domingo, 14 de julho de 2019

Não avançaremos com inimigos armados em nossa trincheira


As designações “esquerda” e “direita” nasceram na França Revolucionária. Nos Estados Gerais, à direita, reuniam-se os aristocratas, os latifundiários, o alto clero, os monarquistas absolutistas. À “esquerda”, juntavam-se os delegados do “Terceiro Estado”, ou seja, os deputados dos burgueses, dos pequenos-burgueses, do baixo clero, na acepção da época. Para que a revolução se defendesse e avançasse, a esquerda teve que se depurar. Os jacobinos, pequena burguesia republicana e revolucionária, terminaram sendo obrigados a avançar por cima dos girondinos, também membros da esquerda, ou seja, os burgueses e proprietários constitucionalistas, legalistas e não raro monarquistas. 

Mais tarde, os jacobinos mandaram para a guilhotina os partidários da  "conspiração dos iguais", que pediam, além da igualdade jurídica, a igualdade material. Em grande parte trabalhadores, eles foram os precursores do movimento socialista revolucionário e comunista. Com a contra-revolução em marcha, os jacobinos perderam a cabeça e a revolução foi jugulada por Napoleão Bonaparte. As divisões e lutas na esquerda não se deveram ao sectarismo de homens brilhantes como Marat, Robespierre, Brissot, Babeuf. No seio da esquerda, as idéias e ações desses homens brilhantes expressaram facções e classes sociais com projetos diversos, não raro antagônicos. Entre eles, não poucos preferiram compactuar com a monarquia a seguir adiante na luta pela revolução e pela república. Tinham muito o que a perder. 


O Golpismo Vai Bem e Agradece

Mesmo se o governo Bolsonaro vai mal, o golpismo vai cada vez melhor, seguindo adiante com a destruição geral da sociedade brasileira e a redução do país a situação neocolonial nas mãos do capital globalizado. Desde 2016, a sociedade e o Brasil são engolidos aos nacos, pelo grande capital e pelo imperialismo, de fomes pantagruélicas sem fim. A população brasileira vai mal e o golpe avança a galope, sobretudo por total falta de uma oposição consequente.  Em maio e junho deste ano, a população mostrou nas ruas vontade e disposição de luta. As direções dos partidos de esquerda, com destaque para os parlamentares, olharam e seguem olhando para o outro lado, suspenderam as mobilizações, levaram o confronto para o parlamento, onde a derrota era e é líquida e certa. O que, para eles, em verdade, não importa muito. 

Agora, quando trabalhadores e assalariados vêem seu sistema de pensões arrasado, a esquerda colaboracionista realiza uma verdadeira saudação à bandeira no parlamento, um desfile colorido para os eleitores. Os deputados de “esquerda” gritam contra os da direita e depois trocam com eles tapinhas na costa, já que o debate contraditório faz parte da democracia, dizem. Também eles temem, como o diabo a cruz, o povo na rua sem cabresto, pois têm igualmente muito a perder. 

Entregando a Luta

As direções da CUT e das outras ditas centrais sindicais mandaram funcionários agitarem bandeirinhas e gritarem consignas no parlamento, em vez de prepararem e decretarem greves gerais duras. Esperam recuperar o imposto sindical e seguir adiante com suas sinecuras, com o mundo do trabalho passando pelo moedor de carne. A esquerda parlamentar - ou que sonha com o parlamento - aponta para as eleições de 2020 e 2022 como o único caminho para a derrota do governo, que se negam a reconhecer como ditadura civil-militar em institucionalização acelerada. Mesmo sabendo que esse caminho não leva a nada. Aceitam o papel de oposição consentida do velho MDB dos tempos da ditadura, por vinte anos firme como geléia. 

Preocupam-se em garantir seus cargos, regiamente pagos, de governadores, senadores, deputados, vereadores, sindicalistas, burocratas e intelectuais partidários, enquanto a população e o país escorrem pelo ralo. Enquanto a população afunda no desemprego e trabalha como trabalhavam os escravizados, os senhores políticos e os burocratas sindicalistas preocupam-se em boiar. Em seu egoísmo e covardia política,  também eles expressam segmentos e facções sociais que apontam para a rendição. 

Os de Cima e os de Baixo

Não avançaremos um passo se não abandonarmos a ilusão de uma esquerda homogênea que quer a mesma coisa ou quase e não se entende por falta de diálogo ou idiossincrasias. Temos que compreender que parte substancial da chamada esquerda aponta em direção oposta, procurando acordo com os de cima e sossegar os de baixo, que também lhes fazem medo. No seio da “esquerda ampla”, subsistem e dominam tendência que expressam, como na Revolução Francesa e em toda a história contemporânea, classes e facções de classes com interesses diversos e no geral opostos aos do mundo do trabalho. 

Temos que superar para sempre a visão de uma esquerda com as mesmas raízes e os mesmos objetivos. Temos que definir os reais projetos, conscientes e inconscientes, de cada facção de esquerda, assim como os segmentos sociais que expressam cada uma delas. Não podemos tomar as pessoas, partidos e movimentos pelo que dizem ser ou por suas denominações. Nem todos os partidos que se dizem comunistas, socialistas ou dos trabalhadores são comunistas, socialistas ou dos trabalhadores. Para que sejam, o que dizem deve corresponder ao que fazem. 

Amigos e inimigos

Na revolução francesa, para defender a República e a Revolução, os jacobinos tiveram que marchar sobre os girondinos, que se diziam de esquerda. Se não o tivessem feito, a monarquia e a reação teriam vencido, com as terríveis sequelas que se abatem sobre a população em todas as contra-revoluções. Temos que conhecer quem são e quem não são nossos amigos na nossa trincheira. Quem não condena o golpe de 2016 e o segundo governo golpista de 2018 é um falso amigo na trincheira. Quem aponta para as eleições de 2020 e 2022 como saída do horror em que mergulhamos, também o é. Quem tira o povo da rua para embretá-lo no parlamento, é igualmente um falso amigo na nossa trincheira.

São falsos amigos na nossa trincheira, aqueles que não reivindicam a devolução, com juros e dividendos, de tudo que nos tiraram ou que nos negam: a legislação trabalhista; o sistema de pensões; as empresas privatizadas; o direito ao trabalho, a salários dignos, à saúde e à educação públicas de qualidade. Não são nossos amigos os que não lutam por uma imprensa, uma política, uma justiça e sobretudo forças armadas controladas pela população. São inimigos na trincheira os que nos propõem alianças com nossos algozes de ontem ou de hoje.

Socialismo ou Barbárie

O mundo do trabalho tem que tomar as rédeas da oposição para resgatar os direitos da  população e a independência nacional, já que todos os políticos e todas as  classes que dirigiram o país até hoje prepararam a bancarrota ou nos levaram a ela. É um direito sonhar com o retorno impossível a um passado já fantasiado, onde as classes médias viviam satisfeitas e os trabalhadores sobreviviam apenas melhor do que hoje. Ou de propor que “um mundo melhor é possível” em uma ordem capitalista idealizada. 

Mas temos que ter claro que essas não são nossas bandeiras e as direções que as levantam são falsos amigos em nossa trincheira. Temos que delimitar as fronteiras entre as direções colaboracionistas na esquerda e a esquerda de classe, que expressa o mundo do trabalho, em suas múltiplas vertentes e contradições não essenciais. Esquerda de classe que sabe que a transformação radical da sociedade é a única saída possível  da barbárie em que nosso país e o mundo afundam. 

Não avançaremos sequer um passo com inimigos armados na nossa trincheira.

Mário Maestri
Professor da UPF - Universidade de Passo Fundo
Comentário no Duplo Expresso, das quintas-feiras, 7 horas da manhã. 10/07/2019, sob a coordenação e apresentação de Romulus Maya.