terça-feira, 19 de abril de 2022

Hipersexualização das divas pop

 

Quando uma cantora pop está fazendo muito sucesso e se destacando na mídia, um tema sempre volta ao tópicos das conversas: a hipersexualização das divas pop. Esse fenômeno sempre foi muito interessante porque, antes, a maioria das posições críticas em relação à apologia ao sexo feita pelas cantoras eram tomadas como conservadoras e, se vinham de pessoas alinhadas à esquerda, eram, conservadorismo de esquerda.

Com o avanço de uma perspectiva feminista liberal, ou seja, aquela que acredita que é possível superar a opressão de gênero sem superar o capitalismo, entendia-se que a mensagem mais importante era que as cantoras transmitiam, ao sexualizar suas perfomances, era a de liberdade sexual para as mulheres, de liberdade de decisões sobre o uso de nossos corpos, empoderamento feminino, portanto.

Hoje - baseada no que eu tenho visto de vídeos sobre o assunto na internet - a posição crítica tem sido mais entendida e discutida. As pessoas tem notado algumas questões importantes sobre o tema, por exemplo que o sexo vende, que  indústria cultural é majoritariamente masculina, que a sexualização das cantoras atende um mercado que não é dominado por elas; e que a hipersexualização pode trabalhar mais para a própria opressão das mulheres do que para o seu empoderamento. Vou deixar o link para um exemplo dessa posição mais crítica aqui.

Uma análise muito interessante pode ser vista no vídeo da professora Juliana Diniz da Universidade Federal do Ceará, no qual ela aponta como ambas as posições podem cair num moralismo e num patrulhamento do corpo feminino, já que às mulheres, historicamente, foi negado o prazer. Vou deixar o link para esse vídeo aqui. Discordo da professora quando ela atribui à posição marxista uma crítica moralista. Há moralistas no marxismo, mas o marxismo, em si, não é moralista.

Na minha opinião, tanto a posição mais crítica que entende como a hipersexualização serve ao mercado como a posição de que essa sexualização excessiva serve para superar a domesticação dos corpos e empoderar mulheres ficam na superfície do fenômeno. Ambas as posições olham para a mulher, para o mercado, para a indústria cultural, mas não olham para o sistema, para a lógica que engendra todas essas coisas e das quais ninguém pode escapar, apenas ser engendrado por ela, em maior ou menos medida.

Vejamos unicamente o caso das mulheres. Peguemos a Anitta, pois sabemos que foi o sucesso internacional dela que levantou, de novo, esse debate. Anitta afirma, em seu documentário disponível na Netflix, que não deu um ponto sem nó em sua carreira, que sabe o que está fazendo e o faz para chegar onde ela quer, alcançar seus objetivos. Ela chegou. Como podemos afirmar, ao mesmo tempo, que Anitta é vítima de uma ideologia patriarcal subjacente à indústria cultura e louvar sua autonomia e inteligência como empresária? Simples: sexo vende, Anitta sabe que sexo vende, como ela quer vender, ela sexualiza suas performances. Do ponto de vista empresarial, Anitta é um sucesso.

O que eu quero destacar é que a sexualização das cantoras é uma estratégia e que essa estratégia só é um sucesso porque a sociedade consome esse tipo de conteúdo. É um processo que se retroalimenta. As mulheres são objetificadas, a objetificação das mulheres vende, as mulheres serão produtos e empresárias de sua própria objetificação. Por trás dessa lógica, está sim o capitalismo. No capitalismo, tudo é mercadoria.

A mulher é, para o capitalismo, uma das mercadorias mais restáveis porque nós somos muito úteis e não somos pagas. Nós produzimos e reproduzimos a mercadoria mais importante para o capitalismo: as pessoas, que venderão aos capitalistas a força de trabalho para extração de mais-valia nos locais de trabalho. Se o capitalismo permitir qualquer desobjetificação, valorização das mulheres, o resultado será oneroso aos cofres capitalistas. Quem vai aceitar ficar em casa parindo e cuidando das pessoas para serem exploradas? Onde serão feitas as refeições, quem cuidará dos bebês e dos idosos, se não for a dona de casa ou as trabalhadoras mal remuneradas?

Interessa e muito para o sistema capitalista que a imagem da mulher como objeto de consumo seja propagada e não faz diferença se esse consumo é ou não é consentido. Quem ganha com a sexualização das mulheres é a ideologia machista do capitalismo, acontece que às mulheres que colaborar com o fortalecimento dessa ideologia também ganham, ficam mi-bilhonárias. São poucas mulheres. A maioria continuará sofrendo as consequências do machismo.

Vale alertar também que há contradição nesse processo: a imagem de mulheres que são donas dos próprios corpos e que os utilizam para o próprio prazer é transmitida e produz mudanças de mentalidade sim. Acontece que as ideias não mudam a realidade sozinhas. Não é suficiente que as mulheres assumam a ideia de que são donas dos próprios corpos. Se nós não pudermos desfrutar livremente a prática dessa ideia, na realidade concreta, ela é uma ilusão. Quem pode desfrutar da ideia de liberdade sexual para as mulheres? Quais são as mulheres que podem escolher seus parceiros, que podem abandonar seus parceiros por outros? Que podem substituir seus parceiros sexuais opressores por vibradores? Quais mulheres podem comprar vibradores?

A ideia de liberdade sexual feminina é belíssima, correta e urgente, mas, no capitalismo, ela é uma ideia que se subordina a tantas outras relações opressivas que se dilui no chorume da violência de gênero.


KARLA RAPHAELLA COSTA PEREIRA

Professora Dra. da UECE, Líder do GPOSSHE