terça-feira, 13 de setembro de 2022

Minha participação na resistência armada ao golpe de 11 de setembro

 

I.

O título do texto é pomposo, mas a campanha foi decepcionante. Entretanto, acredito com o poeta que “nada é pequeno, quando a alma é grande”.

Em agosto de 1973, creio que pela manhã, em minha casa, na Calle El Remanzo, nas Torres de Macul, gueto de refugiados brasileiros, em Santiago, escutei estarrecido Salvador Allende acusar a descoberta e repressão de conspiração revolucionária entre os marinheiros chilenos, dirigida pela MIR, organização na qual eu militava.

Enquanto fazia a denúncia pérfida, a rádio silenciou, com a explosão por direitistas de torre de transmissão. Os suboficiais e marinheiros presos e torturados pela oficialidade eram os dirigentes de amplíssimo movimento na marinha chilena em defesa do governo da UP. Participei ao lado de Jorge Magasich, meu colega de curso de História e de militância no MIR, de desmilinguida marcha chamada em defesa dos valentes marinheiros traídos por aquele que pretendiam defender. Compreendi naquele momento que a derrota seria a mais provável resolução do confronto que era agora questão de semanas ou dias

Desde o Tancazo, fracasso golpista de 29 de junho de 1973, com a ocupação geral das fábricas, empresas, fazendas pelos trabalhadores através do país, o confronto militar se tornara saída incontornável para o acirramento extremo da luta de classe no país. Salvador Allende e a direção da UP tentavam conter o inevitável, com todas as formas de concessões, que apenas fortaleciam a direita e debilitavam e lançavam na confusão as forças populares. Allende permitiu que o exército golpista penetrasse em qualquer moradia para procurar armas da esquerda – os chamados  allenamentos!

Após o Tancazo, consciente da proximidade do golpe, tomei duas grandes iniciativas. A primeira, foi um total sucesso. A segundo, pra lá de meia canela.

Em acordo com minha então companheira Sandra, mandamos nossa filha, Marina, bebezinha, nascida em fevereiro daquele ano, para o Brasil. Decisão e separação de dilacerar o coração. Ela foi entregue aos meus pais, no Rio de Janeiro, pela solidária irmã carioca da Dora, que visitara Santiago e voltava para o Rio de Janeiro. Dora era companheira do querido amigo e companheiro João Heredia, sul-rio-grandense, falecido há alguns anos. Os dois eram ex-militantes da POLOP refugiados em Santiago.

A segunda grande decisão foi me armar para o confronto. Não importa o que viesse, pretendia não arredar o pé, mas enfrentar o monstro calçado.

Um antigo amigo rio-grandense, militante da esquerda militarista, andava oferecendo armas a torto e a direito. Vendeu-me uma Beretta, 6.35, lindíssima. Já era alguma coisa, se não fosse as quatro balas do carregador, uma confiável, três enferrujadas. Meu dealer prometeu-me coisa melhor. E me explicou que estavam vendendo por maior preço para a direita, para descontar as vendas para a esquerda. Diante da minha surpresa, disse-me que, se ele não vendesse para a direita, outros venderiam. Não retruquei, para não desagradar o fornecedor. Sua trajetória posterior, como político, no Rio Grande do Sul foi, no mínimo, coerente, com sua estratégia de vendas. Encurtando a história, me trouxe, dias mais tarde, um fuzil semiautomático de calibre 22, moderno, de cano curto, culatra dobrável, e um pente grande com vinte balas. Todas novas! Não era nenhuma Ak-47, que eu nunca vira, mas não chegaria à festa sem nada nas mãos!

Ficamos sabendo do golpe pela manhã do dia 11. Corremos para o Pedagógico da Universidade de Chile, onde estudávamos, e havia farta militância mirista, com alguns dirigentes estudantis, com os quais estávamos bastante estranhados. Com Jorge e alguns outros poucos companheiros, defendíamos que o golpe seria confronto geral, terrível, em que se jogaria o tudo ou o nada, como na Espanha, em dias, talvez em horas. Nos chamavam pejorativamente de “insurrecionalistas”. A direção do MIR, estudantes jovens sem experiência política e suficientes, com os sonhos guerrilheiros normais da época, preparavam-se para uma guerra “longa, dura e prolongada”, nas cidades, nos campos, nas cordilheiras, ao igual que em Cuba ou na China. Deu no que deu, como veremos.

A confusão era geral. As rádios eram silenciadas e passavam para as mãos dos golpistas. Allende transmitiu um discurso derrotista, mandando todos ficarem em casa, dando o golpe por vitorioso. Não deu uma só instrução à população, abandonada a sua sorte. O mesmo ocorreu com os demais dirigentes da UP. Um horror! Poucos dias antes, centenas de milhares de populares e trabalhadores desfilavam pelo centro de Santiago, em apoio ao governo, decididos a tudo. Sobretudo setores de esquerda do PS haviam preparado algumas armas, meses antes. Havia ainda importantes setores constitucionalistas e mesmo de esquerda nas forças armadas.

Ficamos como baratas tontas, discutindo se devíamos abandonar ou resistir no Pedagógico, “covil” da esquerda. Já se ouvia os disparos de armas pesadas, e algumas respostas, de armas leves, possivelmente da esquerda. Na afobação, cruzei com o companheiro Afonso Chanfreau, da direção estudantil do MIR. Perguntou-me, qualquer coisa como, “e agora, companheiro” que fazemos. Eu era mais velho -dois anos!- e vivera o golpe no Brasil. Devia saber algo. Respondi qualquer coisa como não tenho a mais mínima ideia. Nos despedimos, desejando boa sorte. Apenas nos últimos anos se esfumaça minha memória de seu rosto assustado e tenso, certamente um espelho do meu. Seguiu na clandestinidade, foi preso e possivelmente executado em meados do ano seguinte, com 24 anos.

Não recordo como retornei para casa, para me “armar”, e procurar algum local de resistência. Eu era conhecido nas Torres de Macul, por minha militância mirista, na “frente de pobladores”, nas comunidades vizinhas. Havia organizado, meses antes, marcha no estilo mirista, todos em fila, esparsos, para parecer mais numerosos, através da vila Frei, onde a direita tentava disputar o “território” à esquerda, ao lado de nossa “población”,.

Diante da marcha colocamos o companheiro “Dentinho”, o Marconi, sul-rio-grandense, altíssimo e magro, com uma cabeleira negra, crespa, despenteada, vestindo um sobretudo velho que meu pai deixara em uma visita. Carregando um enorme pedaço de pau, que mais servia para assustar -e realmente assustava- do que para golpear. Nos preocupávamos mais com a fila seguinte, onde marchava o companheiro Éder Sader, que insistira em participar, apesar de suas condições de saúde. Estavam na marcha o Turco, o Jaimão, todos sul-rio-grandenses, e muitos outros companheiros brasileiros e chilenos.

–!Pueblo, conciencia, fuzil! !MIR! – gritávamos pelas ruas escuras.

As casas dos “momios” permaneciam na escuridão. Vizinhos da UP saíam para nos aplaudir e alguns aderiam à marcha. Na noite seguinte, os garotos do núcleo juvenil mirista que eu coordenava – operários, desempregados, estudantes – quebraram as vidraças das poucas casas que ainda portavam algum cartaz anti-UP. Logo, logo, os direitistas abandonaram suas casas e procuraram abrigo em território direitista. A vila fora conquistada para a esquerda com alguns gritos e vidros quebrados!

Na entrada da Vila Macul, me parou um companheiro brasileiro ligado também a uma organização armada. Queria informações. Saber as embaixadas que estavam recebendo refugiados. Pedi que me acompanhasse até minha casa e que vigiasse pela grande vidraça da sala enquanto eu retirava a pistola de um respirador da porta da cozinha. Não me recordo onde escondera o fuzil.

No meio da minha operação, ele, assustado, disse que tinha que ir e saiu apressado, deixando a porta entreaberta. Pela grande janela, vi que ultrapassava, de cabeça baixa, um Jeep de caçamba coberta por lona verde-escura, como a carroceria. Não falo do meu susto e angústia. Meu ´glorioso´fuzil, estava ao meu lado. Engatilhei e me propus a dar alguns tiros e sair correndo pela porta da cozinha, saltando o muro para a casa lindeira. O problema que o tiro de 22 não faz quase barulho – e se não escutassem que eu estava atirando!?

O Jeep parou duas ou três casas antes da minha e um companheiro socialista saiu dele, olhou para todos os lados, também assustado, recebeu um pacote de sua mulher e deu meia-volta.

Jamais  esqueci o companheiro brasileiro, que pouco conhecia, saindo de fininho, sem me avisar, esperando escapar antes que começasse o tiroteio.

Peguei meus documentos, cem dólares – que valiam uma fortuna no câmbio negro chileno -, coloquei a pistolinha na cintura e vesti um poncho, que cobria o fuzil, e fui ao encontro dos companheiros e companheiras no Pedagógico.

Muito logo, um caminhão do exército, com uma metralhadora ponto30 no capô, parou ameaçador no portão de entrada do Campus. Com outros estudantes, saímos por porta lateral, caminhando através da avenida Grécia, onde havia um supermercado sob a intervenção da UP.

No grupo estavam, que me lembre, a Sandra, minha companheira, a Nara, sua irmã, o Marconi, talvez o Taradinho e o Daniel, o Guillermo Pedregal, companheiro boliviano, simpatizante do Mir, a quem possivelmente devo a vida. E caminhava conosco o “Pantera”! Não me lembro como se chamava o companheiro. Era negro, magro, de estatura mediana, com uma linda cabeleira “black”. Daí o apelido. Como no Chile quase não houve escravidão e, portanto, racismo antinegro, era uma quase novidade e fazia um sucesso imenso com as estudantes chilenas, que pediam para tocar seu cabelo.

Agora, o “Pantera” era um problemão. Ele marchava conosco, pelo meio da avenida, e do lado mais habitado, “momios” se aproximavam, apontando e denunciando o “cubano”. Eu entregara o fuzil e o poncho para o Marconi, que se pôs à esquerda do nosso grupo, enquanto eu caminhava, à direita, com a pistola engatinhada, rente à parede, rezando para que, se necessitasse, ao menos a melhor bala posta na agulha disparasse. Quando os grupos esparsos de direitistas tentavam se aproximar, o Marconi levantava o poncho e mostrava a “metralhadora”. Era uma debandada só. O “Dentinho” era o único que tinha realmente formação militar, já que servira havia pouco na Polícia Militar do Exército brasileiro, em Porto alegre.

Logo, isso me contaram, o “Pantera” foi posto por alguns chilenos no porta-malas de um carro que percorreu as casas consulares e embaixadas até depositá-lo a salvo em uma delas. Não poucos afro-cubanos ou afro-latino-americanos detidos como tal foram executados, sem delongas.

Informado que, em uma moradia das proximidades estava aquartelado o “grupo de combate” do MIR de meu GPM, ou seja, circunscrição de militância, me dirigi para lá, confiante. Tinha certeza que, armado com um AK-47, um M-16 ou coisa semelhante, que diziam na organização abundarem, estaria pronto para enfrentar o que viesse!

O que me esperava, fica para o próximo capítulo.

 

II

Santiago, 11-12 de setembro: o armamento da revolução, a morte de Allende

 

Não me lembro como achei e entrei na moradia onde estava aquartelado o “grupo de combate” do GPM 3, minha circunscrição de militância, onde pertencia a uma célula de bairro, com Jimena, Mário, Lucho, Roberto e um ou dois companheiros cujos nomes me escapam. E me desempenhava também como coordenador de pequeno núcleo de jovens “pobladores” – moradores. Já lá se vão 47 anos. Foram horas e dias de grande tensão. Aprendi como historiador que a memória nos passa a perna e nos engana, ao seu bel-prazer, fundindo fatos, reorganizando datas, retocando relatos que repetimos diversas vezes. Não raro transformando em realidade o imaginário.

Fui abordado pelo comandante do pequeno grupo aquartelado na moradia popular, de sala, cozinha e dois quartos. Ele era chamado por todos de “Pato Malo”, “Pato Malvado”, apelação muito chilena, com o significado de alguém que bordeja a delinquência, que deve ser temido. Era um mirista jovem, talvez menos de vinte anos, moreno e baixo, que se esforçava para inspirar segurança e autoridade. Há alguns anos, deparei-me na internet com uma foto certamente sua, entre as centenas de miristas mortos pelos militares, no seu caso, creio que nos primeiros meses da ditadura. Eu já um velho, ele, eternamente jovem. Difícil expressar a emoção que me causou.

Pato Malo me conhecia, de ouvir falar. Eram poucos os brasileiros que se integraram organicamente no MIR e à Revolução Chilena. E eu estava ligados ao seu GPM, após militar por alguns meses no grupo do Pedagógico, onde se encontravam jovens rio-grandenses como o Marconi, o Daniel, o Taradinho, o Nílton (Bem Bolado) e o Felipe. Nilton foi morto, antes do golpe, em um confronto com organização fascista. Felipe escapou de Santiago e desapareceu em Buenos Aires, onde seguiu militando, ligado à Junta de Coordenação Revolucionária, tentativa de colaboração de organizações militaristas do Cone Sul, então sob duros golpes.

Pato Malo perguntou-me se tinha formação militar, antes de me aceitar no grupo. Disse que não, mas que atirava bem, de revólver e de espingarda, no que não mentia. Ainda guri, na fazenda de uma tia-avó, atirava amiúde com escopeta de caça, de dois canos, calibre 16, contra as caturritas que voavam nos pinheirais, após se saciarem nos milharais. Ao fazer 18 anos, comprara um 38 e, logo, um fuzil 22, de cano longo, carregador curto, de munição barata. Saía com ele para o campo e matava tudo que encontrava pela frente – quero-quero, joão-de-barro, chimango, ratão do banhado e por aí vai. Poupava as capivaras apenas por jamais ter me defrontado com uma. Coisa da idade e da época, que me horroriza e me envergonha ainda hoje.

Pato Malo alegrou-se com a aquisição do combatente e, sobretudo, logo compreendi, com o que o novo ´guerrilheiro´ portava. E foi ali, em forma quase imediata, que ruíram as expectativas que me levaram a procurar o núcleo armado mirista. Num rápido relance de olhos, vislumbrei o´arsenal´do nosso grupo, em uma mesa, junto a uma parede, sobre uma bandeira do MIR, rubro-negra, como a do 26 de Julho, cubana, que inspirava nossa direção, atrapalhada entre os sonhos guerrilheiros e a luta de classe real. Sobre a ´artilharia´de que  que dispúnhamos, falo a seguir. Mas compreendi, sem delongas, os olhos grandes que Pato Mato lançava sobre meu humilde fuzil.

Disse-me logo que as armas eram centralizadas. E sem muito mais, avançou a mão para meu fuzil semiautomático 22, com os olhos brilhando. Desde então, se passou de um lado para o outro, com a arma na mão. E, insaciável, apontou para minha pequena Beretta 6.35, à vista em minha cintura, pois retirara o poncho ao entrar na casa. Salvou-me a presença de espírito nascida do desespero. Falei-lhe claro, com autoridade de brasileiro que vivera sob a ditadura militar, o que não queria dizer nada, convenhamos. Com voz alta, falei, para ser escutado por todos - “Lei da guerrilha impede que o combatente seja despojado de todas as suas armas!” Pato Malo um pouco espantado, desculpou-se. Não conhecia aquela determinação guerrilheira que eu inventara, desesperado. E eu saí de fininho, com minha pistolinha, agora enterrada no bolso, quase escondida, para examinar o armamento ´grosso´ de nosso grupo.

Aproximei-me da mesa, junto à parede. Mentiria se descrevesse todas as armas em detalhes. Mas não erro no essencial. Elas se compunham de duas ou três espingardas velhas e desconjuntadas, em geral de caça, mas ainda, creio, funcionando, e uns dois ou três revolveres também veteranos. Um deles tenho ainda diante dos olhos, ao escrever essas recordações, por me ter causado uma profunda surpresa e definido de certo modo a realidade dos fatos. Repito que, no presente relato, procuro dar uma ordem lógica às minhas lembranças, que obedeça minimamente aos sucessos que vivi naqueles dias terríveis.

Nos filmes sobre o faroeste estadunidense, que assistia nos cinemas em Porto Alegre – qaudno era guri, não havia filmes na televisão-, sobretudo quando dos esperados e emocionantes duelos, os caubóis sacavam a arma com a mão direita e a engatilhavam, batendo com o dorso da mão esquerda sobre o gatilho, para após atirarem. Não compreendia a razão do ato. Ao manipular o, acho, Colt 45, tive a resposta imediata. Havia que engatilhar manualmente, para após apertar o gatilho e disparar. Tinha diante de mim revólver de talvez meados do século 19, com três balas que seriam as avós das da minha Beretta 6,35!

Nosso grande recurso bélico era  dúzia, ou mais, de granadas artesanais de trotil, ou seja, TNT, estabilizadas com algum composto sólido que não me recordo mais qual fosse. No topo, tinha uma espécie de pavio, a ser acendido, antes de serem jogadas contra o inimigo. Eram fabricadas pelo próprio MIR, que almejava a autossubsistência no relativo ao armamento, me explicou Pato Malo. E, quase rindo, me informou que as granadas eram chamadas de “fifty-fifty”, já que apenas cinquenta por cento explodiam, após serem lançadas. Nos dias que seguiram, até minha desmobilização, em uma Santiago já totalmente subjugada pelo golpe, portei comigo minha pistola, minhas quatro balas e três daquelas granadas, que pareciam velas brancas de cera, na cor e na dimensão.

Perguntei ao Pato Malo porque o grupo não estava melhor armado, já que tudo, há meses, apontava para o golpe. Se eu conseguira duas armas funcionando, porque eles não haviam feito melhor. Disse-me que as melhores armas -que mais tarde soube serem muito poucas- estavam centralizadas e que a filosofia militar da organização não era comprar armas, mas conquistá-las em batalha.  Cada vez mais assustado com o surrealismo e a incompreensão política total da situação pela direção do MIR, não sei o que pensei na hora. Mas foi certamente qualquer coisa próximo ao samba-canção de Noel Rosa: “Com que roupa que eu vou, pro samba” a que os golpistas nos convidavam!

Mudamos logo da casa de aquartelamento, sob o perigo de sermos denunciados, para uma segunda moradia, com os fuzis enrolados em cobertores leves, as granadas distribuídas entre os membros do grupo, que seriam, creio, em torno de  uma dúzia. Marchava atrás do grupo, com minha pistolinha. Pato Malo ia na frente, com meu fuzil. Dois ou três companheiros haviam tomado outra orientação. Nos recebeu uma companheira, em uma casa de classe média, de dois andares, bem mobiliada em relação às anteriores e posteriores, na periferia da “población” onde estávamos.

Sabíamos que o Palácio da Moneda estava cercado e resistia. Ouvia-se tiros por todos
os lados, na cidade. As informac
̧ões chegavam à conta-gotas e desencontradas. Na época não havia celular nem WhatsApp! Mais tarde, sobretudo à noite, ouviam-se entre
os disparos, muitos gritos de mulheres. Logo, a rádio noticiou a morte de Allende, confirmada por um companheiro que trouxe informac
̧ões e confabulou em um canto com Pato Malo. O desalento da companheira proprietária da moradia era de cortar o coração. Chorava como uma criança. Recriminava-se por ser apenas uma pequeno- burguesa progressista, creio radical de esquerda.

Repetia que não queria viver, sem seus companheiros de partido, sem sua marchas, sem a Unidade Popular. Repetia que fora uma pequena-burguesa que “acaparara” -estocara- o que pudera, para não lhe faltar alimentação. Foi na sua casa que realizamos a última refeição digna do nome daqueles dias. Até chocolate comemos! O café era o chileno, tradicional - Nescafé, batido como gemada, com um pouco de água e açúcar, antes de verter a água quente. Um horror! A companheira repetia sem cessar, desolada, o nome de Allende, usando um diminutivo carinhoso – Mi Allendito, mi Allendito! Intuía com precisão os longos anos que se seguiriam.

Já no exílio, na Bélgica, fiquei sabendo que, pela tarde do 11 de Setembro, a direção do MIR mandara sua militância recuar, para preparar-se para a guerra “dura, longa e prolongada”, ou o que seja, que diziam que seguiria ao golpe de Estado e ao massacre e repressão que ele impôs. Guerra que jamais aconteceu, nem de perto, após a terrível derrota geral de setembro. Pato Malo teria recebido a instrução e se negado, possivelmente a obedecê-la, ou interpretando-a ao seu modo. Fazendo jus ao nome que portava, seguiu por uma semana, tentando combater, com seu grupo de jovens corajosos, desesperados e semi-desarmados.

A seguir, o grupo se dividiu em três, para passar desapercebido. Como era militante e mais velho, coube-me o “comando” de três jovens, de uns dezoito anos, e olhe lá, trabalhadores na construção. Entretanto, creio que na tarde de 12 de setembro, antes da divisão, possivelmente já em uma nova moradia, preparamo-nos para uma iniciativa militar. Assaltar um ´retén´ de  carabineiros, ou seja, um pequeno destacamento de qualquer coisa semelhante à polícia militar brasileira.

Pato Malo explicou o plano: atacarmos de todos os lados e apoderarmo-nos das armas em combate, como na bela canção ´Oltre il Ponte´, de Italo Calvino, sobre jovens guerrilheiros comunistas italianos, entre  os quais ele se encontrava, que descem a montanha com poucas armas, mas armas que funcionavam, para atacar destacamento alemão. Como as nossas armas, que eram quase nada, e de funcionamento apenas provável Pato Malo escolheu cinco ou seis do seu grupo original, com os revólveres e espingardas que dispúnhamos. Vejo-o ainda saindo pela porta. Talvez me engane, mas acho que foi a última vez que vi o companheiro e, com ele, meu fuzil semiautomático 22! A descrição do resultado do assalto dos membros do GPM 3 fica para amanhã.

 

III

Santiago, 12-13 de setembro: O refúgio evangélico. O prato de canja

 

Nosso subgrupo de quatro companheiros procurou um primeiro abrigo em uma moradia da ´población´. Uma casa muito simples, popular, em um conjunto de construção populares. Não recordo bem quem nos acolheu, apenas que permanecemos ali por pouco tempo. O toque de queda fora estabelecido. Gritos eram ouvidos durante a noite. Os disparos, talvez apenas menos fortes, seguiam intermitentes, de focos de resistência isolados. As notícias poucas que recebíamos eram desencontradas. Fala-se de resistência no Sul, às vezes no Norte.

Esperávamos ansiosos notícias do grupo de ataque comandado por Pato Malo e do resultado da ação planejada. A expectativa fantasiosa do grupo era que tivesse sido um sucesso e os companheiros voltassem portando alguns fuzis dos carabineiros. Com eles, reunidos os três-sub-grupos, passaríamos talvez a ações mais ambiciosas. Realista, eu esperava com o coração apertado companheiros feridos e talvez mortos no ataque quase suicida. Não acreditava ser possível pescar sem rede.

Pouco antes de abandonarmos a casa-abrigo, um companheiro chegou com a informação. Na boca da noite, o grupo tentara se aproximar do ´Retén´. Na esquina de uma avenida, depararam-se com uma patrulha do exército, não muito longe. Pato Malo teria dado ordem de fogo ou o grupo disparara com o que tinha sem esperar, para dar imediatamente meia-volta e correr por onde tinham vindo. Por sua vez, o sargento e os soldados teriam corrido em direção oposta, talvez sem sequer fazer uso de suas poderosas armas. Fiquei contente que ninguém tivesse sido ferido e que meu fuzilzinho tivesse tido seu batismo de fogo! Muito barulho não teria feito, o coitado. Até a desmobilização do nosso grupo, uns três ou quatro dias mais tarde, aquele teria sido o único confronto. A partir dali nosso grupo —e certamente os dois outros—, dedicaram-se a escapar do rastreamento que destacamento da Aeronáutica fazia na ´población´, informado sobre nossa presença, a espera de podermos dar um ´bote´, que já sabíamos ser impossível.

Recordo-me mal dos companheiros do meu grupo, à exceção de um jovem, em torno dos dezoito anos, operário da construção, morador da ´población´na qual nos movíamos. Nos fatos era ele que comandava o grupo, estabelecendo contatos com amigos de sua idade, apontando as casas em que podíamos chegar e os locais em que podíamos nos esconder. Porém, tudo me comunicava e para tudo me consultava, disciplinado. Não me recordo seu nome político. Podia ser Pablo ou qualquer outro.

Levávamos conosco minha pistola, um pequeno e velho revólver sem munição, se não me falha a memória, e umas seis indefectíveis granadas ´fifty-fifty´. Pela tardezinha, Pablo me apresentou dois jovens, em torno dos dezesseis anos, mal vestidos, mal calçados, magros, mas elétricos, falando um´castellano´pra lá de popular. Disseram-me que vinham informar aos companheiros´miristas´que um pequeno grupo de jovens ´cogoteros´ “momios” estavam informando os´pacos´ sobre os locais em que nos encontrávamos.

´Cogotero, em chileno popular, tinha o sentido de assaltante de rua. A explicação folclórica que me deram, logo que cheguei ao Chile, em fins de 1970, era que os ´cogoteros´ se escondiam entre as ramagens das árvores para te pegar pelo “cogote”, ou seja, pela nuca, para te assaltarem. Em Santiago não há muitas árvores. Mas confesso que, nos primeiros tempos, olhava para elas, com dificuldade de saber como alguém podia se esconder entre seus ramos!

Os dois rapazes estavam exultantes por estarem em contato com um grupo do MIR e, ainda mais, conversando com um ´guerrillero´ estrangeiro, falando em espanhol com um sotaque miserável. Perguntei se eles não podiam dar uma sacudida nos ´soplones´ (informantes). Disseram que sim, qualquer coisa como ´al tiro´, ou seja, é pra agora, e saíram ainda mais excitados. Pablo me explicou que os jovens ´desviados´ da ´población´ estavam havia muito rachados, com uma forte ala allendista e um núcleo pequeno de direitistas! Aquela história terminou, talvez, em forma dramática, como veremos oportunamente.

Quando saíram, começara a anoitecer. Sem esperar muito, Pablo nos conduziu para uma casa ao fundo da “población”. As casas pelas quais passavam estavam na escuridão. Raramente se via alguém na rua. Por fora, a moradia diferia-se apenas das demais por seu pequeno pátio dianteiro repleto de objetos usados dos mais variados tipos. Atendeu-nos à porta e nos fez entrar um senhor, já idoso, magro, alto e ereto, de clara ascendência espanhola.

A casa denotava uma pobreza maior do que as demais. Na sala, havia apenas uma mesa, rodeada por cadeiras irregulares. Uma porta dava para a cozinha, ao fundo, e duas outras para os dois quartos. Havia um velho sofá, meio estropiado, coberto por um cobertor, e uma cômoda, onde depositamos nossas ´fifty-fifty´.

O senhor se dirigiu a mim pedindo que cobríssemos as “granadas”, pois sua “companheira” era muito nervosa. Ele não tinha medo delas, disse sorrindo, pois trabalhara por longos anos, quando jovem, nas minas do norte, como ´dinamitero´. Levantei-me e cobri as ´meninas´ com meu poncho colorido, cheio de franjas.

A esposa do nosso anfitrião, uma velha  senhora pequenina e magra, apenas um pouco mais jovem que o marido, nos trouxe da cozinha xícaras de um chá que já era quase apenas água quente. Ela portava tranças, tinha fortes traços somáticos e se vestia como mapuche, o povo originário do sul do Chile que conquistara, na esteira da Unidade Popular, parte das terras que lhes haviam sido roubadas, desde a colonização espanhola. Elas seriam perdidas, com o golpe, e os mapuches seguem até hoje na mesma luta, sob enormes dificuldades.

O senhor se desculpou por não haver mais açúcar. E disse algumas palavras para a esposa que, muito tímida, serviu-nos e voltou para a cozinha, sem proferir uma palavra. Aos poucos, foram chegando três ou quatro crianças, de uns seis a doze anos. O senhor contou-nos que eram seus netos, que ele criava. Trabalhara no salitre, no cobre, na construção, quando se mudara para Santiago. Agora, sem pensão, trabalhava de “papeleiro”, ajudado pelo neto mais velho.

Levantou-se, buscou na cômoda uma Bíblia e perguntou se queríamos rezar. Não insistiu, quando viu nosso embaraço. Disse que era evangélico e, desde jovem, comunista. Apontou para a parede onde havia uma imagem, muito colorida, de Jesus Cristo e, ao lado, uma gravura emoldurada de Recabarren, o fundador do Partido Comunista de Chile, que conhecera, nos disse orgulhoso. Confessou que tinha mais de oitenta anos, mas continuava rijo e trabalhador.

Enquanto falava de sua vida, sua companheira colocara na mesa quatro pratos. Fomos convidados a nos sentar. O velho senhor desculpou-se pela ´cazuela´ rala – o tradicional ensopado chileno de carne ou peixe, com verduras, batata e arroz. Qualquer coisa como uma canja brasileira incrementada. Lembro que tinha algumas batatas, um pouco de arroz, ervas. Diante do prato servido, me desculpei por não ter, realmente, fome. O senhor, sorrindo e paternal, me disse que comera, gostaria. Não necessitava ser muito sensível para notar nossa enorme tensão.

Levei a colher à boca e foi como se provasse o néctar dos deuses escorrendo, quente e substancioso, por minha garganta. Quando me preparava para me lançar voraz sobre meu prato e atacar a batata que me coubera, Pablo me assinalou, em voz baixa, a senhora e as crianças, ao longo da sala, encostados na parede. Ninguém aqui comeu e essa é a comida que há – completou, quase murmurando.

Observação discreta de jovem trabalhador com sensibilidade aguçada para a situação dos segmentos mais pobres da população que conhecia de perto. Em verdade, o único que começara a comer era eu. Envergonhado, me dirigi ao nosso anfitrião, na cabeceira da mesa, com o prato vazio, já que não se servira, pois a ´cazuela´realmente era pouca. Disse-lhe que as crianças não tinham comido. Que não podíamos comer. E mais uma vez, conheci reeducação proletária sumária, diante do melhor caldo que comi durante toda a minha vida.

O senhor falou alto e forte, quase autoritário, para mim e para os três outros companheiros: – Comam. Vocês têm que se alimentar. Vocês estão lutando por nós!

Era ainda cedo, mas não me aguentava acordado. Não dormira nada na noite anterior, a razão, não me lembro. Tiroteio, gritos, o golpe avançando, a resistência que não se via, e eu sem saber onde me meteria a seguir.

O senhor propôs que repousasse no quarto. Havia diversas camas, quase uma ao lado da outra, onde dormiria toda a família. Ao ir ao banheiro, mais tarde, me enganei de porta, e vi que o outro quarto servia de depósito sobretudo para velhos trapos e papel. A limpeza dos cobertores sobre a cama era precária. Apesar de as noites de setembro serem frias no Chile, estendi meu poncho sobre a primeira cama e me deitar sobre ele, calçado. Creio que durante todos aqueles dias, jamais descalcei a botina que portava.

Pensei que não dormiria. Seguiam-se escutando tiros, rajadas de metralhadora, gritos agudos de mulheres. Caí em um sono profundo, enquanto era devorado por todos os tipos de insetos domésticos possíveis. Dormi talvez duas horas. Pablo veio me acordar. Tínhamos que abandonar a morada. Um dos jovens ´cogoteros revolucionários´ viera avisar que os ´pacos´ sabiam que estávamos naquela zona da “población”, devido ao ´soplones´. Mas que isso não se repetiria. Eles se ocupariam – dissera.

Juntamos nossas granadas e partimos. E, já sem muitas alternativas, nos dirigimos para uma casa-refúgio do MIR, que fora abandonada, ao início do golpe, por estar possivelmente “queimada”, não muito distante, em um bairro mais remediado. Na porta, o velho senhor, desejou-nos sorte na luta e despediu-nos com um: – !Váyanse con Dios!

Caminhamos pelas ruas da “población”, iluminadas por uma lua maravilhosa, correndo rente às casas, por ruas estreitas, semiabaixados, parando nas esquinas, atravessadas um por um, para não sermos abatidos, todos, no caso de uma rajada. Eu ia na frente, de pistola em punho, já semiconsciente da situação sem volta em que nos encontrávamos. Seguiam os tiros e os gritos.

Duas vezes vimos passar, lentamente, poucas quadras distantes, pelas ruas mais largas, veículos das forças armadas, de luzes apagadas. Entretanto, não sei por que, a angústia que sentia, entre as paredes das casas onde nos abrigávamos, desaparecia, como por encanto, ao sairmos à noite, em pleno toque de queda. Sentia um enorme alívio, como se a aragem fria e a semiescuridão da noite nos abraçasse e protegesse.

Na casa-refúgio se encontravam dois outros companheiros, não me lembro se de nosso grupo original. Nos dividimos em turno, para vigiar a entrada, agachados junto ao muro, com a Beretta 6.35, pronta, em teoria, para disparar, se necessário. A via de retirada era pela porta dos fundos, saltando o quintal da casa lindeira, em direção a um arroio próximo.

Pablo veio me encontrar, no meu turno, trazendo alguns cigarros, com filtro, de um maço que os dois companheiros haviam trazido e socializaram com os que fumavam. Um verdadeiro tesouro. Naquele então, eu fumava como um morcego. De Pato Malo e seu grupo, não tínhamos notícias. Acendi um cigarro, procurando que ele não denunciasse nossa presença. Subitamente, vi um vulto se aproximando em nossa direção, na escuridão, desde o outro lado da rua, a uns cem metros.

Quando meu coração já disparava, Pablo me tranquilizou. Eram companheiros do MAPU, que tinham uma sede na casa de janela semiiluminada por uma réstia de luz, na esquina. Em verdade, era a única que não estava mergulhada totalmente na escuridão. O MAPU era um grupo de esquerda, com alguma força entre a classe média e no campo, que rompera com a esquerda da Democracia Cristã e integrara a Unidade Popular.

O companheiro caminhava pela rua, com passos pequenos e tranquilos, em nossa direção, o que já era pra lá de estranho. Mas sobretudo me causava curiosidade os volumes que trazia, na mão direita, com o braço semi-alçado, e na esquerda, rente à perna. Seriam armas? Não eram, não! Era coisa melhor. Mas o que era, revelaremos apenas, no nosso próximo capítulo.

IV

Santiago, entre 14 e 16 de setembro: Feijão com linguiça e o galo no poleiro

Com toda a calma do mundo, como se fosse uma noite como qualquer outra, em um dia tranquilo dos primeiros meses do governo da Unidad Popular, que já não mais existia, empurrou com o pé a pequena porta de ferro do pequeno pátio dianteiro, e parou, diante de nós, agachados, como se estivéssemos em plena guerra civil!

– Buenas noches, compañeros! Vimos que vocês entraram no local do MIR e acreditamos que talvez não tivessem nada para comer. Dito isso, depositou a panela pesada, tampada, ainda quente, que portava na mão direita, já cansada, sobre o muro baixo atrás do qual tentávamos nos esconder. Na outra mão, trazia uma garrafa de vinho, intocada, pronta para ser bebida, com metade da rolha para fora do gargalho.

 Temi que o companheiro solidário acendesse um cigarro e se sentasse a fumar no murinho, junto à calçada da casa que certamente os moradores da rua e do bairro sabiam ser esconderijo do MIR. Convidei-o a entrar. Agachados, vencemos os poucos metros do pátio dianteiro, de terra seca, que nos separavam da porta. O companheiro nos seguiu, ereto, sem perder a pose, com uma tranquilidade que não era fingida. Na panela, feijões chilenos -brancos- com linguiça! O vinho era uma garrava de Gato Negro, da vinícola San Pedro.

O companheiro viera pedir notícias, saber se tínhamos armas – seu grupo seguia aquartelado, sem saber o que fazer. A direção do MAPU mandara recuar, creio. Não se demorou muito. Desejou-nos boa sorte e despediu-se com um Venceremos! Saiu pela porta e atravessou a rua, para nosso horror, com a calma e tranquilidade com que chegara.

Menos de uma hora mais tarde, novamente junto ao murinho, dando guarda  com minha Beretta 6.35 a entrada do nosso ´esconderijo´, vi a porta da esquina se abrir, iluminando outra vez aquela parte da rua, e o mesmo companheiro se dirigir em nossa direção, com a mesma tranquilidade. Ao chegar aonde eu estava, perguntou, sempre de pé: – Já terminaram os ´porotos´? Vim buscar a panela. É da companheira minha mãe.

Fui buscar a panela, na qual não sobrara um pobre ´poroto´, e entreguei-a, não esquecendo a tampa, para que não voltasse, desejando-lhe novamente boa sorte. Abaixado, no local de vigilância, acompanhei já quase despreocupado o companheiro de “santo forte”, que atravessou a rua sem acelerar o passo um momento sequer, levando na mão a panela recuperada.

Dos dias seguintes ao 11 de setembro, em que a Revolução Chilena ruía em frangalhos, e eu junto com ela, tenho recordações gravadas à fogo na memória. Porém, jamais consegui reorganizá-las em forma cronológica, orgânica. Recordo fatos determinantes sobretudo em blocos, autônomos, com dificuldades em encadeá-los. Descrevi aqui os que mais me marcaram naqueles dias.

Nessas recordações seguras, há interpolações, fluídas, um pouco sem escoras, ou demasiadamente ´redondas´. Minha prática de historiador me obriga a hipotetizar que sejam acréscimos ou retoques inconscientes na sintaxe de minha memória dos acontecimentos. A garrafa de vinho é líquida e certa. Lembro-me em não ter abusado nos três goles que dei, maravilhosos. Mas o fato de ser um Gato Negro, meu ´vinito´ preferido, que bebia na meia-garrafa, uma no almoço, outra no jantar, já me parece de mais. Não assino em baixo.

Não cofio plenamente na veracidade da notícia que recebemos, não sei quando, não sei onde, não sei de quem, que dois dos ´soplones´que nos infernizaram a vida haviam sido encontrados, com as mãos atadas, degolados, na praça central da ´población´,onde estivemos a maior parte do tempo, como uma mensagem de claros objetivos pedagógicos, enviada pelos ´cogoteros del pueblo´. Mas, “se non è vero, è ben trovato.”

Em verdade, sequer sei quantas noites passei pulando de casa em casa, naquele vai e vem desesperado. Nara, irmã de Sandra, minha então companheira, acaba de me propor que eu teria estado fora uma semana. Parece-me um pouco demais. Talvez  quatro, cinco, ou no máximo seis dias. Não sei também se os sucessos que passo a narrar ocorreram antes ou após nossa parada no local ´clandestino´ do MIR, no qual nos demoramos pouco por razões de segurança.

O golpe se consolidava, com resistência frágil e esparsa e não organizada, e crescia a dificuldade de encontrarmos onde ir. Outra vez, foi Pablo que apontou a saída. Falou-me de canteiro de obra na borda do bairro em que estávamos, onde se construíam alguns alojamentos ou coisa parecida. No meio do amplo terreno, havia um barracão de madeira, onde se guardavam as ferramentas e dormiam alguns trabalhadores. Podíamos passar a noite ali.

Perguntei-lhe se havia alguém ainda dormindo no barracão e se eram de esquerda, confiáveis. Respondeu-me que a maioria dos operários voltara para casa, fora dois ou três. Sobre eles, não sabia se tinham militância e qual era, mas os garantia como confiáveis. Eram conhecidos seus e, sobretudo, trabalhadores.

A descrição feita no relato anterior, do nosso pequeno grupo correndo encurvado pelas ruas menores do bairro, sempre à noite, rente às portas e janelas, aos muros baixos de tijolo ou às grades de ferro das moradias, cruzando as esquinas, um a um, comigo à frente, com minha ´poderosa´ Beretta 6.35, capaz apenas de um só tiro provável, de pouco alcance, mas que nos dava uma segurança, ainda eu irreal, foi um´script´ vivido mais de uma  vezes.

A diferença é que, dessa vez, articulo com facilidade essa aproximação até o limite do bairro. Ele era delimitado por uma rua longa e larga, margeada por um fosso não muito profundo, que corria rente a uma rede de arame de uns três metros da altura. Creio que eu era acompanhado apenas por Pablo. Ou seja, talvez tenha sido precisamente a última noite, após termos recebido instruções peremptórias do MIR de nos desmobilizarmos, como a imensa maioria do partido fizera, sob ordens da direção, ainda na noite do 11 de setembro. Explico a seguir a razão dessa possibilidade.

Combinamos a arriscada travessia da quase avenida. Abaixado, corri rápido até o fosso, onde, deitado e voltado para a rua, esperei que Pablo me seguisse, protegendo-o sempre com a ´briosa´ Beretta engatilhada. Creio que não éramos acompanhados pelos dois outros companheiros. Pablo passou e, ágil, começou a subida da cerca de arame trançado, o que causava um ruído infernal, no silêncio da noite, cortado, ao longe, por gritos, tiros isolados e de metralhadoras.

No preciso momento em que Pablo passava a perna para o outro lado, entraram pela esquina, a não mais de uns trinta metros, um Jeep com uma metralhadora pesada, seguida por um ônibus, do qual se viam apenas, nos dois costados, nas janelas, os cascos de combate e canos de fuzis. Os veículos vinham de faróis apagados. Olhei rapidamente para Pablo, cavalgando a rede divisória, iluminado pelo magnífico luar. Imóvel, parecia um galo orgulhoso no seu poleiro, para descrever a cena com um pouco de compaixão para com o amor próprio do querido companheiro. Meti minha cara na grama, já descrente da pistolinha. Ia ser um massacre, a queima roupa, a uns quinze metros de distância.

Senti apenas o ruído dos veículos se aproximando e, a seguir, rufando, diante de nós. Naquele momento, certo da morte, não pensei em nada glorioso ou épico. Pensei apenas que nunca mais veria minha filhinha Marina. E, como chegaram, os veículos malditos passaram, sempre se arrastando, e seguiram, e se afastaram, levando os oficiais, suboficiais e praças, certamente para cometerem outros crimes contra a população que os alimentava.

Até hoje pergunto se saltei a cerca, em um só pulo. O certo é que me lembro apenas de me encontrar, magicamente, do outro lado, correndo como um desesperado, com Pablo na minha frente, a poucos metros, até junto ao barracão.

Sentámo-nos ao lado de um barril velho de metal, com a água, quase pelas bordas, usada para fazer cimento. Peço licença aos leitores e leitoras brasileiros para tentar reconstruir, em castellano, o diálogo que tivemos.

Pablo me disse, sério: – Compañerito, me cagué de miedo! E eu lhe respondi: – Yo también, compadre. Un miedo bestial! E ele respondeu, pronto: – No, compadre, me cagué mismo!

E, à continuação, tirou as calças e a cueca, e com o ´poto´ – bunda– branco e desnudo refletindo o luar, passou a lavar com cuidado as peças do seu vestuário de jovem trabalhador, feridas não mortalmente no combate inglório.

Protegidos pela distância, não conseguíamos parar de rir, talvez pelo incomum da cena, talvez por termos escapados vivos. Foram os únicos momentos de alegria profunda e total que vivi naqueles dias, nas semanas e meses seguintes, que me recorde.

Lembro-me que víamos no horizonte próximo, explosões fortes, talvez de canhões, acompanhadas de tiros de metralhadoras e fuzis. Vinham da direção da Nueva La Habana. Já não mais rindo, Pablo me assegurou que não era um ataque à ´población´ miserável fundada e dirigida pelo MIR, odiada como nenhuma outra pela direita chilena. Os companheiros moradores e militantes a abandonaram ainda no dia 11, pela manhã – me assegurou.

Os disparos eram tantos que pareciam fogos de artifício, festejando o massacre de um povo, de suas ilusões e de suas esperanças.

V
Santiago, setembro de 1973: A desmobilizac
̧ão. Discos e livros queimados. Sem saída

 

A derrota se instalara. Ouviam-se apenas tiros isolados. A ordem peremptória era de desmobilizarmos. O que já ocorria nos fatos. De nosso comandante Pato Malo não tivemos notícias precisas. Recebi ontem, da Flaca e do Flaco Magasich, a informação de que se chamava Mario Maureira Vasquez, aprisionado, preso, torturado e desaparecido em agosto de 1976. Ou seja, seguiu militando e combatendo ainda por três anos. Ao ser detido, portava uma arma sem munição. É fabular muito poder ter sido a minha Beretta 3.65? Tinha, então, 23 anos. Dezenove, em setembro de 1973. Pato Malo era daqueles que não articulavam as palavras rendição e desistência. Escreveu com fogo seu nome na história da resistência chilena.

A informação era que os militantes miristas ficassem no país, mesmo os mais conhecidos. Deviam se preparar para a luta armada dura, irregular e prolongada, que se transformou em um massacre de militantes que apenas ensaiavam ofensiva irreal, sob o refluxo popular total após a terrível derrota. Tornaram-se peixes grandes e destemidos nadando fora da água. A exceção eram os militantes estrangeiros, como os brasileiros, que deviam se arranjar na procura de um consulado ou embaixada. Mas como e onde encontrar refúgio! Não tinha a mais puta ideia.

Pela manhã, bem cedo, Pablo me acompanhou até quase a entrada da vila Torres de Macul, já que morava, acho, nas proximidades. Para disfarçar, portávamos a tradicional sacola para comprar pão, de fio de náilon, com argolas coloridas de plástico. Cruzamos sem sequer trocar olhares com companheiros conhecidos do MIR, do PS, do PC, do MAPU, cada um com sua sacolinha na mão, tentando também passar despercebidos, no meio dos moradores assustada que ia realmente à procura do pão.

Era uma manhã triste e fria. Para fazer um pouco de literatura, diria que levava a morte no coração.  A grande possibilidade era que tudo terminasse mal, para o Chile, a médio e longo prazo, e, no imediato, para mim. Mas tudo que é ruim pode piorar. Ao passarmos por dois ´pacos´, a ´fifty-fifty´ que levava na cintura escorregou por dentro das calças, ao longo da perna direita. Quando parei imobilizado, Pablo deve ter visto ela quase à mostra, mal coberta pela bainha da calça. Se pôs diante de mim e eu, fazendo que atava o cadarço, coloquei-a no bolso largo da japona que vestia. O espalhafatoso poncho não sei onde deixara.

Nos despedimos ao pé da vila Torres Macul. Passei-lhe a granada artesanal, a Beretta 6.35, cinquenta dos cem dólares que portava. Naquele momento, a cotação da moeda no mercado negro despencara. Pablo quis saber o que faria. Perguntei-lhe onde ficavam as embaixadas. Também não tinha a menor ideia. E o problema era como chegar até elas! Disse que me arranjaria. Eu me encaminhei para o meu lado, ele para o dele, sem olharmos para trás.

Desde a manhã do dia 11, a Junta Militar abrira caça aos estrangeiros, sinalizando que o golpe era contra os não-chilenos marxistas, sobretudo os cubanos, que descaminhavam Chile. Para comprometer os soldados na repressão, liberaram o roubo, o estupro, distribuíram anfetaminas. Estudantes, turistas, visitantes estrangeiros conheceram vexames inimagináveis e mesmo a morte. Naqueles dias, todos os gatos passavam por lebres.

Já no dia 11, as embaixadas e consulados, sob a pressão internacional, abriram-se para receber seus nacionais e refugiados de todas as as origens, muitos com suas famílias. Mesmo as representações diplomáticas de ditaduras bestiais deixaram os portões semiabertos. Muito logo, as próprias residências dos diplomatas estavam entupidas de refugiados. Apenas duas nações mantiveram cerradas as portas de suas representações em Santiago.

A colônia brasileira, pouco articulada com a realidade chilena, reagiu em forma diversa ao golpe. O querido João Heredia, esperou em casa, como muitos outros, firme, o desdobramento dos fatos. Terminou preso ao sair à rua para comprar cigarros. O cigarro terminaria matando-o, décadas mais tarde, de câncer. No Estádio Nacional, em uma salinha, um enorme sargento lhe mandou tirar as botas e passou a atirá-las contra as paredes e a chutá-las, enraivecido. Heredia teria pensado assustado o que o homenzarrão faria com ele, se tratava tão mal seus sapatos! Um pouco cansado, o sargento mandou-lhe calçar-se e o despediu. No mesmo dia, um companheiro chileno comentou-lhe a sorte de ter sido interrogado por seu irmão, sargento não me recordo de que arma, militante socialista raiz.

Houve brasileiros solidários com o país que os recebera. O saudoso Paulo Roberto Telles Frank, ex-suboficial expurgado em 1964, participara em ações armadas no Sul, antes de ser preso e terrivelmente torturado. Tiroteou longamente ao lado de companheiros socialistas em prédio cercado por fascistas, na região onde trabalhava como eletricista. Como Pato Malo, era um duro. Nascera em Pelotas, em 1942. No outro extremo houve aqueles, como o refugiado do Sul, que me vendera as armas, que se apresentou, com diversas malas, já na manhã do dia 11, diante de casa consular, onde creio que já o esperavam.

Entrei na vila Torres de Macul. As casas estavam de portas fechadas, com apenas uma e outra mulher circulando nas ruas. Já no impasse El Remanso, minha rua, uma chilena, que conhecia pouco, me chamou. Pensei que era para dar notícias. Perguntou-me se podia deixar a minha casa para sua cunhada. Segui adiante sem responder. Durante a crise habitacional, sob a forte inflação, era um problema encontrar casa para alugar. A vila Torres de Macul, recém concluída, sem árvores, pertencia à Caixa dos Trabalhadores do Salitre, que cedera moradas para muitos refugiados.

Minha casa era a última da calçada direita. A seguir, havia duas outras, de frente para a boca do impasse. A porta da casa estava arrombada. Não longe da porta, haviam queimado meus discos e livros. Choro até hoje a edição da “História da Revolução Russa”, publicada pelo Quimantú, editorial fundado pela Unidade Popular. A publicação causara pequena crise na UP, com o Partido Comunista se opondo e os socialistas apoiando a iniciativa. Até o embaixador da URSS interpelou Salvador Allende pela publicação, que teria explicado  enfadado ser presidente e não coordenador editorial, ou coisa semelhante. Mandara encadernar os livros, com artesão magistral, já que as folhas se despegavam com facilidade.

No fundo do impasse, tinha uma vizinha com quem mantínhamos ótimas relações. Ela saiu para me informar que minha casa fora ´allenada´duas vezes. Mostrou preocupação com minha sorte. Ela era muito próxima de um dirigente máximo de partido comunista maoísta que, seguindo a orientação da China naquela época, combatia a Unidade Popular, sem que ninguém notasse, de tão minúsculo. Eu vira o dirigente de poucos dirigidos visitar nossa amiga duas ou três vezes. Sobre ele, há uma história, que talvez me foi contada por ela, apressada, ou soube mais tarde. Mas vale o registro.

O dirigente maoísta telefonara pedindo refúgio na embaixada da China. Disseram que não estavam dando. Ele enfatizou que era amigo da China. Mantiveram a negativa. Desesperado, dissera ser “muy amigo” da China, para não falar no telefone que era dirigente com contato com a alta direção chinesa. Disseram-lhe que, se fosse, realmente, “muy amigo” da China, ficasse no país. Sem saída, o marxista-leninista enfurnou-se em outra embaixada. Na América Latina, o governo da UP fora o primeiro a estabelecer relações com aquela República Popular, que, em resposta, para ocupar o vácuo deixado pela URSS, acusada de “social-imperialista”, manteve suas portas fechadas aos que tentavam se refugiar e as relações com a ditadura pinochetista. Tudo no reino do “Grande Timoneiro”, que estreitava relações com os Estados Unidos, contra a URSS.

As publicações de minhas recordações dos sucessos de setembro de 1973, publicadas em edições diárias, estão se fundindo com as de companheiros e companheiras da época, que me enriquecem, precisam e antecipam fatos que vivi. Destaca-se certamente o depoimento enviado pela querida companheira Elisa, chilena radicada há décadas em Porto Alegre, de ex-colega do secundário, em Santiago, hoje radicada no Canadá, que, vivia na casa 5042, anterior à minha!

No dia 11, angustiada com o golpe – sua mãe era comunista – enquanto cozinhava, ouviu golpes duros das culatras dos fuzis de soldados da Força Aérea, na porta de sua casa, que vasculharam rapidamente, perguntando sobre as atividades dos “brasileiros” da casa ao lado. A seguir, saltaram do pátio de sua casa para o da nossa, que foi invadida. Foi nesse invasão  que teriam queimado meus livros e discos. A tropa teria voltado no dia seguinte, realizando nova procura, sempre perguntando sobre os “brasileiros” vizinhos.

Os dois ´allenamientos´ sempre me pareceram estranhos. As datas precoces das visitas e o interesse com minhas atividades eram desproporcionais, considerando que um era apenas um jovem militante estrangeiro do MIR, de base, sem tradição e importância. A insistência em me encontrar, reafirmada mais tarde por brasileiros presos, se explicaria talvez se conhecessem a compra das minhas ´poderosas´ armas. Se houve ´soplón´, a possibilidade maior é que ele fosse tupiniquim. Entre os milhares de brasileiros refugiados, havia informantes, o que angustiava sobretudo os grupos armados brasileiras com militantes no Chile.

O que fazer? Não podia ficar em minha casa, já visitada duas vezes, com as cinzas da  fogueira de livros e discos diante da porta. Não conhecia ninguém em Santiago que não estivesse se escondendo. Não sabia como chegar a uma embaixada ou consulado, ainda mais com os controles de identidade em cada esquina. Falava espanhol corrente, com sotaque que revelava imediatamente minha origem. Encontrava-me em mato desconhecido, sem bússola ou cachorro.

Fui até o outro lado da avenida Macul, em uma ´botilleria´ popular (venda de vinhos). O proprietário, assustado, perguntou-me pelos brasileiros, fregueses como eu habituais da cerveja e de vinho baratos. Não sei onde arranjei o número da Embaixada do Brasil. Pedi refúgio, como cidadão brasileiro. Perguntaram-me se tinha passaporte. Disse que não. Responderam-me que precisava apenas a cédula de identidade para retornar ao Brasil. Disse que, se me encontrassem, temia pela minha vida. – “Devia ter pensado antes” – foi a resposta que tive.

As representações diplomáticas brasileiras funcionaram durante todo o golpe de 1964 como extensão da polícia política, o que era contra as próprias leis nacionais. Brasileiros morreram no Chile por não terem onde se refugiar. Os governos que se seguiram a 1985, fecharam os olhos, garantindo total impunidade aos diplomatas do Itamaraty, que progrediram, se aposentaram, morreram respeitados e com seus magníficos salários. Certamente devem ter retratos dependurados nas paredes do Itamaraty ou do Instituto Rio Branco.

Voltei para casa. Estava imobilizado. Não via saída. Se me encontrassem, rezava para que me levassem preso. Mas,  tendo militado no Brasil em fins dos anos 1960, mais do que a morte, temia a tortura. Nem tento descrever como me sentia. Não via luz no fim do túnel escuro como breu. Mas havia, sim. Logo vi os faróis piscando de um magnífico Mercedes Benz branco que se aproximava de mim, após entrar no impasse.

O que era, ou quem era, fica para o próximo capítulo.

VI
O Mercedes branco e dando vivas a Zapata

Não acredita no que via. O carro parou na frente de minha casa e Guillermo Bedregal debruçou-se e me disse através da janela do carona: – Entra, companheiro. Não o via desde o dia 11. Sentei-me no banco da frente. Contou-me que era a segunda vez que vinha ao condomínio ver se eu voltara. Em sua casa estavam Sandra, minha então companheira, e Nara, sua irmã. Nunca pude lhe agradecer por ter possivelmente me salvado a vida. Guillermo Bedregal Garcia morreu em 26 de outubro de 1974, em em La Paz, sua cidade natal, em acidente automobilístico. Seus três livros póstumos revelaram a força do poeta ceifado aos 20 anos.

Nosso bairro se encontrava em uma região, na zona leste de Santiago, onde se localizavam conjuntos habitacionais, em geral de casas unifamiliares, habitados por empregados, trabalhadores, aposentados. Havia conjuntos habitacionais melhores e piores. Não muito longe, encontravam-se velhas e novas “ocupações” que se esforçavam para urbanizar-se, entre elas, Lo Hermida. Era uma região onde dominava a esquerda e a Unidade Popular. Terra libertada.

A norte do centro de Santiago, precisamente na Praça Itália, iniciava-se a zona dos ricos, o “bairro alto”, com destaque para a Providencia, que eu praticamente desconhecia. Era região dos “momios” -múmias-, dos “pitucos” -esnobes-, dos exploradores. O bairro era visto pelas classes populares como local de devassidão, de desregramento moral. Uma mãe de família trabalhadora não deixava uma filha adolescente ir à Providencia, sem ser acompanhada.

Havia no Chile da Unidade Popular, praticamente dois povos, com zonas intermediária de transição. O povo da esquerda, nós, e o povo da direita, eles. A divisão era também étnica. Em Providencia e bairros finos dominavam os jovens ´rúbios´ -loiros-, com ascendência espanhola, alemã, eslava. Nos bairros populares, imperavam os chilenos e chilenas com cabelos negros, lisos, a pele mais ou menos bronzeada. A ascendência indígena era forte nas “ocupações” e “poblaciones” mais pobres. Seus habitantes eram designados em forma depreciativa de “rotos”, rústicos, mal vestidos, etc.

Viajamos por pouco mais de meia hora, através daquelas duas cidades estranhas e opostas. Inicialmente, atravessamos parte da cidade derrotada, cruzando os bairros das classes populares e médias. Neles e mesmo no centro de Santiago viam-se apenas patrulhas militares circulando ou postadas nas esquinas. Ouvia-se ainda, vez e outro, tiros, em geral de franco-atiradores que não se rendiam. Eram raríssimos os transeuntes, de cabeça baixa, de passos apressados. O caminho era meu conhecido, por fazê-lo centenas de vezes, de ônibus, do Pedagogico da Universidad de Chile, onde estudava, em direção ao Centro, através das avenidas Macul, Irrazával e finalmente Vicuña Nackena.

Ao chegarmos à Praça Itália e embocarmos a avenida Providencia, a paisagem mudou bruscamente. Entramos na cidade vitoriosa, em festa, com carros carregando bandeiras do Chile e do movimento fascista Patria y Libertad, com jovens e adultos celebrando pelas ruas. Se diria vitória da seleção nacional na Copa do Mundo. Passávamos por todos, sorrindo. Guillermo buzinava festejando, eu fazia o sinal “V” de vitória com a mão direito fora do carro. Afinal de contas, furar o cerco, enganar aquela cáfila de energúmenos era uma vitória, ainda que minúscula, na imensa derrota.

Finalmente chegamos à nossa destinação, no bairro Las Condes. A casa era, realmente, imponente, com um largo jardim dianteiro, em um avenida com grandes moradias e pequenos palacetes. Ao entrar na casa, lembrei-me do filme “E o Vento Levou”, com as mansões de dois andares, com suas enormes escadarias no amplo hall de entrada. Encontrei Sandra, Nara e diversos outros jovens, de ambos os sexos, a quem Guillermo dera abrigo. Espaço não faltava. Nara recorda que haviam almoçado e jantado em uma mesa longa, com diversos comensais. Creio que fiquei ali apenas dois ou talvez até mesmo um dia.

A mãe de Guillermo estava à beira de um ataque de nervos, e com razão. Era quase impossível que os vizinhos, todos “momios”, não acompanhassem a estranha movimentação na moradia, desde o dia 11. E a senhora tinha recordações doloridas. Espanhola, ainda menina, de família aristocrática, fora levada por um empregado da zona republicana para o território franquista transportada, em parte, debaixo de uniformes de soldados destinados ao despiolhamento.

Guillermo e eu conversamos sobre a situação e concordamos que ela era insustentável. Guillermo distendera a corda da solidariedade até o limite que sua mãe podia aguentar. Entretanto, a senhora, uma verdadeira dama, jamais deixou transparecer a angústia em que se encontrava. Perguntei se ele podia nos deixar diante de uma Embaixada que estivesse ainda recebendo refugiados.

Guillermo respondeu-me que não era necessário. Na sua rua, havia algumas, a poucas centenas de metros! Era definitivamente a localização ideal! Sempre acreditei que a avenida se chamasse de las Naciones, inexistente no mapa de Santiago, naquela região. Certamente uma rasteira de minha memória. A moradia se localizava possivelmente na avenida Presidente Kennedy.

Guillermo insistiu que eu e Sandra fossemos bem vestidos. Escolheu-me uma sua camisa marrom de gola rolê, como se usava na época, de ótima malha. Não disse nada, mas achei que ficaria apertada. Ele era mais alto do que eu e magro. Eu estava pra lá de gordo, com os meses de desabastecimento, comendo “fideos con Pomarola” -massa com salsa de tomate-, “arroz”, “porotos” e “ovitos revueltos com hallulla” – ovos mexidos com o pão chileno chato, redondo e pequeno. Em minha casa, era eu que, digamos, cozinhava, já que Sandra e Nara não se davam bem com as panelas.

Tomei um longo banho, cortei a barba rente. A camisa quase ficou grande. Subi na balança e constatei assustado que estava no mínimo uns oito quilos mais magro que no dia 11! Corpinho de bailarino espanhol, mais devido ao estresse do que à pouca comida daqueles dias.

Nos despedimos de Guillermo e de sua mãe. Nara resolveu ficar e tentar sair legalmente do país. Saímos em busca da Embaixada da Bolívia, a uns duzentos metros. Íamos com o coração na mão, pois temíamos não receber refúgio e, até mesmo, sermos presos ao tentar obtê-lo. Não foi difícil identificar o prédio, com a bandeira desfraldada e... dois ´pacos´–carabineiros– no portão. Porém, eles nem piscaram. Em verdade, tudo faziam para não serem transferidos devido a uma reclamação do embaixador para as operações arriscadas que se realizavam em Santiago.

Toquei na campainha e um oficial, com uniforme parecido ao da Força Aérea chilena, entreabriu o portão, com uma cara pouco amigável. Perguntou o que queríamos. Enquanto respondia, empurrei a Sandra pelo braço, que compreendeu o movimento, e entrou para dentro do pátio dianteiro ajardinado. E eu, atrás. Estávamos agora em território boliviano, cercado, e queria ver quem nos arrancaria dali! – pensei.

Mas, seguro, seguro, ainda não me sentia.  O oficial nos introduziu em uma sala muito bem mobiliada, com um tapete fofo, e nos fez sentar em duas poltronas do mais fino couro. Logo, um senhor alto, jovem, entrou por uma porte lateral e sentou-se na escrivaninha, diante de nossas poltronas.

Tomei a palavra para dizer que éramos apenas inocentes estudantes brasileiros, que procurávamos refúgio, temendo por nossa vida. Ele me interrompeu com a gentileza de um diplomata. Disse que pouco importava quem éramos, que ficássemos tranquilos, desde aquele momento gozávamos do direito de refúgio, oferecido e garantido por seu governo. Apenas queria saber se tínhamos armas e somas altas de dinheiro. No primeiro caso, era obrigado a recolhê-las, sem devolução. No segundo, faria o mesmo até viajarmos. Nos daria recibo.

Não tínhamos nem umas nem outra. Em verdade, tínhamos apenas nossos documentos e cinquenta desprezíveis dólares.

Sempre aprendi que devemos agradecer sobretudo pelo que nos é dado da mão beijada, sem obrigação. Antes que o embaixador se levantasse, falei-lhe que, em nome de minha esposa e meu, agradecia imensamente a ele e ao governo boliviano pelo refúgio solidário que recebíamos.

Sorrindo, ele disse que, caso quiséssemos agradecer ao governo boliviano, teríamos que deixar o prédio e nos dirigir a duas ou três casas antes, pela qual havíamos passado. Ali era a embaixada do México!

Respondi-lhe que não, obrigado, quase gritando, !Y que viva Zapata!

 

VII

A morte como prato frio e os salgadinhos como complemento

A residência era a moradia oficial do embaixador Gonzalo Martínez Corbalá, então com 45 anos, amigo pessoal de Salvador Allende, homem de coragem e decisão, que não negou refúgio a ninguém que bateu nas portas do México, garantindo a liberdade, a vida e o caminho do exílio mais ou menos amargo para quase oitocentos desesperados, não poucos com suas famílias.

Meses mais tarde, após partir o último refugiado, da sua residência e da embaixada, Gonzalo Martínez Corbalá abandonou Santiago e o governo mexicano suspendeu as relações com Chile, durante toda a era pinochetista. Ao contrário, durante o longo período da ditadura, a embaixada do Brasil, sob o tacão dos generais, assim como a da China, sob o comando do “Grande Timoneiro”, mantiveram relações fraternas com a ordem terrível, após manterem as portas fechadas durante o golpe.

Nara chegou no dia seguinte de nossa entrada, após estabelecer contato conosco, para que facilitássemos seu ingresso na residência do embaixador do México - segundo ela se lembra.

A moradia era ampla, um pequeno palacete, e estava já literalmente entupida - talvez cinquenta ou mais pessoas. Havia uma grande sala, com lareira e um piano, volta e meia tocado por algum refugiado. Em uma pequena sala havia uma televisão, em preto e branco, transmitindo notícias controladas pelo golpismo. Além disso, um ou dois quartos e, certamente, os aposentos do embaixador, de sua família e outras dependências em que não circulávamos.

Havia chilenos, argentinos, uruguaios e outros latino-americanos. Brasileiros, poucos. Era um grupo desigual, com ex-militantes, funcionários da UP e sei lá mais o quê. A solidariedade fazia-se às vezes faltar. Os quartos foram adonados pelos ocupantes. As filas dos banheiros eram enormes. Quatro ou cinco se enxugavam com a mesma toalha. Dormíamos pelo chão, bem atapetado, e em cima de mesas. Creio que havia aquecimento central. As cadeiras e sofás eram guardados com zelo e cedidas com cara feia para alguém de idade ou crianças. Mas vi companheira abrir as malas e dar peças de roupa a desconhecida necessitada.

Dois brasileiros organizaram uma “ação” e “expropriaram” algumas garrafas da adega do embaixador. Minha recriminação recebeu olhares perplexos. O homem era ou não, um burguês! As discussões eram raras. Em geral, comentava-se que tudo estava perdido, antes de começar o golpe. Comunista chileno afirmava que o golpe fora devido à radicalização propiciada pelos esquerdistas.

Novos refugiados chegavam, a conta-gotas. Vi Gustav Harald Edelstam, embaixador da Suécia, alto, magro, vestido de negro, entrar na peça grande trazendo consigo o dirigente camponês trotskista Hugo Blanco, que escapara de condenação à morte no Peru, de onde fora deportado, em 1970. A imprensa golpista chilena pedia então sua cabeça.

Os não chilenos eram em boa parte “militantes armados” exilados no Chile. Estabeleci relações com dois simpáticos ´montoneros´ politicamente não muito ilustrados. Em uma roda, um deles, enorme, sempre alegre, e muito rústico, declarou que odiava os homossexuais. - Se vejo um “maricón”, o fodo sem pena! Um brasileiro franzina levantou-se dizendo: - Me retiro, antes que o companheiro, em abstinência, salte sobre o mais fraco de nós! O ´montonero´ recebeu um tapa na nuca do seu companheiro que não parava de rir. Perplexo, deixava compreender que não entendia por que ríamos.

A concentração de esquerdistas refugiados no Chile oferecia a possibilidade para a direita de assassinar centenas de dirigentes e “guerrilheiros” esquerdistas. Muito logo se organizaria a Operação Condor, de extermínio, coordenada pelo imperialismo, com a participação do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

O embaixador Gonzalo Martínez Corbalá organizou a pronta retirada dos estrangeiros, temendo invasão dos grupos pára-militares fascistas, sob as ordens dos militares. Em fins de setembro, notificou que os estrangeiros viajariam para o México. Teríamos ficado de sete a dez dias na residência diplomática. Um ônibus parou junto ou no pátio da casa. Diria sem certeza que era amarelo e que entramos por uma porta traseira.

Seríamos umas duas dúzias, incluindo a Sandra, a Nara, a mim e ao Hugo Blanco. O ônibus fez uma ou duas paradas - uma delas certamente na Embaixada mexicana, onde embarcaram diversos outros refugiados, entre eles, alguns dos brasileiros enviados para Santiago, em troca do embaixador da Alemanha, sequestrado em 11 de julho de 1970, no Rio de Janeiro.

Antes de embarcarmos, um oficial mexicano, bigodudo, grande e um pouco gordo, com duas enormes pistolas, teria dito que não temêssemos, ele cuidaria de nós. Se não me falha a memória, viajou conosco ao lado do motorista, junto à porta do ônibus. A viagem até ao aeroporto foi dilacerante. Era noite ou madrugada. Se escutava os tiros esparsos, dos militares ou, não raro, de franco-atiradores que esperavam a noite para disparar contra as forças golpistas. Não havia quase ninguém nas ruas.

Imitando os muralista mexicanos, formara-se no Chile brigadas de jovens que pintavam murais nos muros, sobre múltiplos temas - o trabalho, o programa da UP, acontecimentos internacionais. A brigada do Partido Comunista se chamava Ramona Parra (BRP) e a dos socialistas, Elmo Catalánde (BEC). MAPO, Esquerda Socialista, MIR pintavam alguns muros, mais raramente, sem igual qualidade.

A BRP era a mais organizada e de obras gráficas superiores. Ela era também conhecida pela violência sectária contra os militantes da esquerda revolucionária, tendo assassinado o estudante mirista Arnoldo Rios, em Concepción, em dezembro de 1970, com dois tiros. Passando pelas ruas viam-se os antigos e belos murais cobertos rapidamente com tinta branca, início da tentativa encanzinada de apagamento impossível da tradição de luta chilena.

O ônibus entrou no aeroporto. Descemos e tivemos que passar por central de identificação, onde não mostramos nenhum documento, já que sob a proteção do Estado mexicano. Talvez alguma lista tenha sido entregue pela embaixada. Alguns dos refugiados sequer documentos tinham.

Lembro-me que jovens oficiais ou sub-oficiais da Força Aérea avançaram em direção a dois companheiros nossos, querendo revistá-los. O nosso guardião mexicano, de grandes bigodes, avolumou-se, se pôs em posição de tiro e disse qualquer coisa que não ouvi. Fantasiando, diria que rosnou: - Ni cagando, gringos! Os golpistas recuaram e passamos tranquilo. Creio que embarcamos, outra vez, até a porta do avião, com o nosso anjo Pancho Villa na porta do ônibus.

Entramos e sentamos. Mais tarde, disseram-me que era o Caravelle da Presidência de México. Talvez. O certo é que cinco aviões mexicanos fretados teriam levados os refugiados de Santiago. Comecei a me sentir, finalmente, mais tranquilo.

Seriam poltronas de quatro pois, além da Sandra, estava ao meu lado um brasileiro e sua companheira. O jovem suava às bicas. Tentei acalmar o medroso. Disse-lhe que não temesse, que já estavam fechando as portas do avião. Respondeu-me, sempre assustado, que cagava pros milicos fascistas. Tinha era medo de andar de avião! Mais tarde fiquei sabendo que participara com destaque e coragem de diversas ações militares no Brasil.

O avião levantou vôo. Não quis olhar pela janelinha. Respirei tranquilo mas o vazio na barriga que sentia desde o 11 de setembro não desapareceu. E não desapareceria por longos meses. Mesmo passando o medo de ser preso, de ser torturado, de morrer, era certo que algo tivera fim em mim com o ruir do país em que havia decidido passar o resto de minha vida, pois jamais me sentira e sentiria tão vivo e realizado como ali, entre um povo que segurava o destino com as duas mãos.

O avião subiu, estabilizou. O comandante liberou o cinto de segurança. Algumas pessoas se levantaram para ir ao toalete. E, tranquilo, relaxei ainda mais, esparramando-me na poltrona. E, subitamente, perplexo, me deparei com quadro que Nara, ontem, por WhatsApp, definiu, com pertinência, de “surreal”. Pelos corredores avançavam lindas lindas e jovens aeromoças, com elegantes chapeuzinhos e uniformes azul e vermelho, creio, com bandejas de copos de whisky, conhaque, vinho, e bandejas de delicados salgadinhos e doces. Tudo do bom e ótimo.

Não pude deixar de pensar que alguém estava nos gozando.

 

Mário Maestri 

Publicado originalmente em Sul21