quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O que é o voto útil?


Não vou prolongar a agonia do leitor. Voto útil é voto necessário, oportuno, proveitoso. Levamos em conta as circunstâncias para defini-lo. Votar num determinado candidato numa eleição pode não ser útil, e isso pode mudar na hipótese de outra situação política. Assim, é a situação política, em última análise, que define a utilidade ou não do voto. Tudo depende da análise concreta da realidade concreta e não do desejo pessoal ou de uma boa citação. Posto isso, se não há uma receita para todas as circunstâncias da vida, seguramente isso é válido no que toca a esse debate. Vamos a ele!

 

A DISCUSSÃO

 

Essa discussão surgiu a propósito de um movimento que ganhou corpo nos últimos dias e cuja essência se resume em uma frase: é preciso votar em Lula no primeiro turno para derrotar Bolsonaro, antecipando assim o fim da aflição política que se apossou do país. Esse chamado tem alcançado sobretudo eleitores(as) de Simone Tebet e de Ciro Gomes, mas mesmo pessoas que não pretendem votar em qualquer desses dois nomes entraram na discussão, argumentando que o voto útil esvazia o debate ideológico e rebaixa a discussão política e, portanto, não seria legítimo.

A preocupação com a preservação do lugar da ideologia no terreno da prática política é sempre bem-vinda, mas no caso concreto em curso há uma posição ideológica no voto atribuído a Lula, que é votar para derrotar o fascismo no processo eleitoral. Trata-se de uma tarefa enorme e há uma ideologia que a orienta.

Pode-se argumentar, inclusive corretamente, de que o fascismo é um aparelho mobilizador que só pode ser derrotado nas ruas. Perfeito! E por isso devemos deixar uma avenida aberta aos fascistas no campo eleitoral? Mussolini e Hitler não se tornaram governo por meio de golpes de força, mas por intermédio do voto, isto é, da democracia política, e só depois a destruíram, No caso da Itália, o golpe de misericórdia só foi aplicado no contexto do segundo mandato arrancado pelos fascistas. A história não existe apenas para o deleite de poucos. Ela também é um aprendizado. Ela também é pedagógica, ainda que se repita essencialmente como farsa.

Apesar disso, pode-se argumentar, e outra vez corretamente, que Jair Bolsonaro, até agora, no que toca a uma ruptura institucional, rosnou ferozmente, mas ainda não mordeu. O golpe é mais uma ameaça no ar do que um fato concreto. Todavia, os indícios são muito fortes, ou não? Devemos esperar que ele aplique o golpe de força e só então iremos reagir? Só depois de morder, efetivamente, uma fera é uma fera?

Os trabalhadores, embora não teorizem acerca dos perigos, muitas vezes captam os seus sinais antes de dirigentes e de estratos da vanguarda. Não nos esqueçamos que Luis Carlos Prestes, até a véspera do golpe de 1964, negava a possibilidade de que pudesse ocorrer uma ruptura política de feição militar, arguindo a tradição supostamente democrática das FFAA.

Hoje por hoje, até pessoas que denunciam o golpismo bolsonarista, estranhamente, desprezam de modo olímpico a possibilidade de sequer pensar em defender o voto útil no Lula. No entanto, milhões de trabalhadoras e trabalhadores, notadamente os setores mais explorados da classe, que ganham até dois salários-mínimos, estão com Lula pra derrotar Bolsonaro. Eles identificam em Jair Bolsonaro um inimigo poderoso que precisa ser detido e, de fato, enxergam que só elegendo Luís Inácio Lula da Silva derrotarão esse oponente que inspira temor e ódio de classe.

Há quem fale de luta de classes e menospreze o fenômeno social de que Lula recebe o apoio dos estratos mais espoliados da classe que vive da venda de sua força de trabalho, ao passo que o candidato fascista tem maior apoio entre os de maior renda. Esse dado, aparentemente inocente, é uma expressão dos antagonismos de classe que se manifestam também no terreno eleitoral.

O que haveria de vazio ideológico e de instrumentalismo político inconsequente nessa disputa de classe renhida?  

Pode-se levantar um terceiro argumento no sentido de que tudo isso compõe o contexto das ilusões reformistas das massas. Ora, não vamos fazer a classe trabalhadora se desembaraçar de suas ilusões reformistas desprezando o que há de progressivo em sua consciência: o sentimento de unidade para derrotar a alternativa política fascista.

Nessa perspectiva, os ataques conjugados de Ciro e Bolsonaro a Lula demonstram ser um equívoco tomar por “progressista” a candidatura do PDT, quando ela, no discurso e na prática, não só iguala petismo e bolsonarismo, mas favorece o segundo contra o primeiro. No caso da Tebet, os representes do tal mercado aposta as suas fichas para que, ao fim e ao cabo, ela possa alcançar 5 ou 6% e empurrar a eleição para o segundo turno, facilitando o trabalho das forças do capital no sentido de disciplinar ainda mais o programa de Lula.

Ciro e Tebet representam a probabilidade de um segundo turno no qual Bolsonaro pode ser vitorioso ou derrotado (o mais provável) e Lula vigorosamente disciplinado. Mas não é só isso! A decisão para o segundo turno é também o pior cenário, considerando que ela favorece a estratégia fascista de esticar a corda, acentuar a violência e reforçar as ameaças golpistas junto com o discurso de “ordem unida”. Para quem tem onde passar uma chuva, “o quanto pior melhor” é aceitável, mas para as amplas massas da população trabalhadora, que estão na chuva, esse é um cenário de prolongamento da agonia.

 

O NECESSÁRIO ARREMATE

 

Em suma, toda essa exposição vem no sentido de mostrar a legitimidade da posição ideológica e política de votar contra o fascismo, votando no candidato, dentro do campo da esquerda, que pode vencê-lo. Sabemos que Lula defende hoje, como defendeu antes, um projeto de conciliação de classes. Não fomos nós que mudamos, ou o Lula. O que mudou foi a situação política. E essa situação política historicamente regressiva exige de nós não apenas o voto no Lula, mas a menos de 20 dias da eleição, a defesa do voto útil. E se o útil é o necessário, o que é necessário hoje, a não ser derrotar Bolsonaro e o seu projeto fascista?

 

Fábio José de Queiroz 

Professor do departamento de história da URCA - Universidade Regional do Cariri