domingo, 22 de março de 2020

Derrotar o capitalismo para proteger o futuro




O livro “A Terra Inabitável”, do jornalista norte-americano David Wallace-Wells, merece muito ser lido porque revela uma série de graves acontecimentos que serão causados pelo aquecimento global, alguns deles explicitados pelos seguintes trechos do livro:

1)     o aumento de temperatura “cinco ou seis graus até 2100 é pouco provável. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) oferece uma projeção intermediária de 4°C, a seguirmos no atual curso de emissões. Isso acarretaria o que hoje parecem impactos impensáveis – incêndios florestais queimando dezesseis vezes mais terras no Oeste americano, centenas de cidades submersas. Cidades que abrigam milhões, da Índia ao Oriente Médio, ficariam tão quentes que sair de casa no verão seria um risco fatal – na verdade, será assim bem antes disso, com apenas 2°C de aquecimento.” (página 56)
2)     “Os climas diferem e as plantas variam, mas uma regra informal básica do cultivo de cereais à temperatura ideal é: para cada grau de aquecimento, há um declínio de 10% na produção. Algumas estimativas vão mais longe. Se o planeta estiver 5ºC mais quente no fim do século, quando as projeções sugerem que poderemos ter uma população 50% maior para alimentar, também poderemos ter 50% menos grãos para oferecer a ela. (…) No mundo todo, os cereais representam cerca de 40% da dieta humana; quando acrescentamos soja e milho, somamos dois terços de todas as calorias humanas.” (pág. 67)
3)     “Até 2100, se não detivermos as emissões de carbono, pelo menos 5% da população mundial sofrerá com enchentes todo ano. Jacarta é uma das cidades que mais crescem no mundo, hoje abrigando 10 milhões de habitantes; devido às enchentes e ao afundamento puro e simples, a cidade pode submergir de vez até 2050. A China já evacua centenas de milhares todo verão para proteger a população contra as cheias no delta do rio das Pérolas.” (fls. 79)
4)     “Dos dez anos com a maior quantidade de incêndios florestais já registrados, nove ocorreram depois de 2000 (nos Estados Unidos). No mundo todo, desde apenas 1979, a temporada de incêndios aumentou cerca de 20%, e os incêndios florestais americanos hoje consomem o dobro de área que consumiam em 1970. Em 2050, a destruição dos incêndios deve dobrar outra vez e em alguns lugares nos Estados Unidos a área atingida pode quintuplicar. O que isso significa é que a 3ºC de aquecimento, nossa baliza provável para o final do século, os Estados Unidos talvez tenham que lidar com uma devastação pelo fogo dezesseis vezes maior do que hoje, quando, em um único ano, 10 milhões de acres viraram carvão. A 4ºC, a temporada de incêndios seria quatro vezes pior. O chefe do corpo de bombeiros da Califórnia acha que o termo já pertence ao passado: “A gente nem fala mais temporada de incêndios”, ele disse, em 2017. “Pode tirar a ‘temporada’ – é o ano todo.” (p. 94/95)
5)     “Em um mundo 4ºC mais quente, o ecossistema terrestre vai entrar em ebulição com tantos desastres naturais que simplesmente começaremos a chamá-los de ‘o clima’; tufões e tornados, inundações e secas fora de controle, o planeta assolado regularmente por eventos climáticos que não faz muito tempo assim destruíram civilizações inteiras. Furacões mais fortes serão comuns e teremos de inventar novas categorias para descrevê-los; os tornados virão com mais freqüência, deixando rastros de destruição maiores e mais extensos. As pedras de granizo serão quatro vezes maiores do que hoje.” (p. 100)
6)     “Durante as três próximas décadas, a demanda hídrica da rede de produção mundial de alimentos deverá crescer cerca de 50%; das cidades e da indústria, em 50% e 70%; e da geração de energia, em 85%. E a mudança climática, com suas megassecas iminentes, promete apertar o cinto consideravelmente. De fato, um estudo fundamental sobre água e mudança climática feito pelo Banco Mundial, ‘Quente e seco’, revelou que ‘os impactos da mudança climática serão canalizados sobretudo pelo ciclo da água’. A advertência agourenta do Banco: quando se trata dos cruéis efeitos em cascata da mudança climática, a eficiência hídrica é um problema tão urgente quanto a eficiência energética, e um quebra-cabeça igualmente importante por ser resolvido. Sem uma adaptação significativa na distribuição dos recursos hídricos, avalia o Banco Mundial, o PIB regional pode cair, simplesmente devido à insegurança do abastecimento de água, em até 14% no Oriente Médio, 12% no Sahel africano, 11% na Ásia Central e 7% no Leste da Ásia.” (p. 116/117)

Estes excertos do livro de David Wallace-Wells revelam, portanto, que o aquecimento global causará calor letal, fome, enchentes, incêndios, eventos climáticos extremos e redução da água doce disponível.

O livro indica ainda outras consequências sérias do aquecimento global como piora na qualidade do ar devido à concentração maior de carbono na atmosfera, maior proliferação de doenças e colapso econômico.

O livro, portanto, é uma fonte preciosa de informações acerca dos sérios problemas que a humanidade enfrentará caso o processo de aquecimento global prossiga nos níveis atuais, como também revela que pouco tem sido feito até agora para contê-lo: “os cientistas passaram décadas apresentando dados inequívocos, demonstrando para quem quisesse ver exatamente como será a crise no planeta se nada for feito, e depois presenciaram, ano após ano, nada ser feito.” (fls. 192) O autor chega a referir que os acordos do clima de Paris têm “metas bastante modestas” (p. 133) e mesmo assim diz o seguinte sobre o assunto:

“Somente em 2016 os célebres acordos climáticos de Paris – que conclamam todas as nações do mundo a cumprir a meta de aquecimento de 2°C – foram adotados, e a resposta já é desanimadora. Em 2017, a emissões de carbono cresceram 1,4%, segundo a Agência de Energia Internacional, após um ambíguo par de anos que para os otimistas seria um novo ponto de equilíbrio, ou pico; na verdade, era uma nova escalada. Mesmo antes do novo pico, não havia uma única nação industrial importante em vias de cumprir os compromissos feitos no tratado de Paris. Claro, esses compromissos apenas nos reduzem a 3,2°C; para manter o planeta abaixo dos 2°C de aquecimento, todas as nações signatárias precisam se comprometer mais. No momento, há 195 signatários, dos quais apenas Marrocos, Gâmbia, Butão, Costa Rica, Etiópia, Índia e Filipinas são considerados 'dentro da faixa' das metas fixadas em Paris.”

Em Novembro de 2019 os Estados Unidos notificaram a ONU acerca da sua intenção de deixar o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas firmado em 2015. Esse é o primeiro passo formal para a saída dos EUA do Acordo de Paris, o que pode se consumar em 2020. A saída da maior potência capitalista do Acordo de Paris, responsável por praticamente um quarto do PIB global, seria um duríssimo golpe no Acordo de Paris.

O livro de Wallace-Wells não deixa dúvida quanto ao fato de que nem o conhecimento científico sobre as causas e consequências do aquecimento global e nem a tecnologia de energia limpa já disponível são suficientes para a adoção das medidas necessárias à eliminação das emissões de carbono e, portanto, para a contenção do aquecimento global.

Por que, então, com todas as evidências científicas acumuladas nas últimas décadas que comprovam a causa antrópica do aquecimento global, os países signatários do já tímido Acordo de Paris não conseguem cumprir as suas metas? Por que os EUA vão se retirar do acordo, desprezando o entendimento científico já consolidado sobre o tema? Por que a indústria petrolífera financia campanhas de desinformação e negação do aquecimento global, que afirmam, dentre outros absurdos, que não há consenso científico de que ele seja causado pelas atividades econômicas do homem? Por que a nível global subsidiamos o negócio de combustíveis fósseis com 5 trilhões de dólares anualmente? Por que não está havendo a diminuição da indústria de combustível fóssil em razão do crescimento da indústria de energia limpa, como bem salientado pelo referido livro?

Uma boa pista para a real causa da inércia no combate ao aquecimento global nos é dada por Michael Löwy, pensador marxista brasileiro, que ensina que o termo “jaula de aço”, utilizado por Max Weber no livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, é uma alegoria do que é a essência do capitalismo, ou seja, que este é um sistema econômico que determina ferreamente a vida de todos os indivíduos da sociedade; que o sistema do capital tem uma lógica impessoal que determina o destino de todos os indivíduos (impessoal aqui no sentido de que não são as pessoas que comandam, é o sistema que comanda a todos). Segundo ainda Löwy, Max Weber também afirmou que o capitalismo “é uma escravidão sem mestre”, nesse mesmo sentido de que todos que vivem no capitalismo têm de se submeter às regras impessoais do sistema. Assim, a liberdade individual no capitalismo fica muito limitada, é como a liberdade de alguém que está preso numa jaula de aço. (extraído do vídeo “a alegoria da jaula de aço”, de Michael Löwy, na TV Boitempo). O filósofo alemão Karl Marx já havia afirmado a falta de liberdade dos indivíduos no capitalismo nos seguintes termos: o trabalhador tem que se submeter ao assalariamento, pois os meios de produção pertencem ao capitalista; e o capitalista, por força da concorrência, tem que maximizar o seu lucro para sobreviver como capitalista.

A alegoria da “jaula de aço” de Max Weber explica, portanto, que são as leis impessoais do capitalismo que determinam até hoje o fato  realmente desconcertante de que “os cientistas passaram décadas apresentando dados inequívocos, demonstrando para quem quisesse ver exatamente como será a crise no planeta se nada for feito, e depois presenciaram, ano após ano, nada ser feito” para conter o aquecimento global, como bem observado por David Wallace-Wells, que também afirmou em seu livro que “na era moderna, pelo menos, existe a tendência correlata de ver grandes sistemas humanos, como a internet ou a economia industrial, como mais inatacáveis, menos passíveis de intervenção até do que sistemas naturais, como o clima, que literalmente nos cercam. É assim que reformar o capitalismo de modo que não recompense a extração de combustível fóssil pode parecer menos provável do que suspender o enxofre no ar para tingir o céu de vermelho e esfriar o planeta em um ou dois graus. Para alguns, até mesmo acabar com os trilhões de dólares em subsídios à indústria do combustível fóssil soa mais difícil do que empregar tecnologia para sugar o carbono do ar na Terra inteira.” (páginas 196/97) É preciso dizer que o Wallace-Wells obviamente não concorda com tais posicionamentos, mas estes e muitos outros fatos trazidos ao conhecimento do público por seu excelente livro parecem confirmar a hipótese de que é a “jaula de aço” que efetivamente impede o combate efetivo ao aquecimento global.

Sávio Bastos
GPOSSHE
Photo by Marcin Jozwiak on Unsplash