quarta-feira, 13 de abril de 2022

Crítica de Arte | Ruptura

 

Severence é uma série americana de suspense produzida pela Apple TV+, criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle. Ruptura, como ficou nomeada no Brasil, é um procedimento ao qual os funcionários das Indústrias Lumen precisam se submeter para trabalharem na empresa. Trata-se de uma separação, de uma ruptura, entre as memórias do trabalho e as memórias da vida. Ou seja, quando está no trabalho, o funcionário não lembra de nada do que faz ou do que é fora dele; quando está fora do trabalho, não possui a menor lembrança do que faz no trabalho. Cada um é dois: o Interno e o Externo.

Somos apresentados a esse cenário no dia em que Mark S. (Adam Scott) é promovido a supervisor de seu setor, Refinamento de Macrodados, graças à demissão de seu amigo Peter. Mark S., no início, é insuportavelmente satisfeito e integrado ao trabalho, mas, com a recente função e a chegada de uma nova funcionária, Helly R., passará a questionar o sentido do ambiente em que trabalha.

Algumas informações são muito interessantes para destacar o ambiente sufocante da empresa.

 

1 Ao sofrer a ruptura, a mente do funcionário se divide. Do lado de fora, há a parte que sabe o motivo de ter se submetido a tal procedimento, que possui uma vida, uma história, família etc., mas, a parte da mente que se liga quando entra na empresa nasceu e só existe naquele ambiente; é uma nova pessoa cuja história se resume às oito horas de trabalho que cumpre entre as paredes da Lumen. Esse indivíduo sequer vive a experiência mental de dormir, já que não está consciente à noite.

 

2 Ninguém sabe o que a empresa faz, produz. Os diferentes setores da empresa não se comunicam e cada um cumpre uma determinada função cujo sentido não é apresentado aos funcionários. O setor de Mark S., Helly R. é chamado de Refinamento de Macrodados, mas nem eles nem seus colegas, Irving e Dylan, sabem quais dados refinam, pois a atividade que executam é organizar números numa tela de computador.

 

Inicialmente, já notamos como a ruptura é severa para o Interno, mas será que o externo dos funcionários são verdadeiramente livres?

Se pensarmos no modo de produção capitalista, perceberemos que a ruptura ja existe: no trabalho somos outros, o bom funcionário para o patrão é aquele que se entrega completamente e esquece o seu eu exterior para se dedicar à empresa. Durante as oito (ou mais) horas de trabalho, você não é você, você é uma coisa, uma mercadoria alugada para cumprir uma função, por isso quanto menos suas aspirações pessoais, seus problemas familiares, sua subjetividade interferirem no trabalho mais produtivo, competente você é. A série de Dan Erickson simplesmente radicaliza essa ruptura.

Acontece que não somos máquinas. Nossa humanidade não pode ser domada pelo capital. Até agora, tenho compreendido a série como uma alegoria do capitalismo. No início, tive medo do fatalismo ser a mensagem central, mas, pelo menos nessa primeira temporada, a coisa não é bem assim. Não gosto de dar spoilers, mas se vocês resolverem se aventurar na saga de Mark S. e seus colegas de trabalho. Observem a presença de dois livros e suas respectivas ideologias, o manual que guia os funcionários na empresa e um livro do mundo exterior contrabandeado para dentro da Lumen. Algumas ideias deste vão de encontro às daquele e eu diria que são revolucionárias. Não sei se a semelhança com um certo livro de um certo barbudo é apenas mera coincidência.

Como todas as séries da Apple TV+ que tenho assistido até agora, Ruptura começa um pouco lenta, mas, aos poucos, vai mostrando a que veio, envolvendo a audiência nos mistérios da Lumen e nas angústias dos internos. O desenvolvimento dos episódios vai criando uma expectativa pela revelação dos objetivos por trás de todo teatro do qual os funcionários são nitidamente fantoches, cobaias de laboratório. Vale a pena a insistência.

Para mim, estão plasmados a divisão capitalista do trabalho, a alienação em suas diversas dimensões e muitos outros aspectos desenvolvidos por Marx na crítica da economia política. Ok. É totalmente contraditório afirmar que uma das maiores empresas capitalistas do mundo, a Apple, possui qualquer interesse em criticar o capitalismo, mas há elementos no fazer artístico que rompem com os objetivos traçados para ela por seus criadores. Vejamos o que a segunda temporada já confirmada nos trará.

Em tempo: se vocês assistirem, deixem aqui a opinião de vocês. Estou super curiosa para saber.

 


KARLA RAPHAELLA COSTA PEREIRA

Professora Dra. da UECE, Líder do GPOSSHE