quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A posição de Schopenhauer diante da sociedade e da história

Num texto anterior descrevemos como Schopenhauer tornou-se o primeiro filósofo do irracionalismo burguês e como ele foi um exemplo do escritor que vivia de rendas, fato que lhe permitiu assumir uma posição intelectual de sua livre escolha. Lukács vê nisso alguma semelhança de Schopenhauer com Voltaire que, tendo também independência financeira, pôde adotar uma postura intelectual livremente escolhida. A diferença entre ambos, segundo Lukács, reside em que Voltaire utilizou-se de tal autonomia financeira pessoal para, de forma independente, sem constrangimentos externos, tomar partido intelectual e também político frente a problemas da vida pública, da qual foi um ativo partícipe. Schopenhauer, ao contrário, possui a independência “de um homem teimoso, severamente egoísta, que se serve dela para se retirar inteiramente da vida pública e, principalmente, para, em relação a ela, se ver liberado do cumprimento de todos os deveres[1] De fato, o próprio Schopenhauer afirmou o seguinte: “Pois, ‘eu agradeço toda manhã por não ter de cuidar do Império Romano’[2]  tem sido sempre o meu lema[3], contrapondo-se a Hegel que via na atuação na vida pública, no Estado, uma superior forma de atividade humana. Este desprezo pela atividade política, pelo Estado, não impediu Schopenhauer de deixar seus bens em testamento para “o fundo constituído em Berlim para a assistência aos soldados prussianos que se tornaram inválidos nas lutas ocorridas durante as revoltas e sublevações de 1848-1849 pela manutenção e pelo restabelecimento da ordem legal na Alemanha, bem como aos familiares dos mortos naquela batalha”[4], razão por que Lukács observa que Schopenhauer não desdenhava a atuação estatal voltada para a proteção e garantia da fortuna dos ricos, inclusive da sua própria, em momentos de pânico causado por sublevações populares.

 

Schopenhauer era uma pessoa egoísta no sentido do indivíduo que “se infla até se tornar um fim em si mesmo, absoluto: sua atividade se separa da base social, volta-se para a pura interioridade, cultiva as próprias singularidades privadas e veleidades como valores absolutos.[5] Aqui temos um primeiro elemento do irracionalismo no pensamento de Schopenhauer: a desvalorização filosófica da sociedade, da sociabilidade humana. Nisto ele se difere do burguês do período de ascensão do capitalismo, cujo individualismo econômico, político e cultural constituía uma visão de mundo que conformava as necessidades e interesses da burguesia enquanto classe, com vistas à sua própria emancipação social. A esse respeito Lukács esclarece que “é algo evidente e universalmente conhecido que não pode haver ideologia burguesa na qual o egoísmo não desempenhe um papel importante. Mas enquanto a burguesia, como classe revolucionária, lutava contra o feudalismo e contra a monarquia absoluta, esse egoísmo aparecia sempre intimamente imbricado, embora de modo problemático, com os objetivos progressistas de classe voltados para uma renovação da sociedade.[6]  O individualismo de Schopenhauer é, ao contrário, o encapsulamento do indivíduo em si mesmo bem característico do estágio de decadência política da burguesia que não mais mobiliza o povo para a luta contra as classes reacionárias, contra a nobreza e a monarquia.

 

Já falamos num texto anterior que desde o seu alvorecer o capitalismo industrial provocou várias mazelas sociais. Inicialmente a intelectualidade burguesa considerou tais mazelas como perturbações passageiras e superáveis, sustentando que o capitalismo garantiria por fim a felicidade e o bem-estar da humanidade. Lukács chama esta postura intelectual de apologética direta ao capitalismo. Quando, com o desenvolvimento posterior da economia capitalista ainda no século XIX, foi ficando claro que as contradições sociais não eram transitórias, quando deixou de ser crível que tantos e tão agudos problemas sociais pudessem ser superados, a intelectualidade burguesa passou a sustentar que todos os horrores e misérias da sociedade capitalista eram características imutáveis da vida humana em geral, de todas as sociedades em todas as épocas históricas e que, portanto, não foram causadas pelo fenômeno histórico específico que foi o surgimento do capitalismo industrial. Com isso tornou-se possível a muitos intelectuais a denúncia apaixonada de tudo o que de ruim e de torpe existia no capitalismo sem que tal crítica implicasse num compromisso com uma luta efetiva pela sua superação. Aqui temos um segundo elemento do irracionalismo no pensamento de Schopenhauer: a desvalorização filosófica da história. Tal pensamento não pode deixar de conduzir ao pessimismo mais extremado, já que para ele é absurda e sem sentido uma luta política e social por uma transformação social que por princípio ele entende não ser possível. Lukács qualifica este pensamento como de apologética indireta ao capitalismo posto que, embora benéfico à manutenção do status quo, não faz o elogio direto ao sistema do capital.

 

Neste ponto vale a pena trazer a contraposição de Lukács à desvalorização da sociedade e da história por parte de Schopenhauer:

 

 O pessimismo significa, antes de tudo, uma fundamentação filosófica à falta de sentido de toda ação política, pois essa é a função social desse estágio da apologética indireta (do capitalismo). Para chegar a essa conclusão, o primeiro a se fazer é a desvalorização filosófica da sociedade e da história. Se há um desenvolvimento na natureza, então esse desenvolvimento culmina no homem, em sua cultura (logo: na sociedade), então deriva disso, necessariamente, que até mesmo o sentido da ação mais individual, do modo mais individual de conduzir a vida, precisa estar ligado de alguma forma a esse desenvolvimento da espécie humana. Por mais que essa ligação possa se apresentar distorcida idealisticamente, por mais que ela ainda se concentre em uma atividade puramente ideológica (o pensamento, a arte), é evidente que as atividades do homem, para que tenham sentido, precisam estar ligadas a sua sociabilidade e a sua historicidade (e, portanto, indiretamente, a uma concepção de progresso qualquer)[7]

 

A consequência necessária da desvalorização da ação social e política por Schopenhauer é a criação de “uma visão de mundo na qual toda historicidade (e, com ela, todo progresso, todo desenvolvimento) seja rebaixada a simples aparência, a uma ilusão na qual a sociedade seja apresentada como uma superfície que perturba a essência, que encobre o conhecimento de sua essência, que não a revela, isto é, como uma aparência (no sentido de ilusão e não apenas de manifestação).[8] A aparência de que fala Schopenhauer não é o fato do fenômeno aparecer de determinada forma como manifestação da essência que o condiciona, não é aquela aparição fenomênica imediatamente visível/perceptível pelo homem e de onde partem as ciências particulares e também a filosofia para se encontrar a essência, a lei que rege a coisa estudada, que nunca aparece imediatamente, que sempre fica oculta na mera manifestação fenomênica. Esta aparência típica de cada fenômeno é um fato real a partir do qual as ciências particulares e a filosofia buscam encontrar as leis que regem cada fenômeno estudado, as suas relações com outros fenômenos específicos e com o todo do qual cada um deles faz parte, seja a sociedade humana, seja a natureza. No entanto, a aparência de que fala Schopenhauer é algo contrário a isso pois para ele a aparência é algo inexistente, é simplesmente uma ilusão que encobre a verdadeira essência das coisas. E para ele tal aparência ilusória é justamente a sociedade e a sua historicidade que, sendo algo inexistente, não é passível de intervenção humana para fins de modificação, de transformação, do que resulta a inutilidade de qualquer atuação social ou política neste sentido. Ora, se os fatos e situações históricas, se as sociedades com seus problemas e contradições, são meras ilusões aparentes que enganam os homens e os afastam da vivência da verdadeira essência da vida humana, a eliminação de tais ilusões e o consequente alcance da plenitude existencial e do autêntico sentido da vida se tornam uma tarefa de cada pessoa individualmente, pois é certo que toda ilusão pode ser eliminada pela atividade exclusivamente mental de cada homem ou mulher; e os meios pelos quais cada pessoa individualmente pode eliminar tais ilusões e alcançar a essência das coisas são, segundo Schopenhauer, a fruição estética e a ascese religiosa. Nem seria preciso dizer que tais meios deixam incólume todo o edifício social responsável pela opressão dos trabalhadores. No próximo e último artigo sobre Schopenhauer discorreremos acerca dos traços gerais de sua ética e de sua moral decorrentes dessa sua visão de mundo que tentamos explicitar no presente texto.

 

Sávio Bastos



[1]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 178.

[2]Trecho da obra Fausto de Goethe

[3]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 178.

[4]Schopenhauer: Samtliche Werke, Reclam, Leipzig, t. IV, p. 173 s., citado por Lukács em A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 179.

[5]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 180.

[6]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 184.

[7]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 182/183.

[8]A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 183.