quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Lukács e a crítica da Reificação: totalidade e consciência do proletariado

 

No capítulo central de História e consciência de classe: “A reificação e a consciência do proletariado”, Lukács se propõe a estudar o fenômeno da reificação da sociedade capitalista e suas implicações sobre a consciência do proletariado. Sua reflexão inicial é sobre o “enigma da estrutura da mercadoria”. Nesse sentido, notadamente, buscará em Marx os fundamentos teóricos para elucidar esse problema como uma questão central e estrutural do sistema capitalista em todas as suas dimensões.

Lukács assinala, que na sociedade burguesa a mercadoria[1] consiste num particular inserido na totalidade das relações sociais capitalistas. Sendo esse particular uma expressão do todo que se manifesta no conjunto das relações reais entre os homens. O fenômeno da reificação é resultado das relações de produção capitalista, ou seja, é o processo pelo qual os produtos da atividade do trabalho humano propriamente dito, se transformam num “universo de coisas”; que torna a relação entre os homens uma relação entre coisas; um sistema “cosificado” independente e estranho aos homens, que os subjuga por suas próprias leis. Desse modo, fundamentado em Marx no que se refere à natureza essencial da “estrutura da mercadoria”, Lukács assinala, portanto, que:

 

Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade fantasmagórica[2] que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens (LUKÁCS, 2003, p. 194, itálico nosso).

 

Esse aspecto fetichista da relação entre os homens com o mundo da mercadoria resulta, portanto, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias (Marx). Essa forma social de relação entre os homens é uma consequência do processo de transformação dos objetos de uso em mercadoria. Uma vez que estes só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalho privado, que se executa independentemente entre si. Nesse sentido, Marx assegura que o conjunto desses trabalhos privados constitui a totalidade do trabalho social. Pois, como os produtores só estabelecem contato social por meio da troca de seus produtos do trabalho, os aspectos fundamentalmente sociais de seus trabalhos privados a parecem somente na esfera desse processo de troca. Ou para dizer de outra maneira:

 

[...], os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtores do trabalho e, por meio destes, também ente os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 148, em negrito nosso).

 

Essa caracterização elaborada por Marx, sobre a lógica da produção social da mercadoria permite à Lukács chamar a atenção para os problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da mercadoria: 1) o fetichismo da mercadoria como forma de objetividade e 2) o comportamento do sujeito frente a esse fetichismo. Somente a partir da compreensão dessa dualidade é que conseguimos ter uma visão transparente dos problemas “ideológicos do capitalismo em declínio”. É importante destacar aqui, que o fetichismo da mercadoria é um processo peculiar da nossa época, ou seja, do capitalismo moderno, diz Lukács. Pois, como todos sabem o intercâmbio de mercadorias e as relações comerciais subjetivas e objetivas já existiam desde épocas remotas. Portanto, a questão proposta por Lukács é saber em que medida, a troca de mercadorias no capitalismo é capaz de influenciar o comportamento da vida social em sua totalidade.

Nessa perspectiva de análise, Michel Löwy (2008b), afirma que a “teoria lukacsiana da reificação” em História e consciência de classe é rigorosamente “fundada no materialismo histórico” e, nesse sentido, supera criticamente o legado do romantismo anticapitalista para compreender de forma científica a totalidade da vida em sociedade:

 

É claro que Lukács parte de O capital de Marx, de sua análise do fetichismo e da coisificação, ao nível do processo de produção; mas ele vai além da esfera propriamente econômica, para abordar o conjunto da vida social, nas suas manifestações políticas, culturais etc., à luz do fenômeno da reificação. Ele tenta inserir a contribuição da sociologia alemã nestes dois níveis (econômico e social), nos seus aspectos convergentes ou complementares com a problemática marxista (LÖWY, 2008b, p. 72, itálico no original).

 

No sistema capitalista, a mercadoria transforma-se num elemento universal que “conforma” a sociedade nos seus diversificados graus e âmbitos. Os problemas enfrentados por Lukács, no que diz respeito, a influência da estrutura mercantil dominante nos “os hábitos modernos de pensamento” (como na consciência do proletariado), não podem ser concebidos como uma mera questão quantitativa. Por isso: “A diferença entre uma sociedade em que a forma mercantil é a dominante que influencia decisivamente todas as manifestações da vida e uma em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferença qualitativa” (LUKÁCS, 2003, p. 195).  A totalidade dos fenômenos objetivos e subjetivos das sociedades em foco assume, em face dessa diferença, aspectos de “objetividade qualitativamente diferente”. No sistema capitalista, o processo de troca mercantil repercute sobre o conjunto da vida social, provocando uma “ação desagregadora”. Portanto, essa ação produz uma mudança qualitativa que brota da dominação da mercadoria.

Sobre essa questão Lukács destaca o seguinte:

 

Mas essa diferença qualitativa entre a mercadoria como uma forma (entre muitas outras) do metabolismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformação da sociedade não se mostra somente no fato de a relação mercantil como fenômeno isolado exercer no máximo uma influência negativa sobre a estrutura e a articulação da sociedade, mas no fato de essa diferença reagir sobre o tipo e a validade da própria categoria (LUKÁCS, 2003, p. 196).

 

A forma mercantil configura uma forma universal, que submete a totalidade da sociedade ao jugo do valor de troca.  “[...] esse desenvolvimento da forma mercantil em forma de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade surgiu somente com o capitalismo moderno”, sustenta Lukács (2003, p. 197, itálico no original). E com o desenvolvimento cada vez mais complexo da forma mercantil, se tornou mais insólito e difícil o desvelamento do mundo reificado. A lógica do controle do processo de produção capitalista é obscurecida pela relação de dominação do capital sobre o trabalho. Com efeito, a essência do modo de produção capitalista é ocultada pela ideologia burguesa, pelos seus mecanismos teóricos de interpretação do mundo como a “economia política vulgar”, por exemplo, que afirma ser o sistema capitalista um modo de produção com “leis fixas e eternas”, “natural”, “imutável”. Lukács, porém, assinala que:

 

[...] é somente como categoria universal de todo o ser social que a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica. Apenas nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destrutivos, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo (LUKÁCS, 2003, p. 198, itálico nosso).

 

O caráter “fantasmagórico” da forma mercantil deve ser compreendido, afirma Lukács, sobretudo, como uma relação social objetiva e subjetiva. A mercadoria como um produto do trabalho social, comporta determinações múltiplas, que expressa uma totalidade de relações diversas; uma totalidade de conexões. Desse modo, a universalidade da forma mercantil condiciona, tanto o aspecto subjetivo como o objetivo, uma abstração do “trabalho humano que se objetiva nas mercadorias”. Trata-se aqui de constatar que o “trabalho abstrato” em sua igualdade formal, mensurável, em relação ao “tempo de trabalho socialmente necessário”, a “divisão capitalista do trabalho” e que existe concomitantemente como produto e condição do processo de produção capitalista, surge somente no decurso do desenvolvimento da forma mercantil.

Dessa maneira, destaca Lukács que:

 

Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador [...], o processo de trabalho é fragmentado, numa proporção continuamente crescente, em operações parciais abstratamente racionais, o que interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente (LUKÁCS, 2003, p. 2001).

 

Enquanto a mecanização e a racionalização do processo produtivo avançam e se intensificam, o tempo de trabalho socialmente necessário que elabora a base do “cálculo racional”, é desconsiderado como “tempo médio e empírico” para se representar como uma quantidade de trabalho objetivamente mensurável, que se contrapõe ao trabalhador sob o aspecto de uma objetividade dada, instituída. Compreendemos assim, afirma Lukács, que a unidade do objeto, do produto enquanto mercadoria não converge mais com sua “unidade como valor de uso”. Como corolário da fragmentação do produto do trabalho, o homem, o trabalhador, o sujeito social também é submetido à fragmentação. O homem nesse sentido, “não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como verdadeiro portador desse processo” muito menos domina a totalidade do processo produtivo, do contrário, “ele é incorporado com parte mecanizada num sistema mecânico que já se encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e cujas leis ele deve se submeter” (LUKÁCS, 2003, p. 203-204, itálico nosso).

Nesse processo, o tempo é abstrato, mensurável, quantificável. As condições da produção se transformam. A especialização e a fragmentação na esfera científica e mecanizada do produto do trabalho e os próprios sujeitos do trabalho, portanto, são “igualmente fragmentados de forma racional”. A objetivação da força de trabalho do produtor; o trabalhador em face do conjunto de sua personalidade torna-se “um espectador impotente” com relação aos fatos que circunscrevem a sua própria existência (uma consequência de uma relação social já estranhada). O processo de reificação do trabalho é também, portanto, o processo de reificação da consciência do proletariado e do conjunto de suas relações sociais.

A separação do produtor dos seus instrumentos de produção e, a consequente, expropriação do produto do trabalho pelo capitalista, resultou na desagregação e dissolução da unidade de produção originária. Essas foram as condições impostas pelo modo de produção capitalista moderno, que passou a substituir as relações de produção originárias (que eram mais transparentes diz Lukács), pelas “relações racionalmente reificadas”. De um modo geral, a consequência mais evidente do predomínio das relações mercantis (a forma mercadoria) sobre o conjunto da sociedade moderna é, a reprodução da desumanização plena do homem.

A reificação como um fenômeno fundamental, geral e estrutural da sociedade burguesa penetrou, decisivamente, na estrutura da consciência. Assim, constata-se o fato de que: “[...] Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econômica unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciência – formalmente – unitária para o conjunto dessa sociedade” (LUKÁCS, 2003, p. 221). Essa estrutura é exemplificada por Lukács, no caso do jornalismo, como o traço mais grotesco, em que exatamente a própria subjetividade, “o saber”, “o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato”, deslocado tanto da personalidade do proprietário como da “essência material e concreta dos objetos em questão”, e que é posto em movimento de acordo com sua legalidade específica (Idem, p. 222). Para o filósofo marxista, a falta de convicção dos jornalistas e a “promiscuidade” de suas experiências representam o ápice da reificação capitalista. Pois: 

 

A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma objetivação fantasmagórica não pode, portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo exterior (LUKÁCS, 2003, p. 222-223, aspas no original e itálico nosso).

 

Essa forma de objetivação do trabalho alienado submete todas as relações humanas, a um nível progressivo de fragmentação, desagregação, desumanização e mercantilização. De uma maneira geral, a vida social está inteiramente submetida à racionalização da produção capitalista. Com esse processo, chama atenção Lukács, perdeu-se toda a imagem da totalidade. A totalidade tratada como uma unidade entre a parte e o todo (enquanto um princípio constitutivo do método dialético) e, que apreende a realidade cognitivamente, teria sido despedaçada pela força da especialização do trabalho.

Portanto, no que diz respeito à reificação, “isso significa que as diferentes classes sociais têm um método cognitivo distinto, e uma capacidade de compreensão diferente do fenômeno, de sua gênese e de sua estrutura”. Dessa maneira, a capacidade ou incapacidade de um economista transpor a imediaticidade da forma reificada das relações socioeconômicas da vida cotidiana, não é produto de suas qualidades intelectuais próprias, mas da perspectiva de classe que sua compreensão da realidade objetiva se vincula, pois, “para Lukács uma ciência que se situa do ponto de vista da burguesia não pode trazer à luz as formas reificadas”, destaca Löwy (2008b, p. 77).

 Por Antonio Marcondes

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REFERÊNCIAS

LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2008b.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, Karl.  O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.



[1] “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel], isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção” (MARX, 2013, p. 113).

[2] De acordo com Marx: “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais [...]. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Idem, p. 147, itálico nosso).