O amor é sempre concreto, pois não existe o amor desencarnado como uma força vital; o que existe são pessoas que se amam. Inicio este ensaio com essa afirmação para demarcar uma postura materialista diante da realidade: não existe nada no mundo humano que não seja produto das relações que os próprios seres humanos estabelecem com a natureza e a sociedade. Essa postura é fundamental para que possamos compreender as categorias espirituais como maneiras de ser da realidade.
O que debatemos, então, é o conceito de amor. Há um livro bastante interessante de Leandro Konder, filósofo marxista brasileiro, Sobre o amor, no qual ele afirma, baseado em Marx, “O amor como uma ‘maneira universal’ que o ser humano[1] tem de se apropriar de seu ser como um ‘homem total’, agindo e refletindo, sentindo e pensando, descobrindo-se, reconhecendo-se e inventando-se” (KONDER, 2007, p. 21).
O amor visto assim é, ainda, uma manifestação do espírito humano, uma inclinação emocional, uma paixão; mas nada disso é uma potência autônoma exterior ao ser humano e que o controla. O amor não é um poder cósmico que atua de fora dos seres humanos determinando a maneira de agir no mundo, mas é um conceito que reflete ações humanas concretas e concretamente situadas. “Sou contra a discussão abstrata. O marxismo nos reconduz sempre ao concreto” (LUKÁCS, 2020, p. 34).
Concretamente, então, existem seres humanos vivendo relações concretas. O concreto aqui entendido como síntese de múltiplas determinações, ou seja, há várias formas de amar. Posso aqui parecer negar o amor, ao não querer tratá-lo de maneira abstrata, transcendente ou natural, e quase dando margem às acusações de ser o marxismo uma teoria racionalista ao extremo, mas não é disso que se trata. Marx, na Sagrada Família, ao direcionar sua crítica à Bruno Bauer e consortes, é contrário a essa perspectiva da qual este último é representante.
Afirma Marx (2011, p. 31) que a Crítica crítica[2] “precisa desembaraçar-se, antes de tudo do amor” porque “O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão”. Marx está criticando um texto de Edgar Bauer[3] no Jornal Literário Geral no qual ele faz uma crítica a um romance de Von Paalzow[4], afirmando o amor como um deus cruel que deseja possuir o ser humano por inteiro, ficando satisfeito apenas ao consumir o espírito e o corpo do ser humano, por isso “Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio” (BAUER apud MARX, 2011, p. 31).
“O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um ‘deus cruel’, seja dito, ao fazer do homem enamorado, ou seja, do amor do homem, o homem do amor, ao colocar o ‘amor’ à parte do homem como ser, autonomizando-o” (MARX, 2011, p. 31)”. Os destaques em “amor do homem” e em “homem do amor” não são aleatórios, pois destacam o caráter não especulativo da compreensão materialista de Marx acerca das paixões humanas. O amor não é um ser exterior que domina o ser humano e o dirige de acordo com uma vontade própria e potência. Na verdade, é o ser humano que dirige o amor, o amor é do ser humano, não é o amor que possui o ser humano.
Esse movimento transforma as determinações essenciais e todas as manifestações da essência humana em não-essência e em alienações da essência (MARX, 2011, p. 31), ou seja, retira da humanidade seu papel ativo, transformando uma atividade humana em algo exterior que não lhe pertence e, mais, que ganha um poder sobre a humanidade. Estamos tratando aqui do amor, mas poderíamos tratar de diversas outras atividades humanas que retiram do ser humano sua capacidade de pensar e de agir autonomamente.
Dito de outra forma, o ser humano não é objeto do amor; e o amor é objeto do ser humano, na medida em que o próprio ser humano faz do mundo exterior um objeto para si, ou seja, toma consciência desse mundo e, ao fazê-lo, toma consciência de si como um sujeito agente nesse mundo, com capacidade de transformá-lo. Nas palavras de Marx (2011, p. 32),
Como poderia a absoluta subjetividade, o actus puros, a crítica pura não ver no amor a sua bete noire, seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?”.
O mundo dos sentidos, o espírito humano não é uma força exterior, mas uma potência real, objetiva, produto das relações reais, concretas do ser humano. Assim,
A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior, porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. (MARX, 2011, p. 33).
Segundo essa crítica de Marx à Crítica crítica, o que eles querem combater é exatamente toda experiência real, não apenas o amor, mas toda possibilidade de autoconstrução dos seres humanos, inclusive “quando não se sabe o ‘de onde’ e o ‘para onde’” (MARX, 2011, p. 34).
Até aqui, tratei de discutir o amor no mundo dos sentidos, mas não posso deixar de destacar o caráter historicamente situado do amor. Se ele é manifestação de indivíduos reais em situações concretas, a sociedade na qual os amantes vivem determinam, em alguma medida, a maneira de amar, o resultado da relação sensual entre os amantes.
Alexandra Kolontai (2011), marxista russa e membra do Partido Comunista, escreveu e militou a cerca de questões como a sexualidade feminina, a moral sexual e o amor como temas importantes a serem discutidos no processo de transição para o comunismo, com o fito de constituir uma sociedade plenamente livre.
Aqui vale colocar um parênteses para explicar que o comunismo nada tem a ver com a constituição de um paraíso na Terra, ou da eliminação de todos os conflitos humanos. A liberdade plena é uma potência para todos os seres humanos, numa sociedade comunista, porque a alienação do trabalho, instituída na exploração da maioria por uma minoria parasitária não existirá. Libertando o trabalho do jugo do capital, os seres humanos serão livres.
Isso não significa uma sociedade perfeita nem uma sociedade sem conflitos. Certamente, haverá amor não correspondido no comunismo, mas, consolidada uma nova ética humana, na qual a exploração do outro não seja norma, esse conflito não será dominado por sentimentos de ciúmes, de posse, de violência etc., já que estes são valores capitalistas. A ética é também produto da história humana.
Kolontai, então, tratou sobre isso de maneira brilhante, quando pensou sobre como seria uma nova moral sexual. Lembrando que ela estava refletindo a partir de uma situação específica, enfrentando os conflitos de uma sociedade que, vindo de um sistema ainda feudal, lutava pelo socialismo[5]. Segundo a autora (KOLONTAI, 2011, p. 33), os indivíduos da época atual veem a união livre mediante uma psicologia já deformada por uma moral falsa e doentia, quer dizer, a união livre numa sociedade regida por uma moral capitalista não pode encontrar seu pleno desenvolvimento e acaba reproduzindo as alienações de uma sociedade sexista, machista, homofóbica, racista, lgbtqia+fóbica etc.
Não quero, nem o espaço me permite, trazer exemplos singulares para minha argumentação, pois exemplos singulares podem ser encontrados para justificar qualquer teoria. Como argumentei no início deste ensaio, convido os leitores a refletirem sobre situações concretas nas quais se manifestam as alienações capitalistas em relação à união dos amantes e deixo as reflexões livres para dialogarem com meu texto, pensando como situações concretas determinam a forma de amar, principalmente se atravessadas por relações de poder, de gênero, de raça, de classe, de sexualidade.
Outro aspecto da argumentação de Kolontai muito me interesse em termos de pesquisa. Diz a autora (KOLONTAI, 2011, p. 35):
A solução para esse complicado problema só é possível mediante uma reeducação fundamental de nossa psicologia, reeducação esta que, por sua vez, só é possível por uma transformação de todas as bases sociais que condicionam o conteúdo moral da Humanidade.
A educação de que trata a autora é formal, mas é principalmente informal; é a educação de toda a sociedade que passa a viver novas relações concretas até que essas se generalizem para toda a sociedade. O processo de desenvolvimento dos sentidos humanos é também um processo educativo. Os seres humanos mudam a forma de pensar de maneira mais efetiva se mudam a maneira de agir e se a sociedade não se contrapõe às ideias.
Para a autora (2011, p. 38), concordando com Marx, o amor é uma afirmação da humanidade: “Se a humanidade não tivesse o amor, sentir-se-ia roubada, deserdada e desgraçada”. O amor para se efetivar plenamente precisa ocorrer entre indivíduos livres é preciso que a relação que Kolontai chama de camaradagem supere os atuais princípios de subordinação e de desigualdade.
Aqui não é uma simples questão de escolha. Não podemos escolher ser livres numa sociedade em que a liberdade nos é tomada. Os amantes, os diversos casais, podem – e devem – se esforçar para não reproduzir as desigualdades, mas serão sempre, de algum modo, imersos em situações de desigualdade: um casal homoafetivo não pode expressar plenamente seu amor, uma mulher por mais “empoderada”[6] que seja, em alguns lugares, precisa da autorização do companheiro para decidir sobre sua reprodução, mulheres pretas são tomadas como objetos de livre acesso enfrentam as mais complicadas situações de abuso e solidão etc. Algumas situações irão se impor de fora.
Kolontai está longe de ser pessimista quanto à potência do desejo de mudança da humanidade. Segundo a autora, os seres humanos querem ser amados, a humanidade sonda os novos ideais. Vejam os atuais movimentos pelo amor livre. A humanidade busca uma sociedade em que se possa efetivar o amor verdadeiro.
Quando se discute o conceito de amor, então, os autores trazem os elementos que puderam abstrair de relações concretas reais ou ainda da representação do amor na literatura. Assim, é possível criar diversas compreensões sobre essa paixão humana e nenhuma é mais verdadeira do que a outra, entretanto, o considero falso é dizer que o amor é uma força que nos rege, nos domina, nos sacrifica, como se fôssemos seres passivos diante da realidade.
Para finalizar, trago um poema de Carlos Drummond de Andrade, por meio do qual gostaria de tratar sobre o amor. Trata-se do poema Amor e seu tempo, lido na publicação da editora Companhia das letras, na coletânea Impurezas do branco, com poemas publicados entre 1902-1987. Segue (DRUMMOND, 2012, p. 43):
Amor e seu tempo
Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
Não objetivo usar o poema como pretexto para confirmar minha argumentação, afinal não é a isso que se propõe a literatura, mas destacar como esse poema me faz refletir a cerca do processo de educação dos nossos sentidos. “Amor é privilégio de maduros” me faz refletir sobre o caminho que se percorre até, para alguns privilegiados, se poder viver uma relação amorosa mais plena, mais segura, cuja relação com a pessoa amada possa ser mais íntima, mais verdadeira.
“Amor é o que aprende” remonta a ideia de educação dos sentidos espirituais humanos, como um acúmulo de sínteses das experiências vividas, nas quais é possível construir um entendimento sobre si mesmo e sobre o outro.
“Amor começa tarde”, mas não começa para todos. Amar também é um privilégio no sentido social, econômico. Há seres humanos que não viverão a experiência de amar durante sua vida e não há outra vida nem um lugar pleno de amor. o capitalismo nos tira a única oportunidade de amar plenamente e de sermos humanamente plenos. O capitalismo, de fato, é inimigo do amor.
Karla Costa
Doutora em Educação pela Universidade Estadual do Ceará - UECE
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do branco [O amor e seu tempo]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
KONDER, Leandro. Introdução: o que é o amor? In: KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 7-17.
KONDER, Leandro. Marx: os revolucionários também amam. In: KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 19-26.
LUKÁCS, György. Lukács: retorno ao concreto. In: LUKÁCS, György. Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas (1966-1971). Tradução Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 29-34.
MARX, Karl. O amor (Karl Marx). In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. p. 31-34. A sagrada família, ou, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. Tradução Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011.
[1] A tradição da tradução de textos filosóficos marxistas usa a expressão ser humano para significar humanidade. Obviamente, vinculado a uma tradição antropológica. Usarei, quando não for uma citação direta, entretanto, a expressão ser humano, numa tentativa de ser mais inclusiva em relação aos gêneros. Por ser humano quero indicar pessoas de todas as identidades de gênero e todas as manifestações da sexualidade, assim como de todas as etnias. A repetição dessa expressão é, então, bastante necessária.
[2] Publicações de Marx e Engels nas quais eles criticam a filosofia – ou o idealismo – especulativa de Bruno Bauer, filósofo, teólogo e historiador alemão; com base nos textos publicados por Bauer e colaboradores no Jornal Literário Geral [Allgemeine Literatur-Zeitung], editado entre 1843 e 1844.
[3] Filósofo político alemão membro dos jovens hegelianos.
[4] Henriette von Paalzow foi uma escritora alemã de romances históricos.
[5] Não é possível ir adiante na argumentação sobre uma nova moral em Kolontai, por isso indico a leitura de A nova mulher e a moral sexual, da autora. São conhecidos os conflitos entre a mentalidade da população na Rússia soviética e as tentativas de instituição de políticas que dessem condições de liberdade para as mulheres, esses são exemplos que expressão que uma moral capitalista entra em choque com a perspectiva socialista, ainda mais com a comunista.
[6] Atrevo-me a usar essas aspas para indicar que não uso o termo empoderada de acordo com sua devida significação, mas refiro-me à ideia do senso comum de que uma mulher empoderada é aquela que consegue exercer sua liberdade. Para conhecer o debate sobre esse conceito, indico o livro de Joice Berth, O que é empoderamento? (Editoras Letramento e Justificando). Mesmo não tendo acordo com a categoria de Berth, considero que ela explica e critica a ideia do senso comum.