Segundo Lukács, foi na Grécia antiga que, pela primeira vez, o homem tornou-se consciente desse embate entre as concepções antropomorfizadoras e desantropomorfizadoras, ou seja, científica. O pressuposto do desenvolvimento da metodologia científica na Grécia residiria na sua estrutura socioeconômica: a existência de paridade entre os proprietários de terras e de escravos e o fato dessa propriedade ser fundada no pertencimento à comunidade; não havendo a escravidão do tipo que ocorria no Oriente (o Estado como proprietário dos escravos), que impunha regimes tirânicos, a democracia política pôde florescer e se estender ao campo religioso, razão por que pôde haver um desenvolvimento próprio da ciência sem uma interferência decisiva das necessidades sociais e ideológicas da religião; no antigo mundo grego não foi, assim, possível fazer da filosofia e da religião uma só coisa e, muito importante, a religião não logrou formar uma casta separada do povo que fosse detentora exclusiva do saber e da fé e, portanto, também do conhecimento. É a primeira vez, portanto, que a humanidade faz a separação clara do reflexo científico em relação ao reflexo cotidiano e ao religioso.

Lukács destaca que a filosofia grega estabeleceu os problemas decisivos acerca da especificidade do reflexo científico da realidade, sendo que, em muitos casos, também os clarificou; também esclareceu a função social do reflexo científico de estar a serviço da vida, o de sempre regressar à vida para enriquecê-la (p. 153), aduzindo, no entanto, que isto ocorreu com maior envergadura no terreno do conhecimento social, como na ética, do que na metodologia das ciências da natureza, isto porque o modo de produção e reprodução da vida do antigo povo grego impossibilitou a aplicação das leis da natureza então descobertas ao mundo da produção, haja vista que a escravidão acarretava o desprezo social pelo trabalho produtivo. Plutarco cita, por exemplo, que Platão foi violentamente contra as leis da geometria serem usadas para a criação de máquinas produtivas, pois, em seu entender, seria uma humilhação para a geometria a sua utilização prático-mecânica, ao mundo corporal e sensível. Arquimedes só autorizou a utilização prática de suas descobertas científicas para fins militares, de defesa de Siracusa, ou seja, motivado por um superior sentimento patriótico. A consequência desse fato é de que, na Grécia antiga, a ciência não deu uma contribuição efetiva à produção e vice-versa. Isto acarretou o fato de que, nas posteriores etapas de desenvolvimento da filosofia da natureza, haverá a influência decisiva de reflexos antropomorfizadores.

A despeito disto, Lukács assinala que a linha fundamental do pensamento grego antigo é a fundação de uma objetividade real do conhecimento, cuja construção deveria ser feita sem a influência de elementos da subjetividade humana, o que seria atingido através da crítica das ilusões perceptivas dos sentidos, dos paralogismos (raciocínios falsos feitos com boa fé), da imediatez do pensamento cotidiano que produz todos esses erros. Destaca ainda que a filosofia dos pré-socráticos é um ponto de involução na história do pensamento humano neste sentido de ser um esforço de ultrapassagem decisiva da “subjetividade humana, com seus limites, deficiências e preconceitos” (p. 154), com vistas a refletir com a maior fidelidade possível a realidade tal como ela é. O ponto culminante neste desenvolvimento são o pensamento de Demócrito e Epicuro, para quem “todo o mundo fenomênico humano se considera tal como o produto, segundo leis, das relações e dos movimentos das partes elementares da matéria” (p. 154). Os antigos gregos, assim, descobriram o modelo metodológico correto para lograr conhecer a realidade, mesmo que não o tenham aplicado de forma sistemática nos estudos particulares dos fenômenos naturais.

Lukács conclui então que “se se analisam os fundamentos metodológicos conseguidos desde Tales até Demócrito-Epicuro, é possível assentar duas informações básicas: em primeiro lugar, que uma captação verdadeiramente científica da realidade objetiva não é possível mais do que mediante uma ruptura radical com o modo de concepção personificador, antropomorfizador. O tipo científico do reflexo da realidade é uma desantropomorfização tanto do objeto quanto do sujeito do conhecimento: do objeto, ao limpar o seu ser-em-si de tudo o que é aduzido pelo antropomorfismo (na medida do possível); do sujeito, ao fazer com que o comportamento deste a respeito da realidade consista em criticar constantemente suas próprias intuições, representações e formações conceituais para evitar a penetração de atitudes antropomorfizadoras que deformaram a objetividade na captação da realidade. O desenvolvimento concreto será resultado de uma fase posterior; porém, os fundamentos metodológicos estão já assentados na cultura grega: que o sujeito do conhecimento tem que imaginar seus próprios instrumentos e modos de proceder para fazer, com sua ajuda, que a recepção da realidade seja independente das limitações da sensibilidade humana e para automatizar, por assim dizer, o seu autocontrole.” (p. 154)

Lukács destaca que a evolução do pensamento desantropomorfizador na filosofia grega não se deu apenas contra o pensamento religioso, mas também contra o pensamento do cotidiano. Na filosofia posterior à dos gregos, a crítica ao pensamento cotidiano desemboca num idealismo religioso ou semirreligioso; isto porque, contraditoriamente, o paulatino avanço do conhecimento científico, no período que vai do fim da Antiguidade ao fim da Idade Média, é menos capaz de impedir o comportamento cognoscitivo geral antropomorfizador do que a ciência menos desenvolvida da Grécia antiga, o que indica de forma clara que o decisivo, neste problema, foi a diferença da organização social conformadora da polis grega, mais democrática em relação à Europa feudal e cristã da Idade Média; Lukács refere inclusive que Hegel percebeu isso, ao ver uma diferença entre o ceticismo antigo, que critica a antropomorfização do pensar resultante da apreensão da realidade pelos meros sentidos humanos, portanto subordinado à subjetividade do sujeito cognoscente, e o ceticismo moderno, que combate a objetividade do pensamento científico e filosófico que se fez possível pelos avanços do pensamento desantropomorfizador.

Para a filosofia grega, ressalta Lukács, o conhecimento se baseia no reflexo correto da realidade objetiva. No entanto, a questão do reflexo para os gregos não transita da interpretação filosófica da realidade objetiva para o predomínio das questões epistemológicas (teoria do conhecimento); por mais diverso que seja o reflexo da realidade para Platão e Aristóteles, nem um nem outro nega a sua importância central; ocorre que, como vimos, a própria filosofia grega postula a necessidade de conhecer a realidade em si (essência) que é diversa daquela que percebemos pelos sentidos (fenômeno); para Platão, a resposta ao “como” se chegar à essência das coisas é dada em sua teoria da formação dos conceitos que, iluminando a intuição sensível e as representações, devem refletir da forma mais fiel possível a realidade objetiva.

Quando a filosofia posterior à grega assenta a predominância das questões epistemológicas em relação à elaboração filosófica da realidade objetiva, encontra, nesta teoria dos conceitos de Platão, a base para tal transição, esquecendo que para Platão o conceito é o reflexo o mais próximo e correto possível da realidade objetiva. Ao se esquecer disto, a filosofia se torna idealista, ou seja, as ideias deixam de ser um “mero” reflexo da realidade e passam a ter existência própria, autônoma e, por vezes, superior em relação à própria realidade objetiva. Há uma autonomização e, portanto, uma separação do mundo das ideias em relação ao mundo real.  Portanto, como diz Lukács, “com esta inflexão em direção à teoria do conhecimento se empreende, ao mesmo tempo, o caminho do idealismo.” (p. 160)

Com o idealismo o sujeito cognoscente passa a ter que refletir em sua mente o mundo das ideias, portador das essências das coisas, e o mundo empírico, que compreende a realidade objetiva como simples manifestação fenomênica das ideias. E essa duplicação do reflexo, observa Lukács, constitui um sério risco ao reflexo correto da realidade objetiva, ao aduzir que “a separação entre o mundo ideal e a realidade, a realidade autêntica – metafísica - que Platão atribui ao primeiro, conduz o pensamento humano – como viu Aristóteles claramente desde o primeiro momento e o criticou resolutamente – ao nível já superado do antropomorfismo.” (p. 160)

De fato, Lukács explica que Aristóteles, em sua crítica a Platão, informa que este considera que a essência de uma coisa tem a mesma constituição da coisa que é perceptível pelos sentidos humanos; a diferença está em que uma é eterna (a essência da coisa) e a outra é perecível (a coisa perceptível pelos sentidos). Aristóteles informa que esse caminho conduz ao antropomorfismo e, por conseguinte, à religião, e o explica da seguinte forma: “Assim se fala do homem em si, do cavalo em si, da saúde em si, sem que com isso se tenha nenhuma outra alteração do objeto; igual que quando se afirma a existência dos deuses, porém imaginando-os completamente iguais aos homens. Pois não se tem feito assim mais que predicar aos homens o predicado da eternidade, e naquele outro caso não se tem feito mais que imaginar ideias, iguais aos objetos sensíveis, porém com o predicado da eternidade.” (citado na p. 161)

Assim, para Lukács, “a antropomorfização do mundo das ideias nasce diretamente do fato de que a filosofia idealista atribui à essência uma existência própria junto a – ou melhor dizendo por cima da – do mundo fenomênico. Esta nova existência própria tem que dotar-se, naturalmente, com traços próprios, e como esses traços não são refigurações do mundo material,  o que podem ser senão extrapolações do ser humano?” (p. 161, grifo meu).

E a forma dessa extrapolação do ser humano, de antropomorfização incidente sobre a refiguração do mundo material, tem sua origem no processo de trabalho, onde parte-se da ideia do que se vai construir para poder-se efetivamente construir algo; primeiro o homem imagina a coisa que ele vai construir, a sua forma, os materiais e as ferramentas que vai utilizar, tudo em conformidade com o objetivo final que tem em mente; passa então a realizar o trabalho até dar aos materiais escolhidos a forma final imaginada em sua mente. Esse momento intelectual passa a ser predominante em relação à execução material do trabalho. Aristóteles realizou a clara separação entre a gênese natural (dos objetos da natureza) e a gênese artificial (oriunda do trabalho), sendo que essa clara distinção “[…] possibilita o conhecimento da essência do trabalho e impede, ademais, uma errônea generalização da mesma, a acrítica aplicação de suas categorias à realidade extra-humana.” (p. 162) Assim disse Aristóteles: “Pela arte se origina tudo aquilo cuja forma está previamente na alma… assim vai procedendo o pensamento até chegar à última condição que pode produzir um mesmo (uma coisa, ou no caso do exemplo de Aristóteles, a saúde); o movimento que sai deste ponto e que leva à saúde se chama então uma produção. Assim resulta que, em certo sentido, a saúde se origina da saúde, uma casa se origina de uma casa, a casa material de uma casa imaterial. Pois a arte do médico e a arte do construtor é a forma da saúde no primeiro caso, e da casa no segundo.” (p. 161/62)

Lukács diz que é essencial ao trabalho que as propriedades da matéria apareçam ao trabalhador como possibilidades diante da consecução do objetivo a que ele se propõe no processo do trabalho; essas possibilidades são concretas e delimitadas; Plotino, epígono de Platão, as considera no entanto de forma abstrata e absoluta, portanto ilimitadas, e as contrasta com o elemento intelectual do trabalho, aqui também considerado de modo abstrato e absoluto e não de modo concretamente determinado, como de fato é no processo do trabalho; com essa abstração e absolutização do elemento intelectual do trabalho (que assim não é delimitado pelas características e propriedades da realidade objetiva), abre-se a possibilidade de pensar que a realidade extra-humana dos produtos naturais (extratrabalho) também pode ser criada “intelectualmente”, ou seja, subjetivamente por um “ser”.

Plotino considera ainda que “o potencial nunca poderia passar à atualidade se o potencial tivesse a primeira classificação, posição, no reino do ente (do criador); […] pois não pode por-si a si mesmo em movimento, por isso que o atual tem que existir antes dele (antes do potencial); […] Pois certamente não engendra a matéria a forma, o sem qualidade a qualidade, nem nasce da potencialidade a atualidade”. Plotino parte da ideia de que o potencial não pode, por si só, gerar o atual; ou seja, o que é meramente potencial, como não tem movimento, não pode, por si mesmo somente, criar o atual, o existente, o que tem movimento; assim ele defende que somente o atual, o já existente, pode criar um outro atual, um outro existente; como ele toma como modelo de criação o processo do trabalho e, por isso entende que o momento intelectual (a prévia ideação separada, autonomizada da realidade objetiva) é o princípio criador necessário para a gênese de algo, ele defende que esse momento intelectual é já atual, ou seja, põe e é movimento, sendo pois também causa do próprio movimento; as ideias, portanto, são a causa do ser e do devir do mundo material (idealismo objetivo).

Vê-se aqui que Plotino considera o princípio criador (o elemento intelectual do trabalho) como um momento superior em relação ao que se produz ou ao momento da execução prática do trabalho, que ele nem considera em seu raciocínio. Lukács informa que tal perspectiva de Plotino e do idealismo objetivo grego em geral não decorre pura e simplesmente da pura projeção abstrata do processo do trabalho à gênese do mundo natural, mas também de um condicionamento social decisivo do modo de produção escravista da época: o forte desprezo pelo trabalho, sobretudo o físico. Isto teve a consequência filosófica de imprimir à relação entre o mundo ideal e o mundo fenomênico uma sujeição hierárquica deste último ao primeiro, ou seja, aquilo que cria (a essência, a ideia) é superior ao que se produz ou à execução do trabalho no plano material; Lukács diz que isso não decorre necessariamente do idealismo filosófico, tanto que, em Hegel, sob o influxo já de relações capitalistas de produção, uma parte do que é objetivamente criado (as ferramentas, os instrumentos de trabalho) são consideradas superiores à satisfação das necessidades humanas (aos fins do trabalho, à prévia ideação), isto porque as ferramentas são expressão do domínio do homem sobre a natureza, são duradouras, enquanto a satisfação das necessidades do homem refletem a sua dependência da natureza, sendo o gozo humano passageiro e logo esquecido.

Lukács arremata que “o idealismo objetivo da Antiguidade que, em seu mundo ideal, convertia a essência, separada e independentizada do mundo fenomênico, em fundamento real da realidade, não tinha mais saída possível que a de conceber essa causação, assim estatuída, de um modo antropomorfizador, mitologizador, como “processo de trabalho” da gênese do ser e do devir do mundo, embotando consequentemente a tudo o que havia conseguido a anterior filosofia em relação à desantropologização do conhecimento e a sua fundamentação como ciência.” (p. 162/163)  

Esta hierarquia entre o mundo ideal (superior) e a realidade material (inferior) teve forte influência no pensamento posterior. Diz Lukács que a “involução da concepção do mundo no sentido de um novo antropomorfismo, fenômeno que começa com Platão, determinou o destino do pensamento científico na Europa durante quase um milênio, produzindo a queda no esquecimento das antigas conquistas” (desantropomorfizadoras) (p. 164).

Assim, ocorre que nesse novo antropomorfismo há um movimento para garantir que o pensamento desantropomorfista se circunscreva à pesquisa científica particular, inclusive à sua metodologia, incorporando assim as conquistas científicas de campos específicos, enquanto que a investigação das causas últimas, de fundo, de visão e de concepção de mundo, esteja sob controle do pensamento antropomorfista, sobretudo o da religião. Isto também ocorreu no Oriente, sendo que neste, em razão da existência de uma casta de sacerdotes que monopolizava o saber, não floresceu o pensamento desantropomorfista típico da filosofia grega anterior a Platão.

Há ainda um outro importante aspecto do neoplatonismo que Lukács observa em Plotino: o mundo ideal é substantivado mas dele se exclui o devir do mundo fenomênico e a quantificação da realidade material. De fato, Plotino afirma sobre o mundo ideal: “a propósito da substância inteligível e dos correspondentes gêneros e princípios” há que supor uma hipostasia inteligível, como algo que é verdadeiramente e é um em grau supremo, a saber, sem o devir dos corpos e a percepção e as dimensões sensíveis”. Mas Plotino também postula, como vimos, um mundo existente caracterizado pela suprema atualidade (o que tem movimento) contraposta à mera potencialidade da matéria, “captado numa imediatez que é sensível, não sensível e suprassensível, e concebido como essência pura, como substância única e força motora da realidade propriamente dita.” (p. 165) 

Para captar esse “mundo essencial” Plotino se vale da noção de “intuição intelectual”, que toma da ciência momentos – deformados – da desantropomorfização. Isto porque a realidade, captada pela sensibilidade imediata e sem a consideração do devir e da quantificação do real (objeto da matemática), não pode “conceituar-se com os meios normais do pensamento” que, por sua vez, para serem desantropomorfizadores, não podem prescindir da “indispensável abstração quantificadora e da captação das leis do devir”. Mas não só por isso, defende Lukács. É que a captação desantropologizadora da realidade material pressupõe a apreensão mais pura do objeto em si, “com a maior eliminação possível das propriedades da receptividade humana, enquanto uma ‘realidade inteligível’ platônica está indissoluvelmente vinculada à natureza do homem como homem”, ou seja, à subjetividade humana (p. 166). A inteligibilidade aqui é mais orientada para o próprio sujeito do conhecimento do que para o objeto. O momento predominante é a antropomorfização em relação à desantropologização, o que é reforçado pela impossibilidade de se obter um reflexo correto da realidade material ao se fazer a abstração do processo do devir e da sua característica de poder ser quantificada. Essa impossibilidade, por seu turno, reforça o referido viés antropológico platônico no processo de obtenção do conhecimento.

Esse modo de pensar cria o postulado de se “levantar acima do nível antropológico do homem e, simultaneamente, preservar esse nível – depurado, e até conduzi-lo a si mesmo mediante essa purificação”. Nisso Lukács identifica o parentesco do neoplatonismo com a religião: como não há a apreensão das verdadeiras legalidades que operam na realidade objetiva, da essência por trás da aparência no sentido do autêntico materialismo, o homem mantém-se na esfera da cotidianidade caracterizada pela união imediata de teoria e prática;  mas a verdadeira realidade, para o platonismo, é o mundo ideal das essências únicas, puras e eternas, deste modo faz-se necessário elevar-se deste nível da cotidianidade para se atingir o verdadeiro conhecimento. Essa elevação se faz mediante a eliminação da realidade objetiva do que não é puro, único e eterno, ou seja, das leis do devir e da quantidade. Após tal purificação, retorna-se à vida cotidiana em cuja esfera há um abandono do normal comportamento humano diante da realidade: “como o objeto (a realidade inteligível, o mundo ideal) é mais que humano, também o sujeito tem que levantar-se por cima de seu próprio nível para ser capaz de recebê-lo” (fl. 166). Deste modo, o homem oscila entre o pensamento cotidiano e o pensamento que tem por objeto o sobre-humano, o transcendente à sua própria realidade humana.

Lukács entende que, desse modo, as doutrinas das ideias (idealismo) e da religião entendem que o homem só encontra a sua essência (ou a alma humana só encontra a si mesma) deste modo antropomorfizador e que para tais doutrinas, portanto, o pensamento científico desantropomorfizador leva à desumanização do homem, ao perder-se de si mesmo; que a desdivinização, a dessacralização do mundo é um real perigo para o ser-homem do homem, para a integridade humana, aduzindo que, embora esta conclusão já está presente nos neoplatônicos, só atinge seu pleno desenvolvimento na Idade Moderna, como por exemplo em Pascal.             

Na verdade, para Lukács tal conclusão é falsa, pois de fato ocorre o contrário: “a desantropomorfização a que leva a cabo a ciência é um instrumento do domínio do mundo pelo homem; é um passo à consciência, uma elevação ao nível do método daquele comportamento intelectual que apenas se inicia com o trabalho, separa o homem do animal e lhe ajuda a fazer-se homem. O trabalho e a forma consciente mais alta nascida dele, o comportamento científico, não é pois somente um instrumento do domínio do mundo dos objetos, mas também, por isso, um meio indireto que, pelo descobrimento cada vez mais rico da realidade, enriquece o homem mesmo, lhe faz mais completo e humano do que seria sem ele.  Ao contrário, a elevação por cima da cotidianidade, no sentido da intuição intelectual e da religião, parte da ideia de que o núcleo humano é para o homem mesmo tão transcendente como o mundo ideal ou a “realidade” religiosa em relação ao mundo objetivo, ao mundo terreno. Todos os métodos propostos por essas tendências, desde a doutrina do eros, até a ascese, o êxtase, etc., tendem a despertar esse desejo do homem de transcender a si mesmo, e a contrapor tal desejo de forma rude, excludente, hostil e recusatoriamente ao homem real” (p. 167).

Lukács destaca que a criação desse mundo ideal, transcendente, empobrece o homem porque nesta criação não há a apreensão das leis que regem a realidade objetiva, não havendo, por conseguinte, o aumento do domínio do homem sobre o seu mundo concreto. É uma criação que não aumenta as capacidades do homem tendo em vista a sua vida real. Isto porque, do ponto de vista objetivo, o mundo ideal ou transcendente é pensado como qualitativamente superior ao mundo humano, ao que é perceptível pelos sentidos e que pode se tornar autenticamente inteligível ao homem (no sentido de poder ser realmente objeto da razão humana), sendo, por isso mesmo, formado por momentos profundamente marcados pelo pensamento antropomorfizante; e do ponto de vista subjetivo, “o homem tem que romper com o seu concreto ser humano, inclusive com sua personalidade moralmente formada, para poder estabelecer um contato fecundo com esse mundo”. (p. 167)

E para Lukács a verdadeira ética é aquela que mantém íntegra a personalidade do homem como tal, como ser concretamente existente, sensível, socializado, com uma práxis referida ao aumento de suas próprias capacidades em suas trocas com outros seres humanos e com a natureza, num autêntico vínculo com a sua humanidade que é necessariamente desantropomorfizante em relação aos objetos desse mundo concreto. Ele diz que “precisamente neste ponto apresenta, ao contrário, uma ruptura (com a personalidade humana) o momento subjetivo daquele ascenso ao mundo ideal: pois inclusive o ser humano eticamente realizado é, em comparação com o sujeito digno e capaz de intuição intelectual do mundo das ideias, algo meramente terrenal, material, hierarquicamente baixo” (p. 167) Há uma desvalorização, então, da personalidade verdadeiramente humana. Isto também ocorre pelo fato de que o mundo ideal ou a religião impõem exigências abstratas ao homem que ultrapassam os limites de sua própria condição humana, o que lhe desvia do caminho de “superação concreta daqueles momentos do homem que lhe atam à superfície da cotidianidade e lhe impedem explicitar com suas próprias forças o essencial de si mesmo” (p. 167)

Para o filósofo húngaro é um desenvolvimento necessário que as correntes éticas que se fundam na intenção de explicitar o núcleo humano imanente do homem utilizem conceitos e descrições cientificamente objetivas, desantropomorfizadoras. Reversamente, “a ultrapassagem abstrato-transcendente do humano, teorética e praticamente generalizado, tem que levar a uma aproximação a – ou até uma realização de – usos, ritos etc., mágico-religiosos”, numa predominância dos reflexos antropomorfizadores (p. 167).


Sávio Bastos

Membro do Gposshe