segunda-feira, 1 de julho de 2019

O que as mulheres devem a Karl Marx




Texto de 1903, traduzido por Karla Costa e Bruno Rodrigues, e tecnicamente revisado por Frederico Costa, de Clara Zetkin: Selecting writings. Chicago, Illinois: Haymarket Books, 2015, p. 93-94.


No dia catorze de março é o vigésimo aniversário de morte de Karl Marx, em Londres. Engels, cuja vida e luta, por quarenta anos, esteve intimamente ligada à vida de Marx, escreveu, naquele tempo, a seu amigo mútuo, o camarada Sorge, em Nova Iorque:


A humanidade foi sintetizada por uma cabeça, que também passa a ser a cabeça mais significativa de nossos tempos.

Sua avaliação acertou na mosca.

Não pode ser nossa tarefa, no contexto deste artigo, discutir o que Karl Marx outorgou ao proletariado em seu papel de homem da ciência, como um combatente revolucionário e o que ele significa hoje para o proletariado. Se o fizéssemos, nós apenas repetiríamos o que foi escrito durante esses dias na imprensa socialista sobre o trabalho, imensamente fértil, profundamente acadêmico e prático, de sua vida, assim como sobre sua gigantesca e homogênea personalidade que foi tão totalmente dedicada ao serviço do proletariado. Ao invés disso, preferimos indicar o quê o proletariado, melhor ainda, todo o movimento de mulheres, deve a ele.

Com certeza, Marx nunca tratou da questão das mulheres "por si" ou "como tal".No entanto, ele criou as armas mais insubstituíveis e importantes para a luta das mulheres para obter todos os seus direitos.Seu conceito materialista de história não nos forneceu fórmulas prontas sobre a questão das mulheres, mas fez algo muito mais importante: nos deu o método correto e infalível para explorar e compreender essa questão. Apenas o conceito materialista de história nos permitiu compreender a questão das mulheres no interior do fluxo do desenvolvimento histórico universal e à luz das relações sociais universalmente aplicáveis e da sua necessidade e justificação históricas.Só assim, percebemos suas forças motrizes e os objetivos perseguidos por elas, bem como as condições essenciais para a solução desses problemas.

A velha superstição de que a posição das mulheres na família e na sociedade era imutável porque fora sob a base de preceitos morais ou pela revelação divina foi destruída. Marx revelou que a família, assim como todas as instituições e formas de existência, está sujeita a um constante processo de fluxo e refluxo que muda com as condições econômicas e as relações de propriedade que resultam delas. É o desenvolvimento das forças produtivas da economia que impulsionam essa transformação, mudando o modo de produção e entrando em conflito com o sistema econômico e de propriedade predominante. Na base das condições econômicas revolucionadas, o pensamento humano é revolucionado e ele se torna o esforço das pessoas de ajustar sua superestrutura social às mudanças que tomaram lugar na estrutura econômica. Formas petrificadas de propriedade e de relações pessoais devem, então, ser removidas. Essas mudanças são forjadas por meio da luta de classes.

Sabemos pelo prefácio de Engels a seu esclarecedor estudo, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, que as teorias e pontos de vista desenvolvidos nesse livro são derivados em boa medida de trabalhos não publicados de Marx, que seu incomparavelmente leal e brilhante amigo o assistia como executor testamentário.

Quaisquer que sejam as partes que podem ser (e deveriam ser) descartadas como hipóteses, uma coisa é certa: Tomado como um todo, esse trabalho contém um número significativo de insights teóricos claros dentro de condições complexas que deram origem às formas atuais de família e de casamento e a influência da economia e das relações de propriedade que estão a elas relacionadas. Isso nos ensina a não apenas julgar corretamente a posição da mulher no passado, mas nos permite compreender as posições legais e constitucionais do sexo feminino hoje.

O capital mostra de forma mais convincente que há forças históricas incessantes e irresistíveis em ação na sociedade atual que estão revolucionando essa situação de baixo para cima e que trarão a igualdade das mulheres.Ao examinar magistralmente o desenvolvimento e a natureza da produção capitalista, até nos seus mais refinados detalhes, descobrindo sua lei de movimento, ou seja, a Teoria do Mais Valor, ele provou conclusivamente em suas discussões sobre o trabalho das mulheres e das crianças que o capitalismo destruiu as bases para a antiga atividade doméstica das mulheres, dissolvendo assim a forma anacrônica da família.Isso fez as mulheres economicamente independentes fora da família e criou um chão firme para sua igualdade como esposas, mães e cidadãs. Mas algo mais é claramente ilustrado pelo trabalho de Marx: o proletariado é a única classe revolucionária que, estabelecendo o socialismo, é capaz de e deve criar os pré-requisitos indispensáveis para a completa solução da questão das mulheres. Além disso, o fato das sufragistas burguesas não quererem nem serem capazes de alcançar a liberação social das mulheres proletárias, eles são incapazes de resolver os novos conflitos sérios que serão travados sobre a igualdade social e legal dos sexos dentro da ordem capitalista.Esses conflitos não desaparecerão até que a exploração do homem pelo homem e as contradições daí decorrentes sejam abolidas.

O trabalho comum de Marx e Engels, O manifesto comunista, resume sumariamente o que O capital nos ensina de maneira acadêmica sobre a desintegração da família e suas causas:

Quanto menos a habilidade e o esforço de força implicados no trabalho manual, em outras palavras, quanto mais a indústria moderna se torna desenvolvida, mais o trabalho dos homens é substituído pelo trabalho das mulheres. Diferenças de idade e sexo não tem mais nenhuma validade social distintiva para a classe trabalhadora. Todos são instrumentos de trabalho, mais ou menos caros para usar de acordo com sua idade ou sexo [...]


Os burgueses rasgam o véu sentimental da família e reduzem a relação familiar a uma mera relação monetária [...]


Nas condições do proletariado, essa velha sociedade já está aniquilada. O proletariado está desprovido de propriedade; sua relação com a mulher e os filhos não tem mais nada em comum com as relações de família burguesas.Qual o fundamento da família atual, da família burguesa? No capital, no ganho privado. Em sua forma completamente desenvolvida, essa família existe apenas entre a burguesia. Mas, esse estado de coisas encontra seu complemento na perda forçada de família entre proletários e na prostituição pública [...]


O palavreado burguês sobre a família e a educação, sobre a santificada correlação entre pais e filhos, torna-se mais repulsiva assim como, pela ação da grande indústria, todas os laços familiares do proletariado são despedaçados, e suas crianças são transformadas em simples artigos do comércio e instrumentos de trabalho [...]

Marx, entretanto, não apenas nos mostra que o desenvolvimento histórico desmorona, mas ele, além disso, ele nos mostra com a vitoriosa convicção de que isto constrói um mundo novo, melhor e mais perfeito.

O capital afirma:

Tão horrendo e repulsivo quanto a desintegração do velho sistema familiar, dentro do capitalismo, parece ser a indústria moderna, envolvendo as mulheres e os jovens de ambos os sexos nos processos de produção socialmente organizados fora da esfera doméstica, tem, no entanto, criado as bases econômicas para uma forma mais elevada de família e de relacionamento entre os dois sexos.

Orgulhosos e com desprezo superior, Marx e Engels, no Manifesto Comunista, contra as suspeitas sujas lançadas sobre este futuro ideal por esta caracterização impiedosa das condições presentes:

O burguês vê em sua mulher um mero instrumento de produção. Ele ouve que os instrumentos de produção devem ser explorados em comum e, naturalmente, não podem chegar a outra conclusão a não ser que a sorte de ser comum a todos também cairá para as mulheres.


Ele não tem sequer uma suspeita de que o ponto real nisto é acabar com o status das mulheres como meros instrumentos de produção.


Para o resto, nada é mais ridículo do que a virtuosa indignação que nossos burgueses fingem ter na comunidade de mulheres seja aberta e oficialmente estabelecida pelos comunistas. Os comunistas não têm necessidade de instaurar uma comunidade de mulheres; elas sempre existiram desde tempos imemoriais.Nossos burgueses, não contentes em ter as esposas e filhas do proletariado a sua disposição, para não falar da prostituição comum, tem grandes prazeres em seduzir as esposas uns dos outros.


Casamento burguês é, na verdade, uma comunidade de esposas e, portanto, no máximo, o que os comunistas poderiam possivelmente reprovar é que eles desejam introduzir, em substituições do que é hipocritamente oculto, uma comunidade de mulheres abertamente legalizada.De resto, é evidente que a abolição das mulheres provém desse sistema, isto é, da prostituição, tanto pública como privada.

O movimento das mulheres, no entanto, deve muito mais a Marx do que o fato de ele, como nenhuma outra pessoa antes dele, lançar luz sobre o doloroso caminho do desenvolvimento que leva o sexo feminino da servidão social à liberdade e da atrofia a uma existência forte e harmoniosa.Por sua profunda e penetrante análise das contradições de classe e suas raízes na sociedade de hoje, ele abriu nossos olhos para as diferenças de interesse que separam as mulheres das diferentes classes.Na atmosfera do conceito materialista de história, a "baboseira amorosa" sobre uma "irmandade" que, supostamente, envolve uma fita unificadora em volta de damas burguesas e de mulheres proletárias, explodiram feito bolhas de sabão cintilantes.Marx nos forjou e nos ensinou a usar a espada que cortou a conexão entre o proletariado e o movimento das mulheres burguesas. Mas ele também forjou a cadeia de discernimento pelo qual o primeiro está inextricavelmente ligado ao movimento trabalhista socialista e à luta de classes revolucionária do proletariado. Assim, ele deu à nossa luta a clareza, a grandeza e a sublimidade de seu objetivo final.

O capital está repleto de uma imensurável riqueza de fatos, percepções e estímulos sobre o trabalho das mulheres, a situação das mulheres trabalhadoras e a proteção legal das mulheres. Ele é um arsenal espiritual inesgotável para a luta por nossas demandas imediatas, bem como para o futuro objetivo exaltado do futuro socialista. Marx nos ensina a reconhecer as pequenas tarefas cotidianas que são tão necessárias para elevar a capacidade de luta das mulheres proletárias.Ao mesmo tempo, ele nos eleva para um objetivo, reconhecendo a grande luta revolucionária do proletariado para conquistar o poder político sem que a conquista de uma sociedade socialista e a liberação do sexo feminino permaneçam sonhos vazios. Acima de tudo, ele nos enche da convicção de que esse é um objetivo exaltado que empresta valor e significado ao nosso trabalho diário.Assim, ele nos salva de perder de vista o grande significado fundamental de nosso movimento quando somos assediadas por uma infinidade de fenômenos individuais, tarefas e sucessos, e corremos o risco de perder nossa capacidade, durante a enervante labuta diária, de ver o amplo horizonte histórico que reflete o alvorecer de uma nova era.Assim como ele é o mestre do pensamento revolucionário, então ele continua sendo o líder da luta revolucionária em cujas batalhas, está o dever e a glória do movimento das mulheres proletárias de lutar.

[Die Gleichheit Stuttgart, 25 de março de 1903]