terça-feira, 21 de julho de 2020

Entrevista com o camarada Rui Holanda


O GPOSSHE entrevistou uma icônica personagem da luta dos trabalhadores de nosso estado, o camarada Rui Holanda, que atuou no movimento popular, camponês e sindical, e se notabilizou pela fidelidade aos princípios revolucionários e pela intrepidez nas ações que dirigiu ou das quais participou, no embate de classes contra o Estado burguês.

Sua integridade moral o credenciou para gerir as finanças de diversos movimentos nos quais teve participação. E a exemplaridade de sua conduta, em cada um deles, o fez referência também nessa esfera da luta política.

Ele vivenciou o ressurgimento dos movimentos sociais em nosso país, após a ditadura militar, e a decrepitude daqueles, em função da política de conciliação de classes implementada por suas direções ao longo dos últimos 30 anos.

Caracterizando-se mais como agitador do que organizador ou propagandista, ele usa de refinada ironia para expressar sua oposição ao poder do capital e aos que lhe dão sustentabilidade política.

Aos 80 anos, o camarada Rui continua firme na esperança de que a unidade e luta dos trabalhadores no mundo inteiro resulte na destruição do capitalismo e na edificação da sociedade socialista.

 

GPOSSHE: Camarada Rui, como você ingressou no movimento da classe trabalhadora?

 

Rui Holanda: Embora minha revolta  contra as três colunas do “capetalismo” – a divisão de classe, a extração de mais-valia e a propriedade privada dos meios de produção – tenha se manifestado desde a juventude, foi somente a partir da nona década do século passado que dei os primeiros passos na luta revolucionária, até o meu ingresso no aguerrido e competente PLP (Partido da Revolução Proletária).

 

GPOSSHE: O camarada teve uma participação nos movimentos sociais. Quais foram eles?

 

Rui: Sim. Antes mesmo de minha efetiva participação no PLP, muitas lutas foram por nós organizadas e dirigidas, através dos movimentos populares e sindicais, isso nos anos 1970, 1980 e 1990, quando aconteceram centenas de saques em grandes mercantis, diversas ocupações de solo urbano (dos sem-teto) e rural (dos sem-terra). As organizações de que participamos, nos períodos aludidos, em função das quais foram travadas os principais embates contra o Estado burguês foram: Conselho de Moradores da Granja Portugal (da qual éramos presidente); União das Comunidades da Grande Fortaleza; MST (Movimento dos sem-terra); MLT (Movimento de Luta pela Terra); sindicato de trabalhadores rurais de Itapiúna, Capistrano de Abreu, Madalena, Itatira, Pentecoste, Itaitinga, Chorozinho e Choró-Limão.

Dentre as várias lutas de que participamos, as que mais repercutiram foram os saques em redes de supermercados de âmbito nacional, saques estes acontecidos com maior força justamente no período da grande seca de cinco anos, que se deu entre 1979 a 1983, quando foram mortos 3,5 milhões de nordestinos de fome ou de doenças relacionadas à desnutrição crônica e aguda. Tudo por causa da situação de abandono a que as populações pobres foram submetidas pelos genocidas governantes da época. O livro Genocídio Nordeste – da insuspeita Pastoral da Terra – conta muito bem essa terrível matança de brasileiros.

Mas no setor de ocupação de áreas urbanas, uma teve maior destaque, devido à magnitude do patrimônio “esbulhado”: foi a ocupação do Conjunto Jardim Castelão, com 462 casas, situado em frente ao famoso cemitério Parque da Paz e próximo ao não menos conhecido aterro do Jangurussu.

A proprietária do Conjunto era a riquíssima imobiliária Terra que, com a ocupação ocorrida em 2/5/1986, se via a braços com sérios problemas junto a bancos e órgãos estaduais e federais. O evento em questão ocupou a grande mídia por muito tempo e serviu de estímulo para muitas outras ocupações promovidas pelos sem-teto.

 

GPOSSHE: O camarada foi vítima da repressão seletiva, promovida pela polícia política do Estado contra as lideranças dos movimentos sociais?

 

Rui: Devido à nossa participação e incentivo às lutas no período, que aconteceram não só em Fortaleza, mas em vários municípios do interior cearense, acabei por ser identificado como um dos principais articuladores dos saques, das ocupações de terras urbanas e rurais, além de outros tipos de pressão ao poder público burguês: acampamentos, invasões de armazéns da COBAL e de cooperativas. Em razão disso, fui detido e preso pelas polícias civil, militar e federal, tendo sido até mesmo torturado pela famigerada PF.

É cabível reconhecer que, durante muito tempo, a burguesia e seus acólitos governamentais não tiveram sossego, mas a repressão se tornou mais intensa, na medida que as ações que realizávamos recrudesciam e as formas de luta se tornavam mais ousadas, a ponto de, em certa altura, a ordem dada aos órgãos repressores ser; “Se pegar, mata.” Por isso tive que fugir e me esconder por dois anos nos grotões do interior mato-grossense.

 

GPOSSHE: Como foi a atuação do camarada no PLP?

 

Rui: No PLP, atuei na organização clandestina do partido, e realizamos ações que surpreenderam a própria esquerda em nosso estado, sendo uma delas a ocupação de uma área de proteção ambiental, no município de Itaitinga, onde fundamos o sindicato de trabalhadores rurais do município. Uma outra foi um saque a uma sede de uma rede de supermercado nacional em Fortaleza.

Eu era responsável pela autodefesa nas ocupações rurais que realizamos e fui escolhido para gerir as finanças dos acampamentos. Inclusive organizei uma bodega comunitária em um assentamento que foi conquista de uma de nossas ocupações. Ela se tornou referência para outros assentamentos, inclusive.

Emprestávamos também eventual apoio às lutas populares e às greves da classe trabalhadora em Fortaleza.

 

GPOSSHE: Como o camarada avalia a atual situação da classe trabalhadora em nosso país?

 

Rui: Infelizmente, devido ao minguado grau de consciência de nosso povo, aliado ao imutável oportunismo da nossa esquerda conciliadora, as lutas foram esmorecendo, esmorecendo... A ponto de hoje não se ver mais nada em termos de lutas consequentes, quer políticas, quer comunitárias, quer sindicais.

E o PT, principalmente, teve um papel fundamental nessa apatia, nesse desânimo que se abateu sobre a classe trabalhadora deste país, em razão da distância abismal imposta ao povo pela gestão política do Estado por aquele partido que, por 14 anos, esteve em suas mãos, mas não a aproveitou para fortalecer a consciência e a organização de nosso povo. Aqui mesmo, no Ceará, vemos a política do Camilo “Santanás”, que atende fundamentalmente aos interesses da plutocracia.

 Dizem que reconstruir é muito mais difícil do que construir, e  a premissa é a de que, devido aos imensos erros do passado, será muito mais difícil recolocar os trabalhadores nos trilhos de sua libertação, rumo à nova ordem social livre da opressão, exploração e tantos outros sofrimentos a que está sujeita a classe proletária de nosso país.

 

GPOSSHE: Como o camarada caracteriza o atual governo de nosso país?

 

Rui:  É um governo que foi imposto ao nosso povo, por meios fraudulentos e sórdidos e pela ingerência direta dos Estados Unidos, para destruir as conquistas sociais de nosso povo e atender aos interesses dos monopólios daquele país. Ele é, na verdade, a volta dos militares entreguistas ao poder, dentro da democracia burguesa, cujo objetivo precípuo é aplicar as medidas de cunho neoliberal em nosso país e reprimir a classe trabalhadora, se ela ousar se opor a esse objetivo.

De certa forma, ele é um produto dos equívocos da esquerda capitulacionista, que imobilizou os movimentos da classe trabalhadora em nome da governabilidade de gestões a ela ligadas, e cuja consequência foi o descrédito de amplos setores do proletariado em seus próprios organismos de luta.

 

GPOSSHE: E com relação à conjuntura internacional, como o camarada avalia a situação do capitalismo hoje?

 

Rui: Vemos, na verdade, a mesma situação de sempre. Os grandes magnatas que impõem as diretrizes econômicas e políticas para o mundo se esmeram na aplicação de três princípios fundamentais para consolidar seu poder: a eliminação de populações depauperadas em todo o planeta, a destruição dos direitos mínimos da classe trabalhadora e demais explorados e o projeto de bestificação cavalar jumentalizada para idiotizar o povo, para que nunca veja com clareza as causas de sua pobreza, e do sofrimento e humilhações a ela adstritos.

 

GPOSSHE: O camarada ainda acredita na possibilidade de a classe trabalhadora no mundo conseguir destruir o capitalismo e gestar o socialismo?

 

Rui: Sim, claro. O sofrimento contínuo dos trabalhadores vai impeli-los à luta, e esta vai requerendo uma adequação de suas organizações às exigências do embate de classes. A burguesia se impõe também pelos equívocos do movimento do proletariado, mas este vai aprendendo a superá-los e a buscar formas mais exitosas de organização e de luta por conquistas sociais até o momento da conquista do poder político definitivo. Aí então começará o fim da pré-história da humanidade, como citou Marx.

 

Entrevista realizada pelo camarada Maurício Oliveira

Foto: Acervo pessoal Maurício Oliveira cedido ao Gposshe