segunda-feira, 8 de março de 2021

Essa é para os fundamentalistas: de que Bíblia estamos falando?

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Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO

 

A religião desempenha importante função na vida de bilhões de seres humanos no mundo. Oriundas de diversas partes do globo, as religiões são tão diversas quanto as culturas existentes. A fé em deuses ou forças cósmicas dá aos crentes um senso de propósito e significação. Doutrinas e textos sagrados dão orientação moral. Líderes religiosos oferecem instrução, padrões de comportamento e tornam-se, inúmeras vezes, modelos.

O marxismo, enquanto humanismo radical, é materialista e ateu, portanto, não é imparcial diante de um fenômeno tão rico e complexo. Filosoficamente, o materialismo histórico identifica na religião características alienantes e possibilidades emancipatórias. Do ponto de vista político, é tradição do movimento operário a afirmação da II Internacional Socialista (1889-1916): a religião é assunto privado. Daí decorre a intransigente defesa pela esquerda revolucionária do caráter laico das políticas públicas.

Marx[1] afirmou acertadamente que os seres humanos, sob formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, formas ideológicas, tomam consciência do conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e o entrave das relações de produção, levando-o até o fim. Independentemente da veracidade das afirmações religiosas, elas cumprem uma função social, são formas ideológicas que explicam e tornam coerentes a práxis de indivíduos imersos numa teia de contradições.

Atualmente, o fundamentalismo de perfil cristão cumpre um papel reacionário no contexto da luta de classes no Brasil. Uma parcela do clero, católico e protestante, alia-se na defesa das formas mais grotescas de exploração, opressão e dominação política. Para isso, agitam a Bíblia como algo definido e fechado. Será?

De fato, a Bíblia, nas mãos dos fundamentalistas, tornou-se um “ídolo de papel” opressor na vida dos fiéis das classes trabalhadoras. É comum, nas igrejas e correntes fundamentalistas, a omissão de dados históricos importantes. O conhecimento da história do texto bíblico tornaria os fiéis mais críticos e menos manipuláveis. É sabido, que a Bíblia, ou seja, a unidade entre Antigo Testamento e Novo Testamento, é uma criação cristã. Neste texto, vamos nos ater apenas, de forma aproximativa, ao Antigo Testamento presente nas escrituras judaicas e nas bíblias cristãs.

Primeiro, o que conhecemos do Antigo Testamento é aquilo que as classes dominantes de cada época decidiram transmitir, desde os sacerdotes hebreus, que deram início à elaboração da doutrina monoteísta, até as estruturas religiosas atuais. Isso no contexto de profundas contradições e disputas.

Segundo, há diversas versões do Antigo Testamento que espelham a confusa realidade de textos considerados inspirados e reconhecidos. Por exemplo, católicos acreditam que são verdadeiros os 46 livros do Antigo Testamento. Já o Cânone Hebraico aceita somente 39, não reconhecendo como de inspiração divina textos como: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiastes, o primeiro e o segundo livro dos Macabeus e mais algumas passagens de Ester e de Daniel. As igrejas protestantes aderem fundamentalmente ao Cânone Hebraico. Enquanto cristãos coptas consideram canônicos livros que católicos romanos, protestantes e judeus não aceitam, como o Livro de Enoque e o Livro do Jubileu.

Para complicar mais, boa parte do Antigo Testamento encontrado nas bíblias que possuímos foi redigido, fundamentalmente, baseando-se na Bíblia Stuttgartensia, versão impressa do Códice Massorético de Leningrado. Porém, a Igreja Ortodoxa Grega utiliza o Texto dos Setenta (Septuaginta), escrito em Alexandria no Egito, em grego, entre os séculos III e I a. C. Esse Antigo Testamento grego apresenta variações em relação à versão Massorética, algumas muito importantes, porque contêm diferenças consideráveis no significado do texto. Ela representou a base para os “pais da Igreja” nos primeiros séculos, até a Igreja Católica Romana ter decidido o Cânone Hebraico. Os rabinos negam o Texto dos Setenta, só reconhecendo os livros considerados de acordo com a Lei: escritos na Palestina, em hebraico e no período anterior a Esdras (século V a. C.).

Ainda tem mais. Se formos ao território dos samaritanos, na Palestina, veremos que a inspiração divina não está nos códices redigidos pelos massoretas, mas na Torá (Pentateuco) Samaritana, que apresenta inúmeras variações em relação à versão Massorética. Para completar, há a Peshitta, a Bíblia Síria – reconhecida por cristãos maronitas, nestorianos, jacobitas e melquitas –, que, por sua vez, também é diferente da versão Massorética.

Diante disso, é fácil perceber que, antes mesmo das traduções, existem inúmeras  bíblias (Antigo Testamento) e que todas elas, em sua riqueza de variações, são declaradas indiscutivelmente verdadeiras por comunidades que vivenciam suas tradições. Isso demonstra a diversidade do mundo cristão que levanta um dedo acusador contra os fariseus do fundamentalismo que procuram utilizar politicamente uma experiência religiosa alienada à serviço da dominação do imperialismo e da burguesia interna. Daí seu ódio à ciência, ao sistema educacional público, aos oprimidos e explorados, ao mesmo tempo que apoiam o governo Bolsonaro e defendem um regime político obscurantista-ditatorial. Por isso, o clero fundamentalista de extrema direita é contra o reconhecimento da diversidade religiosa (ecumenismo) e a unidade dos trabalhadores/trabalhadoras religiosos na luta pela superação do capitalismo. Na verdade, somente o socialismo garantirá ampla liberdade de crença e consciência na construção de um mundo novo.



[1] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.


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