Natalia Sedova Trotsky (1882-1962)
Eudes Baiman, professor da UECE
É uma peça curiosa, tendo em vista que Natália adere às posições contra as quais Trotsky travou seu último combate de monta. Com efeito, de fins de 1939 até sua morte, em agosto de 1940, Trotsky desenvolveu uma luta ríspida com a fração Max Schatman/James Burnham no SWP norte-americano justamente em torno do problema da natureza da URSS.
Depois da guerra, grosso modo, Natalia Sedova se alinhou justamente às posições de Schatman/Burnham, que não mais existia como grupo de esquerda, pois seus líderes derivaram nos anos 40 para a direita e para o anticomunismo.
Contudo, na base da negação da URSS, e dos Estados surgidos da derrota da ocupação nazista no Leste da Europa, como estados operários, quer dizer, baseados na expropriação do capital, ainda que degenerados por regimes stalinistas, ela manteve relações com antigos militantes que haviam rompido com Trotsky ainda antes da guerra, e brevemente com o agrupamento intitulado Fomento Obrero Revolucionário, de Grandizo Munis, que saiu da IV Internacional em 1948.
De passagem, Natasha tinha algumas intuições certeiras, como a crítica à visão de dirigentes da Internacional acerca do Marechal Tito e de seu regime na Iuguslávia, que tomaria depois uma imensa dimensão e levaria à dissolução da IV como organização entre 1951 e 1953.Não deixa de chamar a atenção que perto de sua morte, depois da suposta "desestalinização" proclamada no XX° Congresso do PC da URSS, em 1956, Natália tenha pedido a reabilitação de Trotsky aos chefes do regime stalinista, uma atitude com que dificilmente Lev Davidovitch teria acordo.
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Camaradas:
Sabem muito bem que não estou de acordo com vocês durante os últimos cinco ou seis anos, desde o final da guerra e até mesmo antes. A posição assumida por vocês sobre os importantes acontecimentos dos últimos tempos, me demonstra que, em vez de corrigirem os seus anteriores erros, persistem neles e os aprofundam. No caminho que assumiram, chegou-se ao ponto em que já não me é possível permanecer calada ou a me limitar a protestos privados. Agora devo exprimir as minhas opiniões publicamente.
O passo que me sinto forçada a dar, é-me difícil e doloroso, e só posso deplorar sinceramente por isso. Mas não há outro modo. Depois de muitas meditações e dúvidas sobre um problema que me afligiu profundamente, dei na conclusão de que não há outra maneira senão dizer-lhes francamente que as nossas discordâncias tornam impossível a minha permanência nas suas fileiras.
As razões para esta minha postura final são conhecidas pola maioria de vocês. Eu brevemente as repito unicamente para aqueles que não estão familiarizados com as mesmas, referindo apenas as nossas diferenças fundamentais e não as que estimo sobre questões de política cotidiana que estão relacionadas a elas ou que delas derivam.
Obcecados por velhas e ultrapassadas fórmulas, continuam considerando o Estado stalinista como um Estado operário. Eu não posso e não acompanharei vocês nisto. Depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, L. D. Trotsky repetia praticamente todos os anos, que o regime se deslocava para a direita, sob as condições de uma revolução mundial delongada e a conquista de todas as posições políticas pola burocracia na Rússia. Repetidas vezes sublinhou como a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia a uma deterioração das posições econômicas, políticas e sociais da classe operária, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse, a revolução esgotar-se-á e a restauração do capitalismo será atingida. Infelizmente, isso foi o que aconteceu, mesmo se em formas novas e inesperadas. Não há nenhum país no mundo onde as autênticas ideias e os autênticos defensores do socialismo sejam perseguidos tão barbaramente [como na Rússia]. Deveria ficar claro para todo o mundo que a revolução foi completamente arruinada polo stalinismo. Todavia, vocês continuam dizendo ainda que sob este regime inominável, a Rússia é um Estado operário ou com algo de socialismo. Acho isto como um ataque ao socialismo. O stalinismo e o Estado stalinista não tem parecido nada com um Estado operário e com o socialismo. Eles são os mais perigosos inimigos do socialismo e da classe operária.
Agora tomam de conta vocês que os Estados da Europa Oriental, sobre os quais o stalinismo instituiu o seu domínio durante e após a guerra, são igualmente Estados operários. Isto é equivalente a dizer que o stalinismo cumpriu um papel socialista revolucionário. Eu não posso e não quero segui-los nisto.
Após a guerra e antes mesmo do seu término, houve um movimento revolucionário das massas nestes países. Mas não foram estas massas que conquistaram o poder e não foram Estados operários que foram fundados pelas suas lutas. Foi a contrarrevolução stalinista que conquistou o poder, reduzindo estes países a uma condição de escravos do Kremlin, esganando as massas trabalhadoras, as suas lutas e as suas aspirações revolucionárias. Ao considerar que a burocracia stalinista estabeleceu Estados operários nesses países, atribuem-lhe um papel progressivo e até mesmo revolucionário. Ao propagarem esta monstruosa falsidade à vanguarda dos trabalhadores vocês negam à IV Internacional toda a razão básica para a sua existência, enquanto um partido mundial da revolução socialista. No passado, sempre estimamos o stalinismo como uma força contrarrevolucionária no sentido pleno do termo. Vocês já não o consideram assim. Mas eu continuo apreciando-o como tal.
Em 1932 e 1933, para desculpar a capitulação desavergonhada ao hitlerismo, os stalinistas manifestaram que importaria pouco se os fascistas chegassem ao poder, porque o socialismo haveria vir depois e viria através do domínio do fascismo. Só desumanos brutos sem pingo de pensamento ou espírito socialistas poderiam arguir deste modo. Apesar de prosseguirem defendendo os objetivos revolucionários, vocês sustentam agora que a reação stalinista despótica que triunfou na Europa Oriental é um dos caminhos polos quais o socialismo eventualmente virá. Esta visão marca uma fenda irremediável com as convicções mais profundas sempre assumidas polo nosso movimento, convicções que continuo a compartilhar.
É impossível harmonizar com vocês na questão do regime de Tito na Iugoslávia. Toda a simpatia e apoio de revolucionários, e até mesmo de todos os democratas, deveria voltar-se para o povo iugoslavo na sua resistência determinada diante dos esforços de Moscou para reduzir o povo e o país à escravatura. Deveríamos tirar proveito de cada concessão que o regime iugoslavo vê-se agora obrigado a fazer ao povo. Mas toda a sua imprensa está consagrada agora a uma idealização indesculpável da burocracia titoísta, para a qual não existe nenhuma base nas tradições e princípios de nosso movimento.
Essa burocracia é só uma réplica, sob uma nova forma, da velha burocracia stalinista. Ela foi treinada nas ideias, políticas e na moral da GPU. O seu regime, em nenhum aspecto fundamental, não difere do regime de Stalin. É absurdo acreditar ou ensinar que a direcção revolucionária do povo iugoslavo irromperá desta burocracia ou de qualquer outra forma que não seja no curso da contenda contra a burocracia.
Trotsky, em resposta a uma pergunta desleal dirigida a ele por Stalin em 1927 no Bureau Político, expôs a sua visão da seguinte maneira: Pela pátria socialista, sim! Pelo regime stalinista, não! Isso foi em 1927! Agora, vinte e três anos depois, Stalin não deixou nada da pátria socialista. Foi substituída pola escravização e degradação do povo pola autocracia estalinista. Este é o Estado que vocês propõem defender na guerra, que já estão mantendo vocês na Coréia. O mais intolerável de tudo é a posição que têm perfilhado sobre a guerra. A terceira guerra mundial que ameaça a humanidade confronta o movimento revolucionário com os problemas mais difíceis, as situações mais complexas, as decisões mais sérias, onde a nossa posição só pode ser tomada após discussões feitas da maneira mais séria e livre possível. Mas diante de todos os acontecimentos dos últimos anos, continuam hipotecando todo o movimento na defesa do Estado stalinista. Agora vocês estão apoiando até os exércitos do stalinismo na guerra que está sendo aturada polo povo coreano. Eu não posso e não quero segui-los nisto.
Sei muito bem com quanta frequência repetem que estão a censurar o stalinismo e que o estão combatendo. Mas o fato é que a sua crítica e a sua luita perderam o seu valor e não podem trazer resultado nenhum, porque estão determinados à posição de defesa do Estado stalinista e subordinados ela. Quem quer que defenda esse regime de bárbara opressão renuncia, independente das razões, aos princípios do socialismo e do internacionalismo.
Na mensagem que me foi enviada pola recente convenção do SWP(2*), escreveu-se que as ideias de Trotsky continuam sendo o seu roteiro. Devo dizer-lhes que li estas palavras com amargura. Como podem reparar pelo que acima escrevi, não vejo as ideias dele na sua política. Sou confiante nessas ideias. Permaneço persuadida de que a única saída para a presente situação é a revolução socialista, a auto-emancipação do proletariado mundial.
México, DF 9 de maio de 1951
Notas:
(1*) Na fonte citada aparecem apenas trechos deste documento. Agradeço ao camarada Jaime Sinde Masa a procura e cessão de uma fotocópia do texto íntegro em espanhol.
(2*) Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores).
Fonte:https://www.marxists.org/portugues/sedova/1951/05/09.html