segunda-feira, 29 de março de 2021

Pandemia da Covid no Brasil: a dimensão histórica do massacre atual

Desenho retratando o interior de um navio negreiro no período da escravidão

Érico Cardoso
Doutorando em educação pela Universidade Estadual do Ceará - PPGE/UECE


    É preciso traçar a dimensão histórica da tragédia atual. Nenhum outro massacre anterior matou tantos brasileiros quanto o atual. Na maior guerra da América Latina, a da tríplice aliança contra o Paraguai, morreram entre todos os exércitos beligerantes, de aproximadamente 300 mil pessoas. Mas se contarmos só o Brasil, foram cerca de 100 mil, porque aqui nós estamos fazendo uma comparação com os mortos pela Covid no Brasil. E alí foram 6 anos de guerra.

    Até hoje, 29 de março de 2021, já morreram 312 mil brasileiros em um ano de pandemia sob o comando de Bolsonaro. Mais do que toda guerra patrocinada pelas classes dominantes da tríplice aliança, e três vezes mais do que a quantidade de brasileiros naquela guerra. Dados quantitativos imensos que todavia não são nem de longe suficiente para revelar a dilaceração e a dor de uma só pessoa que perdeu mãe, pai, filho, irmão, amigo.

    E mesmo esses dados estão subnotificados porque são dados oficiosos, não verificados por uma fonte independente da população que é a principal vítima desse massacre. São os dados do consórcio da grande mídia colhida pelas secretarias de saúde estaduais e na falta de outro levantamento mais preciso. Isso é assim, porque desde o começo o governo federal trata de minimizar a situação, oculta os cadáveres ou escamotear os dados.

    Esse massacre crescente já corresponde ao dobro das mortes em Hiroshima somada as mortes em Nagasaki pelas bombas atômicas.

    Em nenhuma tragédia anterior morreram tantos brasileiros como agora. Nem na maior guerra da história, nem na maior pandemia da história morreram tantos brasileiros como agora.

    Na 2a Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) perdeu 457 soldados na Itália.

    A gripe espanhola matou 50 milhões entre 1918-20, e infectou 1/4 da população mundial. Para efeito de comparação, até agora, a Covid matou menos de 3 milhões (2,7) em todo mundo. A mortandade da gripe espanhola se revela muito maior quando a gente compara as populações. Agora o mundo tem quatro vezes mais habitantes do que naquela época.

    No Brasil, a gripe espanhola matou muita gente, matou 35 mil. Matou até o então presidente reeleito, Rodrigues Alves, um latifundiário escravista. Então a pior pandemia do planeta matou 35 mil brasileiros em 1919. Ora, em julho de 2020 a atual pandemia já havia ultrapassado essa marca. Logo, 35 mil mortos será apenas 10% dos mortos pela Covid no Brasil hoje.

    Então, a primeira conclusão que nós chegamos é que embora essa pandemia, essa tragédia não seja a pior da história mundial, a pior foi, evidentemente, a gripe espanhola, a atual pandemia de Covid se tornou a pior da história do Brasil. Evidentemente, para a nossa geração essa é a maior tragédia vivida, mas de fato essa já é a maior tragédia de toda a história do país, a pior desgraça de toda a história do país desde 1.530, em termos absolutos de perda de vidas.

Mas porque a pandemia se tornou tão mais severa, tão mais mortal?

    Devido a que a população está sendo exposta de forma indefesa ao vírus, as defesas foram retiradas pelo governo e pelo regime em que ele se assenta. O sistema de saúde foi desmontado. Os direitos trabalhistas foram retirados. Os preços dos alimentos, remédios, oxigênio, combustíveis, dispararam. Os leitos foram reduzidos. A vacina não foi adquirida. As informações dadas foram mentirosas e tudo isso provocou essa quantidade histórica de mortes. O governo que supostamente deveria defender seu povo, o desarmou para a guerra e o povo está sendo dizimado como nunca antes.

    Por tudo isso, não é permitido crer que há descontrole sobre a pandemia, mas sim uma orientação claramente voltada para criar o colapso, criar o caos, o desespero, a precarização da vida. Já estamos entrando no estágio Guayaquil, em referência ao que ocorreu no Equador, com as pessoas morrendo no meio das ruas, corpos se empilhando nas casas. Já muitas pessoas no Brasil estão morrendo na porta dos hospitais colapsados. Inclusive, os recém criados "Hospitais de Catástrofe", em São Paulo, já não estão recebendo pacientes que não forem transferidos de outras unidades. Os pacientes que chegam diretamente nesses hospitais não são atendidos, ou seja, já colapsaram os "Hospitais de Catástrofe".

    Pandemias não são novidades no Brasil. Seria tão mais fácil fazer como sempre se fez nas campanhas anteriores, como contra a H1N1, em 2009-2010, por exemplo, há know-how histórico do país e institutos que foram criados para produzir vacinas. Em 2009, o Brasil registrou quase 60.000 casos da doença e 2.146 mortes. Em 2010, o número de mortes caiu para cerca de 100. A vacina contra a gripe H1N1 é aplicada anualmente pela rede pública desde então e 100% das doses são produzidas pelo Instituto Butantã.

    De março a julho de 2010, em apenas três meses, usando as vacinas adquiridas e os novos lotes fabricados pelo Instituto Butantã, o Brasil vacinou 92 milhões de pessoas, ultrapassando com ampla margem a meta em relação ao público alvo. Na atual pandemia, ainda não chegaram a 20 milhões de vacinados, pouco mais de 2% com a segunda dose, ou seja, nada.

    Mas, evidentemente, parece que o objetivo não é salvar vidas, é outro, é oposto, matar. Muitos já levantaram a hipótese que a população está sendo cobaia de um experimento inédito na história.

Como um personagem grotesco como Bolsonaro assumiu o papel de condutor da maior tragédia da história do país?

    Atribuir tamanho feito a Bolsonaro é superestimar sua capacidade de planejamento, articulação e execução. Seria como atribuir o crime exclusivamente ao executor e livrar a cara do mandante. Bolsonaro com todas as suas particularidades é o melhor representante político e herdeiro da classe dominante que mais escravizou homens no planeta. Segundo o Caio Prado Junior, foram 5 milhões de homens escravizados, sequestrados da África.

    A brasileira é a classe dominante que escravizou mais e por mais tempo, três séculos e meios! Mais escravos e por mais tempo em toda a história moderna, ou seja, durante o capitalismo. Por isso o Brasil hoje tem a maior população negra depois da Nigéria. Dentre as atrocidades cometidas contra os negros estava a forma como eram sequestrados e trazidos. Nos navios negreiros, as condições infernais a que foram submetidos os trabalhadores escravizados mataram muitos durante a travessia do Atlântico, foram a antessala da brutal exploração a que seriam submetidos no Brasil, base de um novo ciclo de acumulação de riqueza, baseada no trabalho escravo.

    O golpe e Bolsonaro dentro do processo golpista são instrumentos dessa classe dominante, serva do imperialismo, para estabelecer um novo ciclo de acumulação de capitais as custas dos trabalhadores. Nesse processo, a pandemia foi providencial, serve aos propósitos estratégicos da burguesia e do imperialismo, por mais que formalmente todos declarem que estão tentando combatê-la e por mais que, em certa medida ela prejudique alguns ramos do capital.

    O golpe foi ação de uma frente única de todos os setores dessa classe dominante para livrar-se do governo do PT, retirar direitos conquistados em séculos de luta de classes e aprofundar a exploração do trabalho. Se não fosse o golpe de 2016, o Brasil poderia ter uma vacina própria, o Sistema Único de Saúde não teria sido desmontado antes da pandemia. Só para se ter uma ideia, a Emenda Constitucional 95, vem reduzindo, desde de 2017, quando foi aprovada, em média de 20 bilhões de reais dos recursos necessários para a saúde por ano.

    No orçamento para a saúde de 2020, elaborado em 2019, foram reduzidos 400 milhões de reais em verbas destinadas para vacinas.

    Então, a segunda conclusão é que está se superestimando o medíocre sentado na presidência, que os malfeitos dele foram iniciados no governo anterior e que a maior tragédia da história do país, e ele próprio, Bolsonaro, é uma cepa mais agressiva do regime político estabelecido com o golpe de Estado de 2016, pela classe dominante de quem Bolsonaro é mero testa-de-ferro.