quarta-feira, 31 de março de 2021

A fraude de 31 de março

 

Frederico Costa

Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO


A "Ordem do Dia Alusiva ao dia 31 de março de 1964"[1] do Ministro de Estado da Defesa, General Walter Souza Braga Netto, reacende velhos mitos superados por um simples estudo dos fatos históricos. 

Comemorar o golpe militar-empresarial de 1964, no Brasil de 2021, é algo, no mínimo, esdrúxulo. 

Esclareço, primeiramente, com alguns exemplos dos militares nas atuais estruturas de poder.

Temos no Executivo, um capitão da reserva que tem como ídolo um torturador, acompanhado por um general pouco afeito a negros e povos originários, que estão levando, com seus cúmplices institucionais, o país ao aprofundamento da crise econômica, social e sanitária. Há mais de 11 mil militares no governo Bolsonaro, tanto da reserva como ativos[2], para fazer o que não sabe? A recente gestão do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde trouxe um legado de caos, omissões e explosão de mortes por Covid-19[3]. Outro fato trágico, foi a queima de recursos públicos para a compra de picanha, cerveja, bacalhau e uísque para militares[4].

Apesar desses indícios de incapacidade de gestão pública para as grandes maiorias, ainda há quem defenda um regime militar contra as nossas parcas instituições democrático-burguesas. Daí a necessidade de desmascarar fraudes como a comemoração do golpe de 1964 e da ditadura militar.

O golpe teve início com o deslocamento de tropas em Minas Gerais, na madrugada de 31 de março de 1964. O chefe da IV Região Militar, general Olímpio Mourão Filho (1900-1972), de passado integralista[5], justificou o movimento contra o governo constitucional de João Goulart alegando que o presidente tinha abusado do poder e devia ser afastado. 

No dia 1º de abril, “Dia da Mentira”, o golpe consolidou-se, porque setores das forças armadas fiéis à legalidade democrática não se articularam para sair em defesa do governo nem houve uma resposta operário-popular efetiva para conter os golpistas. 

No dia 2 de abril, foi dado o verniz político-institucional ao golpe.


[...] violando todas as normas constitucionais (uma vez que o presidente da República estava no território nacional e não renunciara), o presidente do Senado Federal, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência da República e o lugar de Jango foi usurpado por Ranieri Mazzili [...] O ato violador foi imediatamente aprovado pelo embaixador Lincoln Gordon e, oficialmente, por mensagem do presidente Lyndon B. Johnson, na qual o governo de Washington cumprimentava Mazzili por assumir a Presidência (NETTO, 2014, p. 69).

 

Na verdade, o golpe militar-empresarial de 1º de abril foi contra uma agenda de inclusão social, nacionalismo econômico e democratização política, num contexto histórico de avanço mundial das lutas de libertação nacional, pelos direitos civis, contra as opressões e de ruptura/superação do imperialismo/capitalismo. No Brasil, o governo derrubado não tinha nada de comunista.


Goulart tentou, de maneira corajosa, mas politicamente desastrada, liderar uma coalizão da burocracia estatal, do capital nacional e dos trabalhadores organizados em apoio às chamadas “reformas de base”. Essas reformas deveriam transformar as relações sociais e de propriedade responsáveis pela dependência externa e pela reprodução da pobreza, melhorar a distribuição de renda e riqueza e consolidar uma cidadania mais ampla. O sistema de acumulação proposto incluía o desenvolvimento industrial com base na substituição de importações, a nacionalização dos serviços essenciais, a instauração de controles sobre o capital transnacional e o setor financeiro, o reescalonamento ou não pagamento da dívida externa, a reforma agrária centrada na desapropriação de grandes propriedades “semifeudais” de baixa produtividade, reformas da administração pública e expansão da democracia (SAAD FILHO E MORAIS, 2018, p. 46).

 

No entanto, para as classes dominantes brasileiras, de ontem e de hoje, redução da pobreza, direitos sociais, controle sobre o capital, nacionalização de setores essenciais e maior participação popular nas políticas públicas têm aparência de comunismo. Daí a “Ordem do Dia” comemorando o golpe falar de “amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas”. Mas, não cita o povo, homens e mulheres, trabalhadores do campo e da cidade, pobres, assalariados, remediados, estudantes, intelectuais, servidores públicos, parlamentares, religiosos, burgueses e até militares comprometidos com a democracia, que defendiam a ampliação de direitos e as reformas de bases. O golpe de 1º de abril foi um golpe contra o povo, logo contra a maioria dos brasileiros.


Os dados do Ibope mostram que, às vésperas de ser deposto, em março de 1964, João Goulart tinha boa aprovação na opinião pública das grandes cidades brasileiras, com 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo, e 49% das intenções de voto para 1965. Apenas para 16% dos entrevistados o governo era “ruim ou péssimo”, e 59% eram a favor das reformas anunciadas no Comício de 13 de março (NAPOLITANO, 2014, p. 47).

 

Para piorar, o documento de comemoração golpista ainda afirma que as “Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Bem, a pacificação foi trazida pela onipresença policial-militar, pelo terrorismo de Estado, pelas perseguições, pelos exílios forçados, pela generalização das torturas, pelos desaparecimentos/assassinatos dos dissidentes. O que o regime ditatorial fez, além de roubar os sonhos, projetos e possibilidades de gerações de milhões de brasileiros e brasileiras, foi instaurar um modelo econômico a serviço do grande capital estrangeiro e nacional sobre a superexploração dos trabalhadores. A ditadura militar gerou o agronegócio mantendo o latifúndio. Provocou uma urbanização desenfreada incentivada pelo aumento das desigualdades sociais e da dependência do Brasil aos centros imperialistas, em particular aos Estados Unidos. 

Já as liberdades democráticas que desfrutamos hoje foram frutos das diversas formas de resistência à ditadura militar-empresarial: dos que tombaram nas masmorras, dos que não se calaram, das greves, das passeatas, das ocupações de terra, dos movimentos contra a carestia, das lutas das mulheres, do combate ao racismo, das iniciativas culturais, das organizações LGBTs, das comunidades eclesiais de base, dos grupos de esquerda, do sindicalismo de combate. As conquistas e os direitos não são dádivas das classes dominantes, mas da luta de milhões. O povo organizado derrotou a ditadura militar.

Porém, enquanto militares da ativa ou de pijama continuarem comemorando o golpe de 1º de abril de 1964 e a noite de 21 anos contra o povo brasileiro, as tênues liberdades democráticas atuais continuarão inseguras. Aliás vivemos sob um governo de extrema direita, no contexto de um regime político criado pelo golpe de Estado de 2016, no qual as Forças Armadas tomaram parte e ainda são avalistas. Mas, somos a maioria e os verdadeiros produtores da riqueza. A história, inclusive a mais recente, ensina que por mais limitado que o presente se mostre, o futuro nos pertence.

Ditadura nunca mais. Lugar de militar é no quartel. Nenhuma comemoração do golpe de 1º de abril de 1964.

 

Referências

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura militar brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014.

SAAD FILHO, Alfredo e MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.



[3] https://www.dw.com/pt-br/caos-omiss%C3%A3o-e-explos%C3%A3o-de-mortes-o-legado-de-pazuello-na-sa%C3%BAde/a-56890646

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/alem-de-picanha-e-cerveja-verba-publica-pagou-bacalhau-e-uisque-para-militares/

[5] Foi militante da fascista Ação Integralista Brasileira - AIB, redigiu um roteiro de uma tomada de poder pelos comunistas, o “Plano Cohen”. Nas mãos do governo, o texto foi divulgado e falsamente atribuído à Internacional Comunista como plano real de insurreição, justificando então a adoção de poderes ditatoriais por Getúlio Vargas. As acusações de ter servido à implantação da ditadura pesaram nos anos seguintes, mas foi absolvido num Conselho de Justificação do Exército em 1955.